A paz que ele quer
Entre sessões de fisioterapia, psiquiatria e até hipnose, Marcelo Yuka se cerca de amigos e trabalho para vencer as limitações impostas pela tragédia que mudou sua vida
Os tiros foram oito. Três no braço, um nas costas, um perto da costela e dois no abdome. O outro ele não lembra onde foi. O que tem mesmo importância para Yuka é sua imagem. Faz questão de repetir e frisar que, ao contrário do que muita gente ainda pensa, ele não bancou o valente para salvar uma mocinha indefesa que estava sendo assaltada na Rua Andrade Neves, na Tijuca. Não quer ser herói. Nem coitadinho. ''Tô fora dessa lengalenga de ser herói ou símbolo da paz.'' O que ele quer é sair da cadeira de rodas o mais rápido possível. Yuka não se conforma em ser ''cadeirista'', mas ao mesmo tempo, é totalmente descrente em sua recuperação. As chances não são imensas, mas existem. ''Ele está respondendo a alguns estímulos na perna, o que no início do tratamento não acontecia. E a sensibilidade abaixo do umbigo já está voltando. As chances de Yuka voltar a andar são de 5%, mas vão aumentar muito depois que nós começarmos a fazer exercícios na piscina'', explica o fisioterapeuta Marcelo Nabuco Fontes, que vem acompanhando passo a passo a evolução do baterista. ''Por mais que os médicos digam que tenho chances, para mim, se eu voltar a andar, vai ser um milagre. Estou trabalhando para isso. Se der certo, beleza. Se não, a gente vê o que faz'', diz, resignado. Para descobrir de onde vem tanta descrença, Yuka passou a freqüentar até sessões de hipnose. Foi a conselho de sua psiquiatra, Ana Beatriz Barbosa. ''Fui uma vez e gostei muito. Não é aquele negócio de compre batom, compre batom. É sério. Vou fazer direto, acho que pode ajudar'', diz Yuka, evitando detalhar o assunto. O que o entusiasma é falar de seus planos. Para este ano, o baterista dO Rappa - que está sendo substituído por Lobato, o tecladista da banda - planeja a participação como letrista no novo disco do grupo (ainda sem previsão para chegar às lojas) e num vídeo-documentário com integrantes do Movimento dos Sem Terra. Entre sessões de fisioterapia, psiquiatria e hipnose, Yuka compõe do mesmo jeito que antes: escrevendo a caneta, às vezes digitando no computador, com a mão direita que, assim como o braço, o pescoço, o ombro e parte do braço esquerdo já estão com os movimentos praticamente recuperados. As músicas também não mudaram muito: continuam seguindo o estilo contundente de expor as fraturas sociais do país - mas sem adotar o tom amargurado que se poderia esperar de alguém que teve a vida atravessada por oito tiros. ''É claro que o que aconteceu comigo acaba influenciando o que escrevo, mas tenho que ser cuidadoso. Eu falo do que estou passando, mas só das experiências positivas'', diz, para em seguida murmurar em tom de resmungo: ''experiências positivas...''. É difícil para Yuka - e para qualquer pessoa - descobrir algo positivo em tudo que aconteceu. Mas os amigos e a família estão dando a força necessária para que as crises de depressão sejam cada vez mais raras. A casa na Tijuca, onde Marcelo vive com a mãe, Luisa, o pai, Djalma, e o irmão, Renato, está completamente mobilizada. ''Desde 9 de novembro (dia da tragédia) a gente vive o reino de Marcelo. Se ele ri, todo mundo ri. Se ele chora, todo mundo chora'', diz, emocionada, a mãe do compositor. O irmão largou o curso de luthier e a loja de instrumentos musicais que possuía em Copacabana para viver em função de Yuka. Tudo isso cala fundo no rapaz e faz surgir uma sombra em seus olhos. ''Ter saído dessa não foi bom para mim. Aqui, dentro desse corpo, é só terror, só pesadelo. Muita gente ao meu redor sofre pelo o que eu estou passando. Eles poderiam ter uma vida muito melhor se não tivessem que cuidar de mim'', lamenta e prossegue: ''Tenho amigos que me ligam todos os dias, querem saber se eu estou bem, se almocei direitinho, se fui à fisioterapia'', conta, antes de apontar para um rapaz meio emburrado que acompanhava a entrevista de longe. ''Está vendo aquele pitbull ali? É o Ronaldo, um amigão meu. Desde que levei os tiros ele veio para cá e fica me ajudando, cuidando de mim. Maneiro, né?'' Ronaldo praticamente mudou-se para a casa de Yuka e faz de tudo por ele, ajudando-o a levantar-se, a descer as escadas e a ir ao banheiro, o que, segundo sua mãe, é das tarefas mais difíceis. ''As coisas mais simples são as piores. Para tomar banho, ele precisa da ajuda de duas pessoas'', conta Dona Luisa, que, emocionada, descreve o filho como ''um lutador, um guerreiro ninja''. As pessoas que costumam ajudar Yuka em sua higiene pessoal são o amigo Ronaldo - que não vê nada de mais na devoção a Marcelo - ''tenho certeza que ele faria o mesmo por mim'' - e um enfermeiro, que fica 24 horas por dia a postos na casa do baterista, ministrando os remédios e ajudando no que for preciso. Ou seja, em quase tudo. À exceção do trabalho. ''Yuka é muito importante para o país, não pára, está ligado em tudo, e ainda vai fazer muita coisa legal'', acredita Paulo Lins, escritor do livro Cidade de Deus e um dos roteiristas do clipe de Minha alma - A paz que eu não quero, sucesso d O Rappa que abocanhou seis prêmios no Video Music Brasil do ano passado. Yuka não pára mesmo. Na última terça-feira, o próprio Paulo o convidou para fazer a trilha sonora do filme A história de Dé, longa sobre o relacionamento de duas pessoas de classes sociais diferentes, que tem como pano de fundo o nascimento do Comando Vermelho. Um filme com a cara de Yuka - que aceitou o convite na hora. ''Não tinha como dizer não'', conta, animado. Desde que saiu do hospital, o baterista já subiu ao palco com O Rappa umas quatro vezes. E costuma ser recebido pela platéia como um messias. Retribui com palavras de ordem, acompanhadas pelos indefectíveis punhos cerrados. Mas garante que não é a vaidade ou a distância dos refletores que o levam a encarar as luzes da ribalta antes de estar completamente recuperado. ''Ia para a agradecer. Mas não vou mais. Acho que estou me expondo muito. Agora, evito sair de casa. Pior do que me dar um soco é quando me olham com pena, quando sentem pena de mim'', confessa. Mas nada no mundo o desespera mais do que se ver em vídeo, tocando com a banda. ''Aí é filme de terror''. Um filme de terror que a psiquiatra Ana Beatriz - ''um anjo da guarda, a pessoa mais importante para mim, junto com a minha família'' - vem ajudando a amenizar. Ela, que foi procurada por Yuka antes mesmo do acidente, o ajudou a lidar com sua hiperatividade mental. ''Ele sempre teve um potencial criativo imenso, que funciona em picos impulsivos. É uma coisa incontrolável. De repente, vem à sua mente a letra inteira de uma música. Nós estávamos trabalhando para que ele não hiperfocasse o trabalho, desse mais atenção a outras coisas'', conta Ana, acrescentando que a batalha agora é para tentar fazê-lo hiperfocar a sua recuperação. ''Se ele conseguir, tenho certeza que será o diferencial. Na hora em que ele entrar de cabeça, tudo vai acontecer muito mais rápido'', diz, confiante. Foi a psiquiatra quem receitou algumas borrifadas de lança-perfume - o clássico, da marca argentina Universitária - no braço esquerdo de Yuka, para diminuir as dores que o incomodavam tremendamente. ''Deu o maior alívio. O problema é que todo mundo queria cheirar o meu braço'', brinca Marcelo, que até então, vinha seguindo as instruções médicas de combater as dores lancinantes com uma bateria de remédios à base de morfina que realmente diminuíam a dor - e tinham um efeito colateral sério: fortes alucinações. Mas as dores já passaram e agora Yuka - ''um cabeça dura'', segundo o fisioterapeuta Marcelo - vem se dedicando direitinho a uma puxada rotina rumo à recuperação. Três horas de fisioterapia pela manhã, mais três à tarde, e à noite, sessões de psiquiatria e hipnose. ''Fora o dever de casa, vários exercícios'', lembra Marcelo, feliz com a dedicação e a evolução do paciente. Evolução que sofreu um baque depois da transferência do baterista para o Hospital Sara Kubitschek, em Brasília. ''Acabaram com ele, psicologicamente, por lá. O médico que o atendia afirmou com todas as letras que ele nunca voltaria a andar e que ia ficar usando fralda o resto da vida. Um absurdo. Mas quando ele ficar bom, nós vamos lá esfregar uma fralda na cara desse mané'', revolta-se o fisioterapeuta - que é supervisionado por Nilton Petrone, o Filé. ''Tenho mais dificuldade em lidar com as seqüelas psicológicas que esse hospital me deixou do que com meus problemas físicos. Aquilo lá foi o inferno para mim'', confessa Yuka, acrescentando que ''quando for a hora'' vai processar o médico que o (des)tratou, deixando sua auto-estima na lona. ''Vou fazer isso no momento certo. Agora ainda estou muito vulnerável''. Vulnerável e namorador. Ele próprio conta que uma das únicas coisas boas do acidente foi ver a sala de espera do hospital em que ficou internado cheinha de ex-namoradas. ''Parecia até enterro de político corrupto'', brinca. Quem não gostou muito desta história foi a atriz Chris Couto. ''Uns dias antes do acidente eu vi uma foto dele no jornal com uma mulher que era apresentada como sua namorada. Até então, eu achava que a namorada dele era eu'', diz. ''Mas isso tudo é uma besteira perto de tudo que aconteceu. Adoro o Marcelo e sei que ele vai sair dessa'', conta Chris, que faz questão de esclarecer: ''Ele tem muitas ex-namoradas, mas são todas legais. Não teve nenhum estresse entre a gente.'' As ex-namoradas superam qualquer rusga de ciúme em nome do bem-estar de Marcelo, a recuperação está progredindo além do esperado, os trabalhos não param de surgir, os amigos se mostram fidelíssimos e as depressões estão cada vez menos freqüentes. Segundo o fisioterapeuta que o assiste, se tudo correr bem, daqui a dois anos ele já estará andando. Mas, até lá, a vida continua. E Yuka parece inclinado a vivê-la da melhor maneira possível. ''Não quero deixar para ser feliz só quando estiver andando''. The show must go on. |