![]() 15 de outubro de 1997 |
Quanto mais quente pior
NORTON GODOY E OSMAR FREITAS JR. Passados cinco anos da Eco-92, o primeiro resultado concreto do encontro de chefes de Estado no Rio de Janeiro está causando uma guerra por trilhões de dólares. Em dezembro, na cidade japonesa de Kioto, os 36 países mais ricos terão que se comprometer com cortes drásticos nas toneladas de fumaça que suas termelétricas e fábricas jogam na atmosfera. São esses gases que intensificam o efeito estufa e, por consequência, a temperatura média da Terra. Mas, para fazer isso, eles serão obrigados a sacrifícios econômicos difíceis de engolir. Para convencer a opinião pública americana de que 22% dessa fumaça sai dos Estados Unidos, o presidente Bill Clinton iniciou na semana passada uma campanha de marketing. Na segunda-feira 6, passou todo o dia com cientistas, políticos e assessores discutindo o papel da economia americana no aquecimento do clima do planeta. "Se lembrarmos que desfrutamos mais de 20% da riqueza mundial, é fácil entender por que temos que responder pelos 22% dos gases que são jogados na atmosfera", argumentou Clinton. O mea-culpa do presidente americano nada tem de conclusivo. É apenas uma jogada de marketing. porque Clinton não tem como dobrar, em seu país, os opositores ao acordo internacional. Federações industriais dizem aos congressistas em Washington que o compromisso americano significará a dispensa de 1,5 milhão de trabalhadores e um corte de US$ 17 trilhões no produto interno bruto em dez anos. Toda a argumentação do presidente Clinton se baseia nos resultados de um enorme trabalho realizado por dois mil especialistas em clima. Liderados por nada menos do que 102 prêmios Nobel, passaram dez anos estudando a atmosfera. Constataram o que o cidadão comum já havia percebido: a temperatura está subindo. A culpa por isso é também facilmente identificada pela percepção popular: o aumento da poluição. Mas, o que antes era só cogitação, agora parece inevitável. Se nada for feito para brecar essa tendência, a simples elevação de um grau centígrado na temperatura média da Terra nas próximas décadas terá consequências trágicas para o clima. "A ameaça de aquecimento global é muito real e as ações para evitá-la devem ser imediatas", afirmou Hendry Kendall, prêmio Nobel e líder dos cientistas, ao divulgar os resultados do trabalho há duas semanas.
As repercussões pipocaram numa reação em cadeia. O próprio Clinton usou essa metáfora para explicar o que está acontecendo. "As consequências do aquecimento são como um trem que se aproxima da estação", disse ele. "A composição ainda está longe, mas já se pode ouvir o apito da locomotiva." Essa elevação de temperatura é suficiente para esquentar a água dos oceanos. Como qualquer coisa feita de átomos, a água do mar dilata. Num copo d’água a expansão de seu volume é insignificante. Nos oceanos, a proporção é planetária e o resultado é o aumento no nível dos mares, que acabam cobrindo as regiões costeiras. O nível do mar já subiu 15 centímetros no último século. A mesma elevação de temperatura derrete gelo nos pólos e neves nas montanhas. Basta meio metro a mais no nível do Pacífico para submergir dezenas de ilhas. Os cientistas desconfiam que até mesmo a intensidade do El Niño, o fenômeno climático que nasce nas correntes marítimas, seja influenciada pelo efeito estufa. Outro efeito do aumento da temperatura do planeta é a mudança das zonas climáticas. Os técnicos prevêem que, a longo prazo, haverá o deslocamento do clima equatorial para regiões mais frias, como o norte da Europa e o centro dos Estados Unidos. Isso significa não apenas verões mais quentes e invernos menos frios. Insetos hospedeiros de vírus e bactérias, normalmente sensíveis ao frio, migrarão para o norte, causando surtos de doenças, como a malária, só vistas nos trópicos. Com tal quantidade de sujeira jogada no ar que circunda o planeta, os americanos estão sendo pressionados pela comunidade internacional a formalizar um programa de limpeza. Acontece no dia 20, na cidade alemã de Bonn, uma reunião preliminar à megaconferência de Kioto. Os negociadores discutirão algumas propostas, entre elas uma brasileira. O esboço de acordo que sair de lá poderá, ou não, levar à esperada formalização em dezembro da chamada Convenção do Clima. Para os Estados Unidos, que sozinhos poderão definir o sucesso ou o fracasso da empreitada, o tempo está correndo mais rápido. "Se esta questão do efeito estufa está sendo discutida há anos, por que só agora a Casa Branca colocou seu time em campo?", disse a ISTOÉ o presidente da Câmara dos Deputados americana, o republicano Newt Gingrich. "Desconfio que a ausência de um plano concreto de redução de emissões seja devido à ausência de idéias", completou. Fazendo coro, o líder republicano no Senado, Trent Lott, disse desconfiar que o discurso de Clinton não passe de "mais uma jogada publicitária". A maior oposição ao acordo internacional reúne do mesmo lado da mesa figuras antagônicas: capitães de indústria e sindicatos de metalúrgicos. Ambos temem os reflexos negativos desse acordo na atividade industrial americana. Os empresários não querem os inevitáveis aumentos nos custos de produção que as medidas causariam. Comprar equipamento antipoluente encareceria o custo dos produtos, que perderiam competitividade. Os trabalhadores, por sua vez, prevêem um aumento no desemprego causado pela fuga de indústrias para o Brasil, a China e a Índia – que poluem menos. Para convencer o povo americano de que o acordo de Kioto será um erro, companhias de petróleo, montadoras de automóveis e até fazendeiros gastaram nos últimos meses US$ 15 milhões em campanha publicitária. Preocupado com a repercussão negativa dessa campanha antiecológica em sua rede de tevê, a CNN, Ted Turner mandou tirá-la do ar. Um dos anúncios acusa o acordo de não ser global, mencionando o Brasil como um dos países que ficarão de fora das restrições. "Por isso mesmo não vai funcionar", prega a campanha. Washington, dizem, "vai pagar o preço sozinho". Segundo o secretário do Interior do governo Clinton, Bruce Babbitt, isso é um exagero. "A campanha é digna dos melhores esforços da indústria do tabaco", declarou, comparando o discurso dos opositores do acordo ao trabalho de marketing das companhias de cigarros – que por muito tempo tentaram convencer os consumidores de que o fumo não estava associado aos males do pulmão e do coração. Para contestar os meticulosos dados (três volumes de 300 páginas cada um) do painel de dois mil cientistas, os industriais arregimentaram um grupo dissidente de pesquisadores do clima. Criaram o que chamam de Coalizão do Clima Global, paga para fazer o lobby de oposição no Congresso em Washington, que em última instância terá que aprovar o acordo. E, pelo que se observa na capital americana, não é uma tarefa difícil, já que a maioria dos congressistas é republicana e conservadora. Para se ter uma idéia das dificuldades que Clinton enfrentará para levar adiante a sua parte na Convenção do Clima, 95 dos 100 senadores aprovaram uma resolução onde afirmam que não irão ratificar nenhum acordo que deixe fora países como Brasil. "Na hora de enfrentar as consequências econômicas do acordo, o presidente e seu vice, Al Gore, vão tentar deixar por conta do Congresso", disse a ISTOÉ Walter Capistrano, diretor do Eco-Strategies Institute, ligado aos republicanos. "Mais uma vez, Clinton vai colocar sobre as costas dos republicanos a culpa por não ter assinado um tratado internacional." A coalizão dos industriais alega que o deslocamento para fora do país de fábricas que consomem muita energia levará junto 1,5 milhão de empregos nos próximos oito anos. Bem como o declínio de até 2% na atividade econômica do país. São números fortes. Para ampliar sua repercussão junto à opinião pública, os lobistas correm a versão de que países como Brasil contribuem em larga escala para o efeito estufa, a partir das queimadas na Amazônia – o que não é verdade, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Mas o time dos que defendem o acordo encomendou as suas próprias pesquisas. Que apontam uma perspectiva completamente diferente: a mudança de combustível fóssil (petróleo) para fontes de energia renováveis (como cana-de-açúcar, solar e eólica) significará uma economia de US$ 530 por ano para cada residência americana, além da criação de 800 mil empregos. O Departamento de Energia corroborou esse horizonte. Os custos denunciados pelas indústrias, segundo o secretário de Energia, Federico Peña, "podem ser reduzidos quase a zero com o emprego de novas tecnologias disponíveis". Vários economistas garantiram ao jornal The New York Times que ninguém sabe ao certo como se comportará a economia do país caso se assine o acordo. "A queda ou não no ritmo da economia depende de muitas equações e parâmetros desconhecidos", declarou o economista Martin Hobsbaum. O único fato que os dois lados da discussão concordam é quanto à magnitude e à intensidade do esforço de convencimento da opinião pública. "O debate é cada vez mais feroz", disse Dan Lashof, do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais americano. "E vai ficar pior, pode ter certeza", respondeu Richard Pollock, que lidera uma outra coalizão de opositores, bancada pelos metalúrgicos. Uma pesquisa de opinião mostrou que 75% dos americanos têm consciência da gravidade do problema, mas não querem pagar os custos – como, por exemplo, uma sobretaxa de 50 centavos de dólar no consumo de combustíveis. O acordo que se pretende fechar no Japão é resultado da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, assinada em 1992 por 150 países. Foi a famosa mas pouco produtiva Cúpula da Terra, ocorrida no Rio. O texto pede que todos os países impeçam a interferência "antrópica" (provocada pelo homem) no efeito estufa. Ironicamente, esse efeito atmosférico, produzido pelo clima terrestre há bilhões de anos, foi o fator que possibilitou o surgimento da vida no planeta. Sem esse "cobertor" natural de gases a superfície da Terra seria 30 graus mais fria. No entanto, desde a Revolução Industrial, iniciada há dois séculos, a atividade humana tem interferido nesse fenômeno. Essa interferência se dá pela produção artificial dos gases estufa e na destruição dos "sumidouros", os locais na natureza onde esses gases são absorvidos (florestas e oceanos). O maior responsável pelo efeito estufa é o vapor de água. Sua presença na atmosfera não é diretamente afetada pela atividade humana. Porém, quanto mais quente estiver o ar, mais absorve umidade. Subindo a temperatura média da Terra como resultado da maior concentração de gases poluentes na atmosfera, maior será o nível de vapor no ar e maior ainda o efeito estufa. Em algumas regiões a escalada do termômetro significará seca. Em outras, chuvas torrenciais – a partir da concentração bem maior de vapor em nuvens deslocadas pelos ventos. O dióxido de carbono (CO2) expelido pelas usinas para produzir energia é hoje responsável por 60% do aumento do efeito estufa – o restante é dividido entre as concentrações de metano, óxido nitroso, cloro-flúor-carbonos (CFCs) e ozônio gerados pelas fábricas e carros. No processo natural, todos os anos a atmosfera troca com os oceanos e a vegetação terrestre muitos bilhões de toneladas de carbono. Quando o homem interfere no processo as consequências são inevitáveis. Os registros fósseis mostram que em dez mil anos de história do planeta os níveis de carbono variaram menos de 10%. Nos últimos 200 anos, porém, esse nível já subiu 30%. Para negociar as questões mais sensíveis da Convenção do Clima foram destacados sete países, entre eles o Brasil. A filosofia que tem orientado esse grupo de negociadores é a de que as responsabilidades sobre o aquecimento artificial do planeta são comuns, mas diferenciadas. Isso quer dizer que todos têm que fazer alguma coisa, só que uns mais do que outros. Os países ricos, por serem os maiores vilões, devem reduzir seus níveis de poluição. Diferente dos países em desenvolvimento, que, por terem pouca ou quase nenhuma culpa nesse fenômeno (o Brasil contribui com menos de 1%), poderão aumentar suas emissões de gases de tal forma a atender às suas necessidades sociais e econômicas. Como a Terra é uma só e a fumaça expelida em um local em pouco tempo se espalha por todo o planeta, a única forma de saber se o esforço está dando resultado é medir periodicamente a temperatura global. O compromisso coletivo que está sendo buscado diz que os níveis de poluição em 2010 deverão estar parecidos com os registrados em 1990. Qualquer dos 32 países ricos que não conseguir cumprir sua parte no esforço coletivo será obrigado a pagar uma multa. "É a tese do poluidor-pagador", explica Luiz Gylvan Meira Filho, presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), mas também um dos cientistas destacados pela ONU para negociar a Convenção do Clima. O dinheiro arrecadado com essa punição financiará programas de produção de energia limpa em países pobres. Essa aparentemente justa divisão de direitos e deveres acabou, nos últimos meses, evoluindo para uma proposta não tão pragmática, mas muito polêmica. Com a desculpa de contrabalançar a rigidez dos limites de emissão, surgiu a idéia de se passar por cima do fundo de desenvolvimento e criar uma espécie de banco de compensações internacional, onde os países mais poluidores poderiam "comprar" dos não-tão-poluidores "direitos" de emissão de gases estufa. Se tal idéia for levada adiante, os Estados Unidos poderiam continuar emitindo gases além dos níveis permitidos, bastando para tanto comprar o "direito" de emissão da Zâmbia, por exemplo. A proposta nasceu de uma experiência que já existe em alguns Estados americanos, onde indústrias vizinhas comercializam entre si níveis de poluentes até um teto controlado pelo governo local. "Isso é uma completa bobagem", disse a ISTOÉ Ignacy Sachs, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais da França. "Como evitar que o ditador de alguma republiqueta embolse a venda desses direitos?", pergunta. Na época da Eco-92, a economia americana passava por um dos piores períodos de recessão do pós-guerra. "Cinco anos depois, Bill Clinton está à frente de uma das melhores fases da economia", explicou a ISTOÉ o professor William Nordhaus, da Universidade Yale. "Tanto os sindicatos operários quanto as indústrias vão lutar para que os Estados Unidos não assinem o acordo", disse. "Já estamos vendo os primeiros e acelerados passos da corrida presidencial no ano 2000", lembrou. "É sempre mais difícil tomar decisões duras em épocas como essa", resume o professor. LEIA MAIS: | ||||
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