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Especial - 18/10/2000

Seqüestro Legal

Limpar da atmosfera os gases que estão esquentando a temperatura da Terra virou um negócio bilionário. O Brasil tem muito a ganhar com isso

Nos próximos anos o mundo vai investir 100 bilhões de dólares no seqüestro de carbono. Seqüestro de carbono? Exatamente. Esse é o nome dado aos projetos de redução dos gases que produzem o efeito estufa - o anel de gás que envolve o planeta a 20 quilômetros de altitude, abafando-o e aquecendo a temperatura. O novo filão que começa a ser explorado criou um bilionário mercado potencial de negócios e projetos ambientais, gerando um interesse das empresas por ecologia sem precedentes.

Um empurrão decisivo para o mercado se tornar uma realidade deverá acontecer no dia 13 de novembro, em Haia, na Holanda. Ali, uma multidão de 20 000 diplomatas, cientistas, economistas, ambientalistas e empresários de 84 países estará participando da 6a Conferência da Convenção sobre Mudanças Climáticas. Eles vão regulamentar os mecanismos de uma fórmula inovadora para multiplicar empreendimentos e negócios que diminuam os gases do efeito estufa, dos quais o carbono (CO2) é o principal. Como parte do ultracomplicado Protocolo de Kyoto, nascido na Eco 92, no Rio de Janeiro, e que vem sendo negociado desde 1997, serão definidas as operações e as instituições que administrarão o chamado Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).

Guarde bem essa sigla. Trata-se de uma alavanca financeira para permitir que empresas poluidoras de países ricos, comprometidas compulsoriamente com metas custosíssimas de redução de emissões, invistam em projetos mais baratos de purificação do ar localizados em países pobres. Em troca, elas recebem "créditos de carbono". A lógica da transação: a atmosfera é uma só para todos e não importa onde o projeto seja executado. Assim, de posse desses créditos certificados, as companhias poderão "abatê-los" das suas metas de redução de gases, desde que isso complemente, e não substitua, seu programa doméstico de despoluição. Na prática, elas vão poder adquirir direitos temporários para continuar a emitir seus gases.

Os carbon credits funcionarão como uma espécie de indulgência ecológica, comparáveis às indulgências vendidas na Idade Média pela Igreja Católica aos fiéis endinheirados que queriam garantir um lugar no céu. Eles poderão ser negociados entre empresas e transacionados em bolsa como "ativos ambientais". E, embora tudo isso ainda seja inteiramente hipotético e pouco definido, pois o Protocolo de Kyoto precisa ser ratificado para entrar em vigor, o certo é que um animado mercado internacional de carbono já começa a funcionar.

No Brasil, por exemplo, empresas como a francesa Peugeot e geradoras de energia como a americana CSW (Central and South West Corporation) e a inglesa AES Barry instalaram projetos de seqüestro de carbono em Mato Grosso, na Ilha do Bananal e no Paraná (veja os quadros das páginas seguintes). Também há empreendimentos em andamento no México, Bolívia, Costa Rica e Austrália, entre outros países.

Essas empresas resolveram se adiantar porque sabem que o Protocolo de Kyoto está ganhando forma e que o mercado do carbono está se instalando. Elas querem aproveitar enquanto o custo da redução da tonelada do gás está baixo. Tudo indica que ele vai subir como um foguete. Segundo o Aspen Global Forum Brasil-Estados Unidos, que cuida do assunto para a Câmara de Comércio Americana de São Paulo (Amcham - SP), há dois cenários para a evolução do valor dos "papéis de carbono". No moderado, o seqüestro de uma tonelada de CO2 passaria dos 5 dólares atuais para 20 dólares em 2005 e 75 dólares em 2020. Mas, se o impacto negativo do clima se intensificar, o que não é improvável, a evolução seria de 5 dólares para 50 em 2005, e para 305 em 2020.

Ironias à parte, as indulgências ecológicas são uma vitória do pragmatismo. Apesar de os cientistas ainda terem dúvidas sobre a dinâmica dos fatores formadores do clima, poucos duvidam de que o efeito estufa está realmente aquecendo a Terra. Desde a Revolução Industrial, o homem despejou 270 bilhões de toneladas de gases como dióxido de carbono, metano, óxido nitroso e CFC na atmosfera - metade disso apenas nos últimos 30 anos. O recorde histórico aconteceu em 1997, quando foram emitidos 6,6 bilhões de toneladas. Dos 7 bilhões de toneladas despejadas atualmente no ar, 6 bilhões vêm de combustíveis fósseis. O resultado, cada vez mais temido, é que se formou um "cobertor" de gases na atmosfera, impedindo o calor do Sol refletido pela Terra de escapar e abafando o planeta. As conseqüências que poderão vir do efeito estufa são preocupantes: mudanças no clima, aumento do nível dos mares, derretimento da calota polar, enchentes devastadoras. Por isso cientistas e ambientalistas resolveram apelar para o Sétimo de Cavalaria das forças do mercado.

Em 1997, a Conferência de Kyoto dividiu o mundo entre países desenvolvidos (os responsáveis históricos pela poluição) e países em desenvolvimento, estabelecendo para os primeiros a meta de uma redução de 5,2% do total das emissões, segundo os níveis de 1990. As outras nações não têm obrigações quantitativas, mas podem aceitar, a seu critério, investimentos em projetos que resultem em reduções verificáveis das emanações. Os países desenvolvidos podem fazer acordos de implementação conjunta entre si e negociar "saldos". Assim, aqueles que hoje mandam para o ar menos carbono do que em 1990, como a Rússia e a Ucrânia, às voltas com estagnação econômica e declínio industrial, podem vender seus "direitos" de emissão. O protocolo deverá entrar em vigor entre 2008 e 2012, depois de ter sido ratificado por signatários responsáveis por pelo menos 55% das emissões em 1990 - o que inclui forçosamente os Estados Unidos e a Rússia, que ainda não o fizeram. Uma vez aprovado, os congressos nacionais deverão elaborar leis estabelecendo cotas, impostos e subsídios para garantir o cumprimento das metas - o que será uma outra batalha. Dos 84 signatários, até agora apenas 29 ratificaram o Protocolo de Kyoto. Todos estão esperando a regulamentação do MDL e brigando para impor seus interesses. A eleição presidencial americana, em novembro, poderá ser decisiva para o futuro. Se vencer o ecologista Al Gore, as negociações avançarão. Se ganhar o texano George W. Bush, ligado por laços de sangue às empresas de petróleo (seu pai, o ex-presidente Bush, é acionista de companhias do ramo), o processo pode engasgar. Mesmo assim, vários Estados americanos já anunciaram sua adesão à redução de 5,2%. "Acreditamos que algo deve ser feito e vai ser feito, independentemente de quem ganhar a eleição", diz John Mein, presidente da Câmara Americana, que já examinou 15 projetos brasileiros candidatos a receber financiamento externo. "A melhor maneira de avançar o MDL é botar os empreendimentos em cima da mesa. O mercado é que pode viabilizar o que o confronto de interesses emperra."

O nó de toda a questão é o custo. "A conta é alta e o jogo é definir quem paga", diz o engenheiro José Domingos Miguez, secretário executivo da Comissão Interministerial de Mudanças Globais no Clima do Ministério de Ciência e Tecnologia. Miguez é um dos negociadores brasileiros em Haia. "Imagine os países industrializados no jantar. Eles nos convidam para o cafezinho e depois pedem para rachar a conta", afirma. Segundo ele, durante séculos os desenvolvidos prosperaram à custa do ambiente. Agora, os que mais contribuíram para o surgimento do efeito estufa compensarão seus pecados arcando com os custos maiores da sua remoção. (Os sete grandes emissores de CO2 são Estados Unidos, China, Rússia, Japão, Índia, Alemanha e Inglaterra. O Brasil é o 170, graças à sua matriz energética em boa parte limpa e renovável, em que predominam a hidroeletricidade e a biomassa.)

A negociação é quase um purgatório diplomático. A delegação brasileira é composta por seis especialistas, que pulam de painel em painel. Eles competem com delegações como a americana, com 200 membros, com a japonesa, com 150, e com a dos 15 países da União Européia, que atuam em conjunto, com 200 integrantes. Em Kyoto, os Estados Unidos pressionaram para que o critério de definição de responsabilidades dos países fosse a emissão de gases, mas os diplomatas do Brasil e da Índia conseguiram que o aumento real da temperatura do planeta, que é produzido ao longo do tempo pela acumulação de emissões, preponderasse. Os americanos queriam que o carbono proveniente dos últimos 30 anos de queimadas na Amazônia também fosse contabilizado. Mas a responsabilidade brasileira seria irrisória se comparada aos séculos de destruição de florestas na Europa. Além disso, se esse prejuízo fosse considerado, os benefícios da floresta para o clima e para a biodiversidade também deveriam ser. Na verdade, ninguém sabe quanto carbono é emitido pelos incêndios na Amazônia. Mas há estimativas de que, se fosse considerado, o Brasil seria o quinto maior emissor do mundo.

O problema por trás das discussões técnicas é o custo político e econômico de reduzir a poluição das empresas dos países industrializados, que já usam filtros, materiais e tecnologia avançada. Estamos falando em mudar fábricas, usinas e empresas. "Impedir que a temperatura suba 1 grau Celsius nos próximos 50 anos custará cerca de 1,3% do PIB mundial", estima outro negociador brasileiro, o engenheiro Luiz Gylvan de Meira Filho, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Assim, diante dos progressos da negociação, a questão para os países ricos, agora, é "formatar preços", de acordo com o consultor ambiental Marco Antonio Fujihara. "Para uma empresa como a BP-Amoco emitir menos uma tonelada de carbono de uma sofisticada plataforma de petróleo no Mar do Norte custa uns 150 dólares", diz Fujihara. "Ela pode conseguir uma redução igual de carbono por 15 centavos em um projeto de reflorestamento na Bolívia."

A cooperação bilateral e os projetos ambientais de redução de carbono são o tema principal das discussões marcadas para o dia 12 de outubro em Potsdam, na Alemanha, entre uma delegação de 140 empresários e representantes do governo brasileiro e seus pares alemães. Na pauta, iniciativas da Volkswagen, Vale do Rio Doce, Aracruz Celulose, Melhoramentos e da empresa cearense de energia eólica Wobben-Enercom. "O Brasil é um campo fértil para investimentos ambientais, sobretudo na produção de energias renováveis e no reflorestamento", diz Ingo Pluger, presidente da Câmara de Comércio Brasil_Alemanha e da Companhia Melhoramentos. "A iniciativa privada precisa ser estimulada a apresentar idéias, e o governo federal deve mostrar que está engajado."

Há grandes oportunidades na eficiência energética. Projetos que evitam a emissão de carbono são mais credenciáveis que os "seqüestradores" do gás. O MDL exige empreendimentos novos, ou seja, de implantação posterior a 1999, que produzam uma redução "adicional" à situação atual. "Usinas de cana-de-açúcar podem ser beneficiadas duas vezes num mesmo projeto, uma pelo etanol e outra pela geração de eletricidade com bagaço de cana", diz José Roberto Moreira, presidente do Conselho do Centro Nacional de Referência de Biomassa. A Companhia Açucareira Vale do Rosário, de Morro Agudo, no interior de São Paulo, por exemplo, pode capturar 15 400 toneladas de carbono por ano com um aumento de geração de 13,5 megawatts na sua capacidade já instalada. "Há um vasto potencial de geração de eletricidade com resgate de carbono para as 135 usinas de açúcar e álcool de São Paulo", afirma Joaquim Heck, engenheiro de produção da Vale do Rosário. Projetos de energia eólica e de energia solar, ou de substituição de carvão mineral por gás ou por carvão vegetal, também atrairão investimentos. Outra proposta, barata e efetiva, é gerar energia ou simplesmente queimar o gás metano emanado por 800 lixões ultrapoluidores existentes no Brasil. "O metano aquece a atmosfera 21 vezes mais do que o carbono", afirma Paulo Braga, do escritório brasileiro da consultoria inglesa Ecosecurities.

Outro ímã é o setor florestal. As florestas maduras vivem em equilíbrio, absorvendo carbono e emitindo oxigênio por meio da fotossíntese. Já as florestas em crescimento aumentam de massa incorporando mais gás carbônico, que é transformado em celulose. Portanto, plantar florestas é criar "poços de carbono", sumidouros naturais do gás. O Brasil dispõe de terra abundante, sol, água e tecnologia de silvicultura, condições vantajosas para atrair investidores. Mas há um porém: o seqüestro de carbono em árvores é "temporário", pois um dia a madeira convertida em lenha ou móvel é queimada ou apodrece, e o gás é liberado de volta à atmosfera. Esse "detalhe" pode dificultar a aprovação do reflorestamento na regulamentação do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, em Haia, e prejudicar as empresas que já investiram neles. Organizações ambientalistas poderosas, como o Greenpeace, o WWF e os Amigos da Terra, que pressionam para que as empresas dos países desenvolvidos reduzam lá mesmo a poluição, criticam a corrida aos projetos florestais nos países em desenvolvimento. As companhias que já estão formando florestas no Brasil podem, assim, estar correndo o risco de ter se precipitado demais. Em compensação, se o conceito de "poço de carbono" for aprovado em Haia, terão adquirido ativos valiosos a preço baixo. Uma coisa é certa: nunca houve perspectivas de investimento externo em negócios ambientais tão boas no Brasil.

Carvão Amigavel
Banco mundial banca projeto mineiro

Durante meio século a indústria siderúrgica mineira devastou as florestas naturais do Estado, transformando-as em lenha para fazer ferro-gusa. Com as matas esgotadas, passou a consumir as do Mato Grosso, do Paraguai e até do sul do Pará. Nos anos 80, a pressão dos órgãos ambientais levou-a a adotar carvão mineral, bem mais barato. Hoje, até as grandes siderúrgicas importam carvão da China, altamente poluidor. A emenda foi quase pior que o soneto. Agora, entretanto, as 39 usinas do parque mineiro podem mudar de padrão. O Fundo Protótipo de Carbono do Banco Mundial, criado em 1999 para financiar projetos de redução de CO2 na atmosfera, associou-se à empresa Plantar, de Curvelo, para produzir ferro-gusa com carvão vegetal proveniente de florestas renováveis certificadas. A companhia vai investir 23 milhões de dólares para plantar 23 000 hectares de clones melhorados de eucaliptos e aprisionar 3 milhões de toneladas de carbono em 21 anos. A estocagem será credenciada pela empresa ERM, de São Paulo, e o Banco Mundial comprará parte dos créditos de carbono para distribuí-los entre empresas investidoras na instituição - Mitsubishi, Marubeni, Ontario Eletric Power, BP-Amoco e Shell, entre outras. O projeto substituirá carvão mineral por carvão vegetal, estocando carbono em árvores e fixando-o no ferro-gusa. É o melhor candidato brasileiro à certificação do MDL. Uma tonelada de gusa produzida com carvão mineral gera 1,8 tonelada de CO2. Com carvão vegetal, resgata-se 1,1 tonelada do gás da atmosfera.

O filtro da floresta
Peugeot testa idéia de sumidouro

Em Cotriguaçu, no norte do Mato Grosso, a Peugeot investiu 12 milhões de dólares para replantar 2 500 dos 10 000 hectares da Fazenda São Nicolau com espécies nativas e a árvore Teka, asiática. O investimento foi repassado pela empresa ao Office National des Forêts International (ONFI) - o braço mundial da agência estatal de florestas francesas -, que fundou a ONF-Brasil e contratou a ONG PróNatura para uma parceria científica. O objetivo é resgatar 50 000 toneladas de carbono em 40 anos, ao custo de 6 dólares por tonelada. A montadora francesa, entretanto, afirma que não vai reivindicar créditos. "Queremos demonstrar a viabilidade do conceito de poço de carbono. Essa é a nossa contribuição", afirma Rodrigo Junqueira, gerente de relações corporativas da PSA Peugeot-Citroën, no Rio. "Investimos na imagem de uma empresa comprometida com o desenvolvimento sustentável, não em créditos." Segundo ele, para um grupo que faturou 37 bilhões de dólares em 1999, 12 milhões são insignificantes. O economista Peter May, diretor da Pro-Natura, não tem dúvidas: "O mercado de carbono já existe e está em expansão. A partir de novembro ele vai crescer muito"

Ilha na vitrine
Ingleses investem em Tocantins

Tal como a Peugeot, a empresa de energia inglesa AES Barry, sediada em Barry, no País de Gales, diz que não vai reivindicar créditos de carbono, mas está interessada em testar o funcionamento de um projeto piloto. A companhia investiu 1 milhão de dólares para reflorestar 60 000 hectares em Pium, na Ilha do Bananal, em Tocantins. Para isso, criou a Fundação AES Barry, que contratou a Natural Resources International para selecionar projetos capazes de seqüestrar 7 milhões de toneladas de carbono em 25 anos - 1 milhão a mais do que emitirá nos próximos 25 anos no País de Gales. Universidades brasileiras e estrangeiras e a Secretaria de Meio Ambiente de Tocantins apóiam o empreendimento, que beneficiará também os vizinhos Parque Estadual do Cantão e o Parque Nacional do Araguaia. "Queremos compensar as emissões de carbono das nossas usinas. Mas por enquanto só estamos testando a idéia", diz David Nelson, presidente da Fundação AES Barry.

De Dallas a Guaraqueçaba
Americanos compram barato

Em Guaraqueçaba, no litoral norte do Paraná, uma das dez maiores operadoras de energia dos Estados Unidos, a Central and South West Corporation, de Dallas, Texas, comprou 7 000 hectares da Reserva Serrado Itaqui para replantar espécies nativas.

O projeto, que custou 5,4 milhões de dólares, foi intermediado pela ONG The Nature Conservancy e repassado para a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS). Prevê-se o seqüestro de 1 milhão de toneladas de CO2 em 40 anos. "Calculamos que agindo cedo poderíamos adquirir os melhores projetos pelo melhor preço", diz Jay Pruett, diretor de Serviços Ambientais da CSW, que é forte investidora no setor energético brasileiro. No final, a empresa pagou 5,40 dólares por tonelada de carbono. "Acho que o Protocolo de Kyoto pode até não ser implantado, pois as dificuldades políticas são enomes", diz Pruett. "Mas alguma coisa virá, e os créditos de carbono serão parte dela.

 




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