CARTA
PARA KEROUAC
Dia de chuva, mais um dia como os outros, tudo é cinza, tudo é nublado e eu e você tão longe tão distantes e olho para essas revistas velhas e esses jornais amarelados, e tudo me lembra e me remete aos sentimentos, essas inconfundíveis minas anti-pessoas espalhadas por aí. Temo que foi mais um ano que passou, mais trezentos e sessenta e cinco dias, talvez com algumas horas minutos segundos a mais e me pergunto quanto desperdiçamos? Sei, sei, você também não tem idéia, afinal, meu amigo, para que contar, para que pensar, raciocinar, quebrar a cabeça, a vida é isso mesmo que está aí, não há como mudá-la, sim, vamos todos embora, vamos todos dissolver. Eu prefiro usar essa palavra, é menos dolorida, mais fácil de sair. Sei que às vezes sou imbecil e também sei que sou um ser humano, um maldito mamífero burro que sua quando corre, cheira mal, e fica sempre sem resposta para as questões que deveriam ser óbvias claras mas não, tudo é delicado, e frágil, e tenho medo de quebrar os vidros as portas as correntes, mas você não me deixa, seu desgraçado você me obriga a amá-lo, a venerá-lo e eu então me apego a sua carne e suas palavras como sanguessugas às pernas de crianças que brincam em lugares pantanosos. Gosto do efeito das lâmpadas nas paredes rachadas dos condomínios à noite, e estou ainda vagando por aí, não importa se em trens, ou em rodovias mal-iluminadas, sempre procurado o que fazer, coisas para ler ou bebida cigarros, droga leve e barata. Tudo do jeito que você planejou, construiu e escreveu. Quero conhecer o México, o seu México longínquo e dolorido, quente e cheio de mosquitos esmagados, quero parar em um bar de beira de estrada e comer bombas de creme chocolate e tortas de baunilha, todas deliciosas enormes e quero me empanturrar de literatura quero me encharcar de palavras reconfortantes, quero me embriagar de paisagens, e passeios, e sorrisos, e pessoas gentis, velhos fazendeiros que dão carona a qualquer um. Se há um propósito para a vida, acho que é esse. O que você me diz? Pregar a bondade universal, ser um místico e solitário cristão, um homem de princípios. Para você parecia tão fácil manter-se fiel àquilo que acreditava e leio suas notas e rabiscos me dizendo para ter um caderno de anotações, mas eu sempre tive, meu velho, eu sempre tive. E desde o momento do primeiro abandono, o Supremo Abandono, tive cadernos, e livros, e cadernetas para anotações durante a viagem e agora a vida me aparece bruscamente, entra em minha casa sem bater à porta, dizendo simplesmente “Hey, estou aqui, é hora de você me encarar, me pegar pra valer!”. Nunca fui de me desesperar, sempre sofri quieto e engoli o pó com bravura, sempre chorei sozinho e em um canto escuro, não tenho carro, só o do meu bondoso pai, sinto saudades deles todos também, mas como eu ia dizendo, apenas o carro do meu pai, e essa vontade imensa e louca de conhecer o mundo, e as pessoas, os lagos, os rios, os cheiros e gostos. Mas hoje é um dia de chuva, um dia cinza como os outros, um dia como aquele em que você, com sua sacola de viagem, pegou uma carona para Chicago e parou embaixo de pinheiros tristes para se proteger da chuva. Em um dia como este, você chorou, praguejou e reclamou da vida. A única diferença entre nós dois é que você secou as lágrimas e, arrumando a sacola sobre os ombros, ergueu novamente o velho e encardido dedão.
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João Carlos Dalmagro Júnior.