EMBRIAGUEZ FORTUITA
É
incrível como algumas pessoas insistem em vislumbrar as ações humanas como
atos dotados de magnífico espírito de solidariedade, criadores e construtivos.
O mais incrível é que eu me enquadro nessa controvertida espécie que ainda
habita o planeta Terra. O que me proponho a narrar aqui constitui um fato
pitoresco na vida da maioria dos jovens, relativamente revoltados e totalmente
oprimidos que, não raro, apelam a vias "alternativas" de exteriorizar
sua indignação mundana.
Tinha
acabado de amarrar meu belíssimo par de All Star, quando lembrei-me do convite
que eu e um colega havíamos recebido de umas gurias para que fôssemos ao seu
apartamento naquela noite de Sexta-feira. Sem expor suas verdadeiras razões,
elas apenas mencionaram o fato de que iríamos tomar umas cervejas, assistir a
algum programa babaca na TV, ouvir rádio, beber mais, e dormir ali, estirados
na sala, entregues aos minúsculos animais terrestres que povoam as madrugadas.
Como não tínhamos muita grana, nem outra coisa melhor a fazer naquela tediosa
noite de início de outono, decidimos ir. Antes, porém, deveríamos passar por
uma prova de fogo: deliciarmo-nos com um saboroso rodízio de pizzas da Cristóvão
- sim, aqueles de R$ 3,50 - com direito a fotos do Elvis, Beatles e James Dean
nas paredes do requintado ambiente, abençoados com o som do inigualável e nostálgico
Creedence Clearwater Revival. Fomos. Após 15 pedaços de massa coberta com
condimentos irreconhecíveis, alguns canecos de chopp, risadas, eructações e
aberrações do gênero, pagamos a conta - com direito a 10% do garçom - e
iniciamos o longo trajeto até a casa das moçoilas, que ficava na Jerônimo
Coelho, esquina com a Borges. Um verdadeiro "pernaço", na linguagem
da chinelagem.
Caminhamos
pela Cristóvão, subimos a Barros Cassal (aquela do Garagem Hermética),
rumamos pela Independência, entramos na Jerônimo(acho), atravessamos a Borges
e estávamos de novo na Jerônimo, em frente ao Edifício Monroe. Durante todo
esse percurso, embalado pelo vapor do álcool, eu exercitava meus devaneios,
olhava as luzes da cidade que piscavam decadentemente, os mendigos estirados nas
calçadas, a fila no cachorro-quente do Rosário, os carros correndo como
abelhas loucas, cegas e desnorteadas por algum veneno. Tudo aquilo me
proporcionava um prazer inexplicável, algo que me confortava, fazia com que eu
esquecesse da minha solidão, da guerra absurda da Iugoslávia, do filho da puta
do ACM. Tudo que eu queria era curtir aquela noite.
Entramos
no prédio. Um senhor bem vestido, com um crachá onde lia-se
"PORTEIRO", pediu minhas identidade. Auxiliei-o na hora de transcrever
o número e ele, muito gentilmente, permitiu-nos que subíssemos. O elevador era
enorme, poderia-se enfiar um batalhão ali dentro. Um batalhão sérvio. A
guerra não saia da minha mente.
Tocamos
a campainha. A garota atendeu.
-
Olá! Entrem! Pensei que vocês não iam vir.
-
Por que tu acha isso? Perguntei.
-
Sei lá...Ela respondeu.
-Ah,resmunguei.
Depois
de confortavelmente sentados, começamos a sorver latas de cerveja. Estávamos
em 6; eu, meu amigo, 3 gurias - bem gostosinhas, vale lembrar - e o namorado de
uma delas. Até que estava indo tudo bem; a cerveja estava pegando, as mulheres
se soltando(as duas que haviam sobrado), a rádio tocava músicas horríveis,
transmitia entrevistas ridículas(a que ponto a mídia deste país havia
chegado), os olhares se cruzavam, blá, blá, blá.
-
Vamos jogar o jogo da verdade! Propôs uma delas.
-
Vamos! Berrou a outra.
-
Ainda não, não tô suficientemente bêbado pra isso, respondi, olhando aqueles
corpinhos voluptuosos, desejando-as ardentemente.
Todos
concordaram. Afinal, para que o tal jogo desse certo, teríamos que estar meio
grogues.
De
repente, a campanhia toca. A guria atende. Os vizinhos do andar de baixo. Três
caras com aspecto muito engraçado, trazendo massa e vinho para compartilhar
fervorosamente conosco. Ébrio, perguntei-lhes se moravam juntos. Responderam
que sim. Questionei-lhes novamente, querendo saber se eram homossexuais. Houve
silêncio total. Um ar pesado abateu-se sobre o ambiente, já bem carregado e
esfumaçado em virtude da grande quantidade de Marlboro que já havia sido
consumida. Percebi que, a partir daquele momento, todos os esquemas imagináveis
e possíveis daquela noite, que parecia ser promissora, estavam indo embora,
lentamente, com a fumaça do cigarro que escoava em um ritmo sonolento janela
afora. E entrei em depressão momentânea.
Convém
explicar o meu estado de "depressão momentânea". Constitui-se de
determinada hora em que eu acho que tudo que está ao meu redor é uma merda,
que tudo o que eu fiz foi em vão, que eu mesmo sou um "little piece of
shit", que o mundo em si é sarcástico, que as pessoas são irracionais.
Dura um dia, dois. Nessas horas, sinto uma vontade imensa de me embebedar,
entorpecer-me, sair pelas ruas berrando e, de alguma maneira, onírica ou não,
fugir de tudo. Foi exatamente o que me ocorreu. Eu estava me sentido deslocado,
deixado de lado, desprezado. E eu sempre achei que a indiferença é a pior
manifestação de sentimento que alguém que te odeia pode sentir por ti. Se é
que se pode chamar isso de sentimento.
De
qualquer forma, continuei sorvendo aquela Kaiser, quente e horrível, assistindo
à TV muda e escutando a rádio Eldorado, enquanto as nossas amiguinhas
encontravam-se na cozinha preparando a massa com aqueles intrusos, alienígenas.
Olhava para o meu amigo, que incrivelmente encontrava-se são, e tudo que eu
conseguia dizer era "Let's go home". Tenho essa mania. Quando bebo,
fico falando inglês, tentando imitar o sotaque britânico dos caras do Monty
Python. Ele me falava para esperar, que eles iriam embora, que ia rolar algo bem
tri mais tarde, mas eu não queria saber de nada. Estava numa deprê violenta e
tudo que eu queria era ir pra casa. Mas não havia jeito; o cara já estava
quase agarrando uma das gurias, e eu ali, com aquela cara de babaca, absorto em
meus pensamentos maníaco-depressivos, em frente a uma TV muda e ouvindo um
programa de entrevistas que excedia o cúmulo do ridículo. E o mais engraçado
de tudo era que, ao sair de casa, eu havia dito a mim mesmo que não iria beber
muito aquela noite. Mas não houve como me controlar. Aquilo me deixava muito
pra baixo. Era minha única saída. Ou não. Talvez apenas mais um artifício
que mascarasse a minha fraqueza, a minha solidão, a minha raiva. Algo que me
daria paz momentânea, mas que não apaziguaria a minha dor. De qualquer forma,
considerei aquilo como uma embriaguez fortuita e mergulhei na minha odisséia
interior, esquecendo-me da TV, do locutor babaca, daquela guria lá na cozinha.
Quando
isso me ocorre, é bom lembrar, tudo o que há de mais podre e degradante na
condição humana vem-me à mente, frágil e suscetível de pensamentos ruins.
Comecei a recordar-me de tudo que me afligia; a solidão - esta a mais grave,
porém minha motivação mais forte nos momentos de escrever - a minha insegurança
- não sabia o que seria do meu futuro, ccomo ainda não sei -, minha indignação
abafada, sufocada. Queria ir para casa, escutar Radiohead, ficar mais down
ainda, enfiar-me embaixo de cobertas quentes e reconfortantes, assistir a um
filme que me emocionasse, tipo Cinema Paradiso. Coisas simples, um café bem
forte, um afago no cabelo despenteado, um boa noite especial, algo assim,
inexplicável, como a catarse provocada por uma poesia de Baudelaire ou Rimbaud.
Queria fugir, com uma mochila nas costas, embrenhar-me pelo Nepal, Tibete, Escócia,
Checoslováquia; qualquer país relativamente exótico. Esconder-me em algum pub
irlandês, beber quantidades absurdas daquela cerveja tipicamente avermelhada,
em copos de um litro, e rir, rir, rir...de tudo e de todos, até que um anjo me
carregasse para algum lugar seguro, um campo que circundasse um castelo alemão
do medievo.
Mas
eu ainda estava ali, naquela sala, sozinho, abandonado naquele mundo frio,
necessitado de algo que, ironicamente, não sabia o que era. Olhei ao
redor...via tudo meio esfumaçado, torto, deformado. Lembrei-me da guerra da
Iugoslávia, os trens levando os albaneses para campos abertos, os refugiados
espalhando-se desesperadamente pelos Balcãs, os pais, os filhos, os tiros
surdos, ouvidos apenas por aqueles que são alvos. Tudo rodava, tudo era
absurdo, o som , as vozes, os tiros, o choro, tudo era intoleravelmente estúpido.
Como podia o homem , em pleno limiar século XXI, garboso pelo progresso de sua
- talvez ínfima - raça, encontrar-se em tão vil situação de dilaceramento
de seus semelhantes? Tudo aquilo lembrava-me da suástica, os trens levando os
judeus aos campos de concentração, o genocídio. Tudo que eu queria naquele
momento, definitivamente, era ir para casa e regurgitar tudo o que de podre
havia na humanidade, diante da presença muda do vaso sanitário.
Levantei-me.
Apoiei-me no braço do sofá. Disse ao Romeo:
-
Vamos embora, loco. Não há nada aqui que possa nos servir.
-
Espera mais um pouco, velho, os caras já vão se abrir, vamos ficar por aí!
-
Bem capaz!! Vamos logo, cara, não tô me sentindo muito legal.
Depois
de hesitar por alguns instantes, o cara resolveu ir embora também.
Despedimo-nos de todos, mordendo os lábios quando demos as mãos para aqueles
seres inoportunos, como que dizendo: "São todas suas, façam aquilo que
conseguirem". Pegamos o elevador, cumprimentamos o porteiro - muito simpático,
por sinal - e ganhamos a rua. Àquela hora havia poucos carros, devia ser 3 da
manhã. Voltamos pelo mesmo caminho, dobramos as mesmas esquinas, deparamo-nos
com os mesmos mendigos, os mesmos bêbados lançados ao relento, as mesmas luzes
que piscavam no viaduto, os mesmo carros zunindo como vespas, apesar de seu número
ser menor. Nada havia mudado. Havia guerra na Iugoslávia, eu ainda estava
sozinho, as pessoas eram medíocres, as calçadas permaneciam imundas, a condição
humana avançava para o seu decadente estado de putrefação, gradativa e
cronologicamente. O meu trago estava passando; talvez a caminhada e o vento na
minha cara estariam me fazendo bem, supus. Mas nada, absolutamente nada, havia
mudado. Eu acordaria, provavelmente à tarde, sentindo-me o cara mais estúpido
e otário do mundo por ter bebido em função de uma decepção amorosa, por não
ter concretizado algo que era praticamente certo que iria acontecer. Iria comer
algo, tomar uma Coca Cola, mexer no computador, dar um tempo, ler um livro,
tomar um banho, ver um filminho, dormir. Enfim, continuar meu ciclo semi-sedentário.
Cheguei
em casa, tranquei a porta, estiquei-me no sofá, liguei o ventilador bem no meu
rosto, devorei vorazmente uma maçã. Fiquei ali, um bom tempo, com a face
grudada à janela, contemplando as luzes de Porto Alegre, os sinais dos navios
no Guaíba, a calma aparente de uma metrópole onde todos são anônimos, cabeças
baixas e resignadas em um ônibus lotado. A rádio tocava um jazz dos anos 30,
provavelmente Miles Davis, ou John Coltrane. Aquele som acalmou-me. Sentia meus
sentidos, minha racionalidade, meu baixo otimismo, voltarem, lentamente,
enquanto apreciava a noite inundar a minha sala. Tudo estava escuro, eu curtia
agora o barulho do ventilador e o roçar da minha mandíbula triturando as
lascas de maçã. Minha "depressão momentânea" estava me deixando,
esvoaçando junto com a cortina, pousando em algum outro prédio, em algum outro
ser humano, ébrio e indignado com a hipocrisia de seus semelhantes.
E
ali permanecia eu, João, mais uma criatura atrevida, que, em seu íntimo,
apesar de todas as introspecções negativas, insistia em acreditar no lado bom
e criador da raça humana, após uma noite de etilismo, devaneios, caminhadas,
vento e oscilações espirituais do tipo "pessimismo-otimismo".
Quieto, tranqüilo, esperando a noite passar, o álcool ser expurgado
definitivamente de seu corpo dolorido, de mãos dadas com a sua solidão.
Ali estava João.
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João Carlos Dalmagro Júnior.