NOITE ÚMIDA, ESQUINA DA FARRAPOS

Seus passos não eram mais descoordenados. Sem álcool ou nervosismo. Sua maior preocupação era conseguir acender o cigarro, já que sua mão tremia com  frio. Males de outra natureza não o preocupavam. Dessa forma, não havia por que não continuar andando. 

Antes de deixar seu apartamento, calçou suas pesadas botinas, colocou a camisa por dentro da calça, abarrotando-a; molhou o cabelo na frente do espelho do banheiro e beijou suavemente Jimmy Joe, sua pequena tartaruga de estimação. Lembrou-se das chaves quando estava descendo as escadas e retornou para pegá-las, aproveitando para levar uma Polar e o maço de cigarros que deixara em cima do aquário. Abocanhou o sanduíche de mortadela da noite anterior e olhou o relógio, escondido pela lã de seu blusão peruano. Comeu a azeitona preta da pizza de calabresa do almoço e eructou. Ajeitando a gola da jaqueta, desligou a luz e sumiu pelas escadarias. Cumprimentou o porteiro e, ao girar a chave na fechadura enferrujada, ganhou as ruas. Aquela seria mais uma noite de sexta-feira típica de um país tropical como o Brasil. Um bar, algumas cervejas e, talvez, uma trepada com uma garota suficientemente louca para um programa como aquele que planejara. Depois, voltaria para casa e dormiria sem restrições, pois sábado não era dia de trabalho.  

Resolveu jantar em algum lugar antes de passar na casa do Paulo. Escolheu o lugar mais próximo de seu apartamento. Comeria um bauru e beberia algumas cervejas pretas. Isso. Assim estava ótimo. O bife era macio, o pão cervejinha deixava restos nos cantos da sua boca e, ao ameaçar acender um cigarro, foi reprimido com o olhar desaprovador de um negro alto, provavelmente dono da casa. Resolveu não discutir, não seria aquilo que ia estragar sua noitada. Pagou o que devia e acendeu o cigarro bem em frente ao restaurante, só de raiva. Era melhor se apressar e, pensando dessa maneira, seus sapatos moveram-se em um giro de aproximadamente cento e oitenta graus, e ele então deu as costas para o negro alto, os restos de bauru e o cheiro de cevada que ainda encontrava-se dentro do copo onde encostara seus lábios, levemente rachados pelo frio de meia-estação de Porto Alegre.  

Apartamento quatrocentos e seis. Toca uma vez. Ninguém. Duas. Ninguém. Ele espera mais alguns minutos e toca pela terceira vez, novamente sem resposta. O desgraçado do Paulo deve ter saído com uma puta barata, ou não se lembrou do encontro. Abandonado, ele olhou pela janela do apartamento pela última vez e, com uma tragada melancólica de seu cigarro, girou novamente seus sapatos em uma posição de aproximadamente cento e oitenta graus e resolveu ir para casa. Seu apartamento era quente, acolhedor, tinha vinho, jazz, almofadas enormes e uma foto do Miles Davis pendurada na parede do seu quarto. E Jimmy Joe estava lá. Além do mais, não gostava de sair sozinho. Tudo o que tinha a fazer era percorrer o caminho de volta. E quantas vezes teve ele de fazer isso em sua vida. Quantas vezes teve de voltar atrás, retroceder, cair, levantar, cair novamente e nem conseguir reerguer-se. Incontáveis as vezes que fora deixado para trás por todos; seus amigos, amigas, confidentes e inimigos. Confiava apenas em si mesmo, e essa mentalidade lhe salvava do mundo. A Terra lhe era desconhecida, queria dar nela muitas voltas, passear com Jimmy Joe pelas Galápagos. Jimmy Joe sim era um cara legal. Contentava-se com ração e água limpa de tantos em tantos dias. Grande era Jimmy Joe. Seu único defeito era não fumar. 

Já na esquina da quadra, parou e apreciou o movimento dos carros e o caminhar frenético das meretrizes na Avenida Farrapos. Viu as árvores balouçando com o vento gelado daquela noite, viu as estrelas, sorriu um sorriso enorme, um sorriso infantil. Seu olhos umedecidos pelo vento, seu cabelo desarrumado não mais lhe causavam incômodo. Catou um cigarro em sua jaqueta, acendeu-o e sorveu sua fumaça lentamente. Sabia que tinha de ir para casa porque um amigo lhe abandonara, mais uma vez, na noite fria de Porto Alegre. Sabia que estava sozinho, que havia perigos e que os ônibus já estavam todos na garagem àquela hora. Estava tudo bem, apesar disso tudo. Pela frente, em meio à neblina e ao asfalto imundo, havia apenas mais alguns quilômetros.

 

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João Carlos Dalmagro Júnior.