UMA NOITE DESSAS

Debateu-se muito até ficar livre da poeira secular que o massacrava. Experimentou restos de petiscos colhidos do mundo exterior. Finalmente, pôs-se a descansar. O dia fora árduo. Assim era também sua vida. Mas precisava dela como o verme necessita da terra rica em húmus.  Deu de ombros. Não tinha nada de ficar se lamentando.

O alimento era pouco, talvez não fosse suficiente para passarem a noite. Queria tomar um banho e dormir sossegado em um canto. Roçava-se em corpos mais magros, outros demasiadamente espaçosos, volumosos. Ouvia grunhidos vindos de todas as direções. Não distinguia muito as coisas através da escuridão. Seguia o cheiro inanimado. Acompanhava beiradas, cantos, desnivelamentos. Demorou para encontrar o jornal da noite anterior. 

Deitou-se e pode ouvir o vento petulante obrigando-o a proteger a entrada com tiras de papel. Ao limpar-se, veio-lhe a calma. Sono pesado. Impávido o rosto, respiração entrecortando a sentença irrecorrível do relógio de parede, lá longe. O vento aumentou (era sempre assim), derrubando a porta improvisada. Não havia nada que a mantivesse firme. Foi até a entrada de seu abrigo. Seus passos ágeis despertaram o filhote mais novo. Não, papai não quis ver se era seguro ir lá pra fora. Tudo foi rápido. Fulminante. Com os olhinhos apertados de angústia, o pequeno roedor acompanhou o movimento do eterno inimigo. A enorme pata do bichano desabou sobre seu pai, e o corpo imóvel sentiu demoradamente as unhas imundas do truculento felino perpassarem-lhe as entranhas. Ao seu redor, o mundo lascivo; cerrou os olhos como duas ondas que chegam à areia sem serem notadas. Dentro do buraco, pares de luzes vermelhas se acenderam. 

 

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João Carlos Dalmagro Júnior.