VIVER
O
bico de seu sapato estava molhado devido à velocidade com que caminhava debaixo
do minúsculo guarda-chuva, insuficiente para acolher todo o seu corpo. A chuva
era torrencial, e as ruas tornavam-se lugares desertos, por vezes lúgubres. O
lixo era levado pelas corredeiras formadas nas calçadas e, não raro,
entulhava-se, obstruindo bueiros e garantindo aos garis um árduo trabalho no
dia seguinte.
Álvaro
tentava, desesperadamente, chegar em casa antes que aquele dilúvio aumentasse a
sua intensidade. Atravessava ruas alagadas, parques pouco convidativos, becos
mal iluminados. Era só dobrar mais umas duas esquinas e estava lá.
“Welcome”,
dizia o capacho, completamente encharcado, que Álvaro havia colocado à porta
de sua casa para a recepção de suas raras visitas. Lá dentro, revistas, TV,
livros, restos de comida, bacias de pipoca pela metade, latas de cerveja e
Coca-Cola, cigarros e sacos de lixo auxiliavam na ornamentação. “Belo
nicho”, pensa. “Só precisa de uma boa faxina”. Sua desatenção faz com
que ele colabore com o cenário, espalhando lama dos sapatos por todos os cômodos.
Como se não bastasse, arrasta o guarda-chuva, deixando um rastro que, em épocas
mais remotas, representaria a demarcação de seu território. “Como sou
atrapalhado”, comentava, como se tentasse se desculpar com o dono da casa.
Aos
olhos inquietos e espúrios daqueles que o rodeavam, Álvaro era apenas mais um
daqueles desajustados, um sujeito de poucas palavras, que não lhes representava
muito mais do que força de trabalho. Um operário simplório demais para ser
levado em consideração, que não merecia congratulações ou homenagens.
Simplesmente um catalisador da produção, ou mais um fornecedor da mais-valia.
Contudo,
para ele, havia um mundo à parte de toda aquela frieza consumista, um mundo que
o acolhia e lhe proporcionava conforto e proteção. Algo distinto do lugar ermo
no qual a vida além de sua porta havia se transformado. Poderia até ser algo
ilusório, fictício e infértil aos olhos dos que não o conheciam. Mas, para
Álvaro, era o seu universo.
Como
era maravilhoso para o nosso amigo chegar em casa depois do árduo trabalho como
mestre-de-obras, tirar os sapatos, abrir uma cerveja, sentar e assistir à TV. E
depois, caso se entediasse, teria livros e revistas para esbaldar-se, discos da
velha guarda para serem rodados em seu antigo aparelho. E, caso tudo se tornasse
uma massa homogênea de tédio, ele poderia pôr-se a sonhar.
Álvaro
sonha muito. De olhos bem abertos, e orgulha-se de ressaltar seu feito heróico
na frente do espelho onde barbeia-se todas as manhãs. Sonhar é sua fuga, seu
mundo à parte, aquele reduto ao qual ele recorre todas as vezes em que se sente
pressionado ou encurralado. Nele, tudo é metamorfoseado em casas com grandes
jardins floridos, em sorrisos de belas ninfetas, em praias desertas e tranqüilas,
em grandes charutos cubanos iguais aos de Fidel Castro. Ah, como é rentável a
Álvaro sonhar. Esquecer aquela vida escrava, a rotina estafante, a casa
desarrumada, a cama solitária. A infância sofrida, o sacrifício dos pais, a
dor constante da perda.
Em
sua vida há passeios noturnos. Carros transitando loucamente. Parques, cinema.
Poucas relações com outras pessoas, pouco dinheiro. Há mágoa, dor, ódio,
indignação. Sentimentos inescusáveis, necessidade de fuga.
Noite.
Vento. Lua. Passos em um chão de areia.
A
cada tragada de seu cigarro, parece-lhe que o mundo é, aos poucos deixado para
trás. A redenção há de estar próxima. Não há por que temer. E aquela
noite, tão alta, tão estrelada, tão mágica. Álvaro ama a noite. Ninguém
lhe acolhe como ela.
Continua
a caminhada rumo à fonte. Não há ninguém na trilha de areia. Talvez alguns cães
perdidos da matilha. Como Álvaro. Um cão solitário perdido da matilha.
Queria
tanto conhecer o Egito, viajar de moto, fumar um baseado, arranjar uma namorada,
escrever um livro, andar com as mãos, correr até o mercado, rir por motivos
inexplicáveis, regozijar-se com o corpo de uma garota. Mas não o deixavam.
Amarraram-lhe as mãos. A moral era mesmo torturadora, pensava. Maldito filósofo
que havia inventado-a.
Era
tão difícil falar o que sentia. Era tão ridiculamente fácil incitar o povo
com uma demagogia pobre e contagiosa. Álvaro não gostava de demagogos. Eram
falsos. Mas mesmo assim, era tão bom sentir-se um brasileiro.....brasileiro?
Mas
que merda era aquela na qual todos estavam imersos? Um país inundado de miséria,
fome e corrupção não era digno de sua presença. Xenofobismo seria a solução?
Ufanismo? O que poderia realmente ser feito para retirar o país da inanição?
Álvaro
não tinha respostas. Na verdade não tinha respostas nem para as suas perguntas
mais banais... sua cabeça era só dúvidas. Estava confuso. Pensou em
suicidar-se. Não. Era muito fácil, além de covarde. Mas ele era um covarde!
Por que não render-se ao anonimato e, de uma vez por todas acabar com toda
aquela tristeza existencial? Pensava...
Não.
Não era sensato fazer aquilo. Havia muito a ser vivido e, quem sabe,
transformado. Talvez ele viria a descobrir um grande sítio arqueológico bem
abaixo do seu quintal, ou petróleo logo ao lado de seu encanamento de esgoto!
Mas
que viagem! Nunca acharia nada nessa porra de mundo desgraçado! Estava tudo
ferrado, e não seria ele a pessoa escolhida para achar o caminho certo!
Justamente ele, um maldito operário, uma formiga que trabalhava em prol de uma
rainha que nem conhecia, que era escravizado sob o pretexto de estar
desempenhando uma causa nobre!
Ah!
Que tudo explodisse! Não havia mais nada naquele mundo que lhe importava.
Queria apenas tomar sua última cerveja e fumar seu último cigarro num boteco
qualquer. Ou mesmo em casa. Não importava. Gargalhava só de pensar no que
seria o seu enterro; o guarda do cemitério, o síndico que lhe cobrava o condomínio,
um ou outro colega de trabalho, alguns cães rabugentos...
Haveria
algo de platônico em sua morte. Atingiria ele a tão almejada paz? Afinal, o
que era paz? Havia lido alguns livros budistas sobre isso, mas nada muito
esclarecedor.
Então,
naquela noite, decidiu não morrer. Havia muito a viver naquele belo início de
verão. Decidiu continuar com sua pontinha de esperança, com sua vela no fim do
pavio, com sua atitude cabisbaixa e pessimista. Retornou ao caminho de areia,
dobrou em alguns becos, atravessou o portão, entrou em casa e jogou-se na cama,
com sapato e tudo.
Lembrou-se
de que havia deixado a porta aberta. Hesitou e decidiu não se levantar para
fechá-la. Afinal, já estava tudo fodido.
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João Carlos Dalmagro Júnior.