BICICLETA,
WALKMAN E BOAS FITAS
Feriado de carnaval e eu estou em Porto Alegre, uma cidade fantasma. É incrível como tudo se transforma nessa época. As ruas tornam-se desertas, o trânsito é menos agressivo e as pessoas que ficam por aqui parecem mais tranqüilas. Há uma semana eu estava na praia, com a minha namorada, vendo os cardumes atravessarem as ondas. Agora não há nada. Um enorme e insosso vazio, preenchido por passeios sob a chuva. Até o cinema da Casa de Cultura está fechado. Após uma tentativa frustrada de assistir a “Virgens Suicidas”, ficamos vagando pela cidade, sem saber para onde ir. E foi então que eu realmente percebi como e por que Porto Alegre é tão bonita.
Caminhei pela Praça da Alfândega, sobre paralelepípedos mais velhos do que eu, reparando no McDonald’s vazio, nas lojas com suas portas cerradas e nos poucos camelôs que espalhavam seus badulaques pelo chão. Tomei uma água mineral num bar de chineses em plena Rua da Praia, caminhei pra caralho, parei por causa da dor nas costas – estava de mochila – caminhei novamente, sentei na calçada e esperei a chuva passar, na esquina da Borges com a Fernando Machado. As pessoas nos olhavam, continuavam caminhando. Do outro lado da rua, em uma pequena pizzaria, um homem lia o jornal e, na farmácia ao lado, duas funcionárias gargalhavam. Eu e a Daniela, minha namorada, resmungamos um pouco mas acabamos nos resignando. Ficamos olhando as lâmpadas antigas enquanto a chuva caía, lavando os carros e cuspindo nos meus óculos.
Antes de chegarmos à Borges, andamos pela Andradas. Depois subimos até a Salgado Filho e feito, lá estávamos. Havia poucos ônibus. Nenhuma batida policial. Cheiro de pipoca e cachorro-quente – não necessariamente agradáveis – em um fundo verde, cinza e molhado. Uma cena bonita, sem dúvida. Lembrei-me das noites em que eu voltava de lotação da casa dela e ia, a pé, até meu antigo apartamento, na Cristóvão Colombo, perto do Garagem Hermética. Lembrei-me de muitas coisas, e desisti de pensar, refletir. Muitas vezes, as simples lembranças bastam.
Caminhávamos sob a chuva, no coração da capital gaúcha. Eu suava como um verdadeiro porco. Sempre suo como um porco, até mesmo no inverno. É horrível. Mas, enfim, descemos pela calçada, beirando o asfalto enegrecido pela água. Eu tinha guardado meus óculos no bolso, e já não possuía noção exata das distâncias. Era ela quem me guiava, graças a Deus. Me senti bem. Posso até dizer que me senti pleno. Todo molhado, sem enxergar direito os carros ao atravessas a rua, com os pés úmidos, suando abundantemente, sem cinema, com dez quilos nas costas, caminhando rua abaixo. Estava tudo bem. Sob o pequeno viaduto que cobre uma parte da Perimetral, descansava o lago que era o palco de uma das minhas poesias. Mais à direita, a chaminé do Gasômetro quebrava o cinza do céu. A grama, comungando da água que outrora me molhara o rosto, nutria-se em silêncio. O largo da Epatur surgiu à minha direita, e pude ver meu prédio.
De todas as coisas bonitas que me cercavam, a que mais me fascinava era a minha namorada. Podia sentir suas mãos suando, sua respiração palpitante. Notei que ela também estava feliz. Aquilo me deixou ainda mais contente. Éramos eu, ela e Porto Alegre. Não havia mais o incômodo de estar molhado ou com dor de cabeça. Não havia mais importância em ter perdido o filme, ou ter caminhado quilômetros sem sentido, sem direção, sem um plano ou idéia que fosse. Para mim, o dia havia recém começado; eu sentia a vida em toda a sua extensão e plenitude, arquitetava meus planos com a frieza de um general e a confiança de um conceituado cirurgião cardíaco.
Decidimos andar mais um pouco pela Cidade Baixa, meu bairro. Os cafés estavam fechados. Bilbao, Ritrovo, Yang, até o Copão e o Cotiporã. Era como uma cidade acolhedora e melancólica do interior, parecida com aquela em que eu nasci. Aliás, a Cidade Baixa me faz lembrar dela todo dia, a todo momento em que abro os olhos. Comemos um cachorro-quente na esquina da República com a Lima e Silva e fomos pra casa. Dormimos e vimos um filme. Bebemos coca-cola. Conversamos. Ficamos ali, sugando o instante, eternizando-o para nosso futuro. É o que todos deveriam fazer. Vencer o tempo, eternizando-se. Içando as lembranças do mais fundo dos poços, permitindo que as coisas boas estejam sempre à superfície, nítidas e convidativas.
Mais tarde, ela foi pra casa. Eu tomei um banho quente, demorado. Massageei a nuca sob a água pura e gostosa, escutando Simon and Garfunkel. I have my books and my poetry to protect me. Preparei algo para comer. Ela me ligou, a minha namorada. Foi uma conversa extremamente agradável e relaxante.
Li um pouco, vi tv. Carnaval. Baixei algumas músicas na internet. Tomei outro banho às duas da madrugada. Desliguei tudo: luz, ventilador, som. Deitei, completamente nu, em minha cama. Fiquei remoendo as ruas, as calçadas, as faces, os beijos, os olhares, os viadutos. Fiquei remoendo Porto Alegre. Estava feliz, ia dormir bem. Antes de pegar no sono, recordo-me de ter pensado em dar uma volta por outras cidades, outros estados, outros países. Em viajar escutando walkman, com pilhas de fitas e livros disponíveis. Sobre o que mais pensei, não há lembranças. No outro dia, acordei disposto a comprar um novo par de fones de ouvido e uma bicicleta. Só pra ver até onde eu consigo pedalar.
Copyright 2001. Todos os direitos reservados.
João Carlos Dalmagro Júnior.