A ÚLTIMA DANÇA

A caminhonete derrapa e Aníbal pragueja ao errar mais um tiro. Maíra o ignora, preocupada como está em tentar manter o controle sobre o veículo em alta velocidade, evitando os palhaços que se atiram em seu caminho. Ela terá que cuidar de Aníbal quando chegarem à estação de rádio, pois torna-se óbvio que ele também está contaminado: seus olhos estão ficando injetados, assumindo aquele ar alucinado; ele não come, não bebe, não dorme mais e, às vezes, começa a falar de trás para a frente, como que num código cuja chave só ele possui. Era duro ter que admití-lo, ainda mais num momento como aquele, mas Aníbal estava se tornando um palhaço vermelho, como todos os outros. Logo ele, que sempre tivera mania de limpeza, como corolário de sua mania de ordem, que era resquício de sua formação militar. De qualquer forma, nunca se descobrira realmente como o HRC ("Happy Red Clown", como passou a ser atrozmente conhecido) "escolhia" suas vítimas, apesar das inúmeras especulações. O vírus fora encontrado pela primeira vez, ainda em sua forma cristalizada, num meteorito proveniente de Marte, desenterrado no norte da África (curiosamente, povos nômades da região cultivavam uma lenda sobre uma pedra de fogo enviada dos céus pelos deuses para punir os homens por sua desmedida e que, em sua queda, transformara toda a terra, antes fértil, em deserto). Aquele micróbio aparentemente morto realizara a mágica da ressurreição em contato com células humanas, e foi então que o circo chegou à cidade. O mais irônico em tudo aquilo era que o HCR era a prova cabal da existência de vida extraterrena similar à humana; Maíra lembrava-se que alguém levantara a hipótese de que o vírus fora criado artificialmente para preservar - e reproduzir - o patrimônio genético de uma raça marrciana que se via a beira da extinção. A recepção do rádio estava se tornando cada vez mais clara. Alguém estava operando aquela estação, alguém ainda suficientemente são que talvez pudesse ajudá-los - ao menos a ela, Maíra. Agarrada ao voolante, olhos fixos nas ruas agora miraculosamente vazias, iluminadas fracamente pelos faróis da caminhonete, ela rezava para que Aníbal não perdesse o controle por completo enquanto estivessem sozinhos. Ele acompanhava a música neutra que saía há horas do rádio ligado em solfejos desafinados, soltando um palavrão aqui e ali, enquanto procurava mais balas para sua arma. O HCR espalhava-se como fogo em capim seco e deixava as pessoas completamente loucas; ninguém parecia saber como detê-lo, ou explicar com um mínimo de coerência como ele agia sobre o organismo. Sua ação a nível microscópio e individual empalidecia, de qualquer forma, diante de sua ação a nível social. O caos completo seguia-se ao contágio explosivo, como se aquele ser minúsculo fosse a gota d'água que faltava para que a civilização finalmente entrasse em colapso. As pessoas contaminadas abandonavam seus afazeres econômicos e atiravam-se a violentas orgias, que acabavam sempre em morte por desgaste ou por lacerações fatais., ou a perseguições furiosas a todos que não quisessem participar de suas festas animalescas. As hordas esbravejantes eram invencíveis, pois seu número sempre aumentava, apesar das perdas constantes; os não-infectados acabavam por se entregarem aos bandos esfarrapados e ensanguentados que infestavam as cidades, quer por puro cansaço , quer por puro desespero. Afinal , as multidões de "palhaços vermelhos" pareciam saber exatamente o que queriam. Como Maíra, e o que ela desejava de todo coração era fugir. Quando a peste ainda estava restrita à África, à Ásia e a certas áreas da Europa e Caribe, seu pai costumava chamar o HCR de "vírus do ôba-ôba"; ele também costumava chamá-la de beata, ou de virgenzinha pudica. No fim, ele a chamara de puta, ao tentar estuprá-la, depois de ter matado a esposa e 'Diana', a pastora alemã que guardava fielmente o quintal (ela lembrava com um arrepio de seus ganidos de pavor; quanto a sua mãe, morrera como tinha vivido, em silêncio). Maíra enfiara uma enorme faca de cozinha em seu estômago obeso, mas ele, mesmo caído e esvaindo-se em sangue, arrastava-se pelo assoalho da casa em sua perseguição: "Venha cá, sua puta, putinha do papai". Aníbal a encontrara chorando na sala de estar, o corpo já morto do pai estirado no chão, a casa toda banhada em sangue, como ela mesma. Aníbal, seu protetor a partir de então, ex-adestrador de Diana, ex-PM, firme como uma rocha, amante afoito e pouco criativo. Sim, ela deixara de ser a virgenzinha pudica em seus braços e agora teria que matá-lo também, ou antes, sacrificá-lo, como se faz com um cão louco. Ele entenderia. No fundo, não deveriam todos serem fuzilados? Não estavam todos abandonando-a, traindo-a? (será que Aníbal também a trairia com uma cachorra, se tivesse a chance?) Os palhaços idiotas, felizes em sua bestialidade. Felizes? Não. Os palhaços uivavam de dor e de desejo, ambos indistinguíveis, e Maíra percebia em seus uivos ecos dos fantasmas marcianos, tentando se agarrar desesperadamente à vida, ainda que ela os destrua novamente no final. Lá estava ela, no topo do morro: a estação de rádio, a torre de transmissão perdendo-se nas alturas como a torre de uma catedral, seu santuário naquela cidade tomada. Maíra freou bruscamente a caminhonete, abriu a porta de supetão e saiu correndo sem olhar para trás. Ouviu Aníbal gritar seu nome várias vezes, os gritos transformando-se em lamentos, os lamentos em choro. Ao alcançar, ofegante, a entrada da rádio, ela ouviu um tiro, um único tiro. A rádio estava vazia, abandonada, as portas abertas, gavetas jogadas nos corredores, discos e folhas de papel espalhados por todos os lados. A sala de som era a única em perfeito ordenamento, as máquinas funcionando normalmente. Tudo automatizado; seres humanos eram perfeitamente dispensáveis ali. Maíra permaneceu sentada no carpete sujo da sala de espera por um bom tempo, ouvindo a música insossa que saía dos alto falantes. Em certo momento, decidiu erguer-se e passou a revirar as pilhas desordenadas de discos buscando um em particular. Achou-o e levou-o até a mesa de som. Dentro de alguns instantes, de um rádio numa caminhonete parada no pé de um morro, saiu a bela voz de Elis Regina, cantando "Alô, Alô Marciano" para quem quisesse ouvir.