"Se a visão de cada um fosse soberana, a convivência social seria inviável.
Pois todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Foi preciso,
então, instaurar formas de socialibilidade em que a vontade de um (monarquia)
ou de uns (aristocracia) predominasse sobre os demais. Até que, seis séculos
antes de Cristo, Sólon reformou a legislação de Atenas, lançando as bases da
democracia, fundada na igualdade absoluta dos cidadãos. Ora, se todos são
iguais, como decidir o que convém a todos e escapar da anarquia? Sólon propôs
que a soberania fosse uma prerrogativa da Assembléia do Povo, a cuja decisão
majoritária os demais deveriam se submeter. De novo, a "árvore do
conhecimento" ficou no centro do jardim.
Nem todos, entretanto, deram boas-vindas à democracia.
Sócrates acusou-a de ser o regime dos ignorantes, "a tirania da incompetência".
Aristóteles quis incorporar a ela elementos da monarquia e da aristocracia.
Platão sonhou com uma cidade governada por filósofos, pois, desconfiado,
encarava a democracia como a supremacia da paixão sobre a razão. Cícero, no século
I, e Santo Agostinho, no século IV, consideraram a democracia uma utopia, opinião
abraçada, mais tarde, por Maquiavel, Montesquieu e Rousseau.
A modernidade introduziu um princípio herdado da teologia de meu confrade Tomás
de Aquino: toda pessoa tem, não só
o direito, mas o dever de seguir a própria consciência. No entanto, se faz
parte de uma instituição, está implícito que
ela acata a decisão da maioria, ainda que isso contrarie os seus interesses. Daí
a importância de leis que rejam a convivência social. E, segundo o princípio
romano, a lei deve preceder a disciplina. Ninguém pode ser punido por uma lei
posterior ao ato cometido. Os limites (o Criador) devem preceder, na forma da
lei, a atitude assumida pela prática (a criatura).
Quem ingressa numa Igreja, clube ou partido, assina um código de conduta, na
forma de adesão à doutrina ou ao estatuto, que expressa a soberania da
instituição (o Criador) situada acima e além dos membros que a integram
(criaturas). Se eles se julgam isentos de disciplina, em discordância com as
regras vigentes, devem romper com a instituição ou serem
expulsos, como ocorreu a Lutero, em relação à Igreja católica, e a Prestes,
em relação ao Partido Comunista Brasileiro
dos anos 80, ou lutar internamente para modificar a decisão majoritária, de
modo que o seu ponto de vista venha a
se tornar consenso entre os seus pares.
Ao longo da história, a democracia tem sido mais representativa que
participativa, a ponto de coexistir com instituições monárquicas, como
acontece no Reino Unido, na Bélgica, na Espanha e em países escandinavos.
Subordinada ao poder do dinheiro e da mídia, a democracia incorre em graves equívocos
históricos, como as eleições de Luís Bonaparte, que restabeleceu o Império
na França, em 1851; de Hitler, em 1933; e de Collor, em 1989. Todos os três
foram expulsos da história da democracia.
Nenhuma criatura é obrigada a obedecer a vontade do Criador. Até Deus respeita
a liberdade individual. Mas não pretenda o dissidente sobrepor a sua ótica minoritária à decisão da maioria. Jesus,
convencido de que não seria capaz de induzir a instituição judaica de seu
tempo a seguir-lhe os passos, rompeu com ela e fundou a sua própria instituição.
A discordância é inerente à liberdade e à democracia. A dissidência é a
discordância levada ao limite institucional. Tomara que o PT não venha a
expulsar nenhum de seus parlamentares, assim como a Igreja católica não
excluiu Leonardo Boff. Mas se a maioria de um partido decide traçar um rumo
para seus filiados, como assegurar a unidade interna se a decisão soberana é
ostensivamente desrespeitada pela minoria? Rasguem-se, então, os estatutos e as
próprias regras que delimitam a democracia interna. Ou adote-se como modelo o
desfibramento atávico de certos partidos políticos, verdadeiras siglas de
aluguel, onde a vontade de todos se reduz ao interesse de cada um, num desserviço
à democracia.
Todo ponto de vista é a vista de um ponto
Ler significa reler e compreender, interpretar.
Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.
Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.
A cabeça pensa a partir de onde os seus pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre um interpretação.
Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.
Com estes pressupostos vamos contar a história de um águia, criada como galinha. Essa história será lida e compreendida como uma metáfora da condição humana. Cada um lerá e relerá conforme forem seus olhos. Compreenderá e interpretará conforme for o chão que seus pés pisam.
Os antigos bem diziam: habent sua fata libelli, os livros têm seu próprio destino. Tinham razão, porque o destino dos livros está ligado ao destino dos leitores. E aí entram em cena a águia e a galinha, carregadas de significação, como veremos ao longo de nossa história.
Esperamos que para você a águia e a galinha se transformem também em símbolos e sacramentos da busca humana por integração e por equilíbrio dinâmico.
Desejamos que a águia sepultada desperte e voe, ganhando altura e ampliando os horizontes de sua releitura e compreensão de você mesmo e do mundo.
Convidamos você a fazer-se, junto com as forças diretivas do universo, co-criador/co-criadora do mundo criado e por criar.
Leonardo Boff
Querência de McKenzie/Padula, Sossego, MG, verão de 1997