DILEMA E DESAFIOS POSTOS PARA A SOCIEDADE BRASILEIRA
PLINIO ARRUDA SAMPAIO
Dilema
APALAVRA
dilema
refere-se a situações que colocam para um sujeito qualquer a necessidade de
escolher entre alternativas igualmente difíceis e penosas. De acordo com esse
conceito, a sociedade brasileira, enquanto sujeito histórico, encontra-se
rigorosamente diante de um dilema. As mudanças econômicas e políticas
ocorridas, em âmbito planetário, nestas duas últimas décadas, obrigam-na a
escolher entre duas alternativas igualmente difíceis e de elevado custo social.
O debate sobre os fatores que conduziram o
país a essa situação provoca, como é natural, muita controvérsia, mas
todos, na direita e na esquerda, concordam em um ponto: o fator determinante da
situação em que nos encontramos foi a inviabilização do modelo econômico
que vinha sendo implantado desde as primeiras décadas do século XX, em razão
das mudanças ocorridas no sistema capitalista e na ordem política
internacional, nas décadas finais daquele século.
Como as possibilidades de integração
social e territorial do país dependiam do dinamismo do modelo econômico, a
inviabilização deste acarretou a anulação dos mecanismos que possibilitariam
o avanço na construção do Estado. Um avanço, convém ressaltar, ambíguo e
vacilante, pois se baseava em combinações de atraso-moderno, inclusão-exclusão,
concentração de renda-incorporação de massas, elitismo político-ampliação
da participação popular – que impunham enormes sacrifícios à maioria da
população e tornavam a nação extremamente vulnerável aos movimentos do
capital internacional.
“O que permitia aos brasileiros conviver com as gritantes injustiças
sociais era o intenso dinamismo da economia. Muitos observadores (inseridos nos
segmentos sociais privilegiados, evidentemente) descobriram nesse dinamismo uma
fonte de legitimidade para um sistema de poder que gerava tantas injustiças”
(Furtado, 1992: 12).
A
opção da elite dirigente
Colocada diante do dilema, a elite dirigente – depois das muitas idas e
vindas que marcaram o curso da política do país desde a metade dos anos 70
até o
final da década de 80 – desistiu completamente de dar prosseguimento ao projeto de construção
do seu Estado-nação. Ela, que vinha se preparando para isto desde os tempos da
ditadura militar.
“Os estratos burgueses aprenderam a mudar a qualidade das suas percepções
e explicações do mundo, procurando ajustar-se a ‘avaliações pragmáticas’,
que representam o subdesenvolvimento como um ‘fato natural’ autocorrigível
e estabelecem como ideal básico o princípio, irradiado dos Estados Unidos, do
‘desenvolvimento com segurança’. Dava-se assim o último salto na limpeza
do sótão. A burguesia brasileira encontrava novos elos de ‘modernização’,
descartando-se de suas quinquilharias históricas libertárias, de origem européia,
substituídas por convicções bem mais prosaicas, mas que ajustavam seus papéis
à ‘unidade do hemisfério’, à ‘interdependência das nações democráticas’
e à ‘defesa da civilização ocidental’” (Fernandes, 1976:
314).
Acuada entre a necessidade de enfrentar as
forças dominantes no sistema capitalista para prosseguir o processo de construção
do seu Estado ou renunciar a ele, a elite ficou sem capacidade de reação e
acabou tendo de aceitar as imposições dos núcleos centrais do sistema econômico
e político da ordem capitalista mundial. Deixou de lado qualquer veleidade de
autonomia, passando a buscar desesperadamente alguma forma de inserção no
mercado internacional. Para tanto, não teve pejo de alienar parcela importante
do patrimônio nacional, de permitir a desnacionalização da indústria do país,
de abrir o mercado brasileiro à predação dos capitais especulativos, e de
assistir, indiferente, ao empobrecimento do povo e ao agravamento da situação
social.
A expectativa da elite é que, “fazendo a lição de casa” passada
pelos organismos do Consenso de Washington, os capitais estrangeiros afluam ao
país e dinamizem a economia estagnada há duas décadas, criando assim condições
para atenuar a situação social e para re-legitimar o seu domínio no contexto
de uma democracia restrita. Esta expectativa não tem fundamento. Como explicou
Celso Furtado (1992: 13), “Na lógica da ordem econômica internacional emergente parece ser
relativamente modesta a taxa de crescimento que corresponda ao Brasil. Sendo
assim, o processo de formação de um sistema econômico já não se inscreve
naturalmente em nosso destino nacional”.
A evolução econômica destes 10 anos só fez confirmar essa previsão. Ao renunciar
ao projeto nacional, a elite dirigente renunciou igualmente a desempenhar
qualquer função civilizatória no país. Transformou-se em um segmento parasitário,
obcecado em manter o seu dinheiro e os seus privilégios a qualquer preço, como
o comprova a onda de corrupção que tem acompanhado a desnacionalização da
economia, o desmantelamento do Estado e a perda da autoestima do povo.
A guerra de todos contra todos, hoje aberta
e declarada em todo o país, ameaça desembocar em um longo período de caos e
barbárie ou na inevitabilidade de formas autoritárias de controle da insatisfação
popular.
A primeira alternativa que o dilema
brasileiro coloca para a nossa sociedade está portanto cheia de dificuldades e
sofrimentos.
Falso
e verdadeiro dilema
As análises da situação brasileira,
feitas com o propósito de racionalizar os interesses da elite dirigente,
concluem invariavelmente pela existência de duas alternativas abertas para o país:
inserção do Brasil na ordem mundial emergente ou barbárie.
Os ideólogos da elite afirmam que esta fez
a opção “realista” pela primeira alternativa.
Esta forma de apresentar o dilema brasileiro
não corresponde à realidade. Fazer crer na possibilidade de inserção não-subordinada
na ordem mundial que se está construindo com base no Consenso de Washington é
uma falácia. Tal alternativa não existe.
O novo ordenamento do sistema capitalista
provoca uma reformulação da divisão internacional do trabalho prevalecente
durante a etapa de expansão do capitalismo industrial. De acordo com os parâmetros
fixados pelas forças que comandam a transição do capitalismo industrial ao
capitalismo globalizado, as economias periféricas devem se especializar na
produção daqueles bens e serviços em relação aos quais apresentam
“vantagens comparativas”.
Ora, essa re-especialização é incompatível com a independência econômica
porque agrava limitações que impediram, no passado, o desenvolvimento dos países
então periféricos: dependência exagerada das exportações; dificuldade para
a introdução de tecnologia moderna na economia; crises cambiais. As crises
cambiais de 1997-1998, que atingiram duramente os países asiáticos e latino-americanos são
um claro sinal do que significa especialização no mundo globalizado. Por isso,
a inserção na ordem mundial, nos termos do Consenso de Washington, será
sempre subordinada, dê-se a ela o nome que se der.
Poder-se-ia opor a este raciocínio a objeção
de que a elite dominante brasileira não optaria por uma inserção subordinada,
porque tal alternativa contradiz seus próprios interesses, uma vez que a coloca
em posição subalterna diante das forças que passarão a controlar a economia
nacional. A contradição é aparente, porque a opção permite à elite
realizar seus dois grandes objetivos: manter internamente a hegemonia do poder
político; e modernizar seus padrões de consumo. A subordinação a comandos
externos, portanto, não a perturba, ainda que represente a manutenção do país
em estado de subdesenvolvimento, o aumento do hiato entre o nosso país e as nações
tecnologicamente mais adiantadas e o agravamento do “apartheid
social”.
A alternativa da elite é que tem conduzido
o país à barbárie.
Os sinais disto já não podem ser ocultados. Basta ver a violência da
luta pela terra, que cobra mortos e feridos praticamente a cada dia; o aumento
explosivo tanto da criminalidade difusa quanto do crime organizado nas cidades;
a multiplicação das situações de duplo poder nas periferias dos grandes
centros; a incidência da morte violenta como a principal causa mortis
dos jovens entre 16 e 25 anos; a proliferação das favelas e dos “sem teto”; o reaparecimento
de enfermidades decorrentes da falta de saneamento e de higiene, como a dengue e
a cólera; a extraordinária deterioração do ensino público.
Todos esses males sociais são o resultado
do “modelo de inserção subordinada”, pois são conseqüência direta do
desemprego; da propagação da cultura consumista; da concentração de renda
nos estratos superiores da pirâmide social; da “austeridade fiscal”, que
retira recursos dos serviços públicos para garantir o pagamento da dívida
interna e externa do Estado.
Nesse contexto, a proclamada “inserção não-subordinada”,
mencionada pelos ideólogos da elite, não passa de uma expressão usada apenas
para “salvar a face”, ou então para iludir os grupos sociais que ainda
alimentam a esperança de construir uma nação autônoma sem pagar os preços
que isto requer.
Para os que não querem se deixar iludir, há uma outra alternativa, que
não representa a barbárie e que pode salvar os valores da civilização – a
retomada da construção nacional.
Optando pela construção da nação, o país
não poderá fugir das dificuldades e do sofrimento, porque disso não escapa a
sociedade que vive um dilema, mas caminhará na direção de uma nação
civilizada, livre dos males sociais que hoje o caracterizam.
A
opção pelo projeto de construção nacional
Como a construção nacional foi sempre um
processo ambíguo e contraditório, convém esclarecer inicialmente que, na
atual conjuntura, a nação cuja construção pode ser retomada não consiste,
de modo algum, na reprodução do modelo econômico e do modelo político do
passado, quando o processo era comandado pela atual elite dirigente.
Para que represente de fato um avanço na
longa transição do Brasil-colônia ao Brasil-nação, a construção da nação
tem de ter outro fundamento e outra direção, que exigem outra estrutura de
poder e outro programa político.
Em um estudo sobre os “Impasses da Formação
Nacional”, Plínio Sampaio Jr. tratou dessa questão sob um enfoque novo.
Vale, por isso, alongar-se um pouco na transcrição do seu raciocínio:
“Antes de condicionar a emergência de
nossa nacionalidade ao aparecimento de uma nova raça oriunda da mestiçagem, ao
controle de um vasto território rico em recursos naturais e às ilimitadas
potencialidades de sua economia, à estruturação de um aparelho de Estado
capaz de impor a autoridade da ordem e a descabidos sonhos ufanistas de um hipotético
Brasil-potência – concepções chauvinistas que ocultam a natureza hierárquica
e autoritária de nossa formação social –, o pensamento democrático entende
a afirmação da nacionalidade como a necessária cristalização de uma
sociedade homogênea, portadora dos valores humanistas da civilização
ocidental, baseada em nexos morais entre as classes sociais e na existência de
laços orgânicos entre as diferentes regiões do país.
Nesta abordagem, o espaço nacional não passa de um instrumento para
proteger a coletividade dos efeitos destrutivos das transformações que se
irradiam desde o centro do sistema capitalista mundial e para planejar a
internalização das estruturas e dos dinamismos da civilização ocidental de
modo condizente tanto com o aumento progressivo do grau de autonomia e
criatividade da sociedade quanto com a elevação da riqueza e do bem-estar da
totalidade do povo. Pensada como um centro de poder que condensa a vontade política
da coletividade, a fórmula nacional é aqui – única e exclusivamente – um
meio de sociedades que vivem sobre determinadas pelo campo de força do sistema
capitalista mundial controlarem o seu tempo histórico. Trata-se, portanto, de
um instrumento, historicamente determinado, que deveria ser ultrapassado por
formas superiores de organização social e política, de alcance supranacional,
assim que o contexto histórico mundial o permitisse. Isto é, assim que a ordem
mundial deixasse de estar sob o domínio da lógica da concorrência
intercapitalista e das rivalidades interestatais do imperialismo” (Sampaio
Jr., 1999:
46).
Alguns analistas do caso brasileiro entendem
que não é mais possível retomar a construção nacional. Segundo eles, a
globalização da economia enfraqueceu de tal maneira o poder regulador dos
Estados, que estes não têm mais como controlar seu espaço econômico.
Ademais, o fim da bipolaridade do sistema político internacional estreitou
tanto as margens da barganha política dos países subdesenvolvidos, que estes não
podem mais usar este recurso para se afirmar como nações, no sentido que esta
palavra adquiriu nos séculos XIX e XX.
Este argumento pode ser assim resumido:
constitui uma verdadeira ingenuidade a tentativa de fortalecer o edifício
nacional que começou torto e ficou incompleto, exatamente na hora em que, em
todo o mundo, a forma política do Estado-nação está sendo minada por dentro
e por fora. Por den-tro, em razão das secessões étnicas, regionais e
religiosas que corroem o cerne mesmo da nação – o sentimento de identidade;
por fora, em razão do poder crescente das organizações supranacionais que lhe
restringe a soberania.
Para refutar esse raciocínio falacioso basta lembrar o nacionalismo
exacerbado das sete nações que, à revelia da ONU, conformam o “comitê diretor” da política
mundial nos dias de hoje. Alguns exemplos recentes bastam para demonstrar que,
para essas nações, o Estado-nação não foi “historicamente
ultrapassado”. A Corte Penal Internacional, criada pela ONU, não conseguiu se instalar até hoje porque
os Estados Unidos recusam-se a admitir que sua jurisdição abranja os cidadãos
norte-americanos. A França bloqueou faz pouco tempo a aprovação do AMI
(Acordo
Multilateral de Investimentos) sob a alegação de que o mesmo feria a soberania
francesa. Que dizer então do conflito entre os Estados Unidos e os países
europeus a respeito da liberalização do comércio agrícola internacional?
Não há como falar em obsolescência do Estado-nação. Que outra forma
de poder político poderemos construir, nós os subdesenvolvidos, para resistir
a esses nacionalismos agressivos e à dura realidade de uma divisão
internacional do trabalho, que impede os países subdesenvolvidos de organizar
sistemas produtivos aptos a eliminar a miséria absoluta que atinge grande parte
de suas populações?
A escolha real que está posta para a nossa
sociedade não é, pois, como querem os ideólogos da elite, a de se inserir
(inevitavelmente de forma subordinada) na ordem internacional emergente ou
projetar-se na barbárie na tentativa impossível de completar uma forma anacrônica
de organização do poder político. A escolha real consiste em inserir-se
subordinadamente nessa ordem ou lançar-se na empresa histórica de completar a
construção da nação, a fim de fugir ao destino inglório da re-colonização.
Não se deve entender que este caminho
represente uma opção por isolar-se da comunidade internacional. Trata-se
apenas de uma modalidade nova de relacionamento com essa comunidade, a fim de
que a absorção de tecnologia gerada em outras partes do planeta se faça em
função dos interesses do conjunto da população e da soberania do país e não,
como agora, em função exclusivamente da modernização dos padrões de
consumo.
A sociedade brasileira tem condições de dar esse passo, primeiro porque
o sentimento nacional já penetrou consideravelmente em todas as camadas da
população e em várias instituições estratégicas para a formação de um
Estado nacional; em segundo lugar porque o desenvolvimento das forças
produtivas já atingiu em nosso país um patamar suficiente para produzir os
bens e serviços requeridos para assegurar um padrão de vida adequado a todos
e, finalmente, porque, como disse Celso Furtado (1992: 12, “Em poucas áreas do mundo a relação homem/recursos
naturais, inclusive solo e água para agricultura, é tão favorável como entre
nós”.
Não há dúvida, entretanto, de que a
construção nacional constitui uma via de dificuldades e penas, porque, para
retomar esse processo são indispensáveis decisões que afetam interesses muito
poderosos.
A primeira dessas decisões diz respeito à
redistribuição da riqueza e da renda, hoje extremamente concentradas nos
patamares superiores da pirâmide social. Sem tal redistribuição, será impossível
transformar o mercado interno em núcleo dinamizador da economia, e, sem uma
economia dinâmica, não serão produzidos, em qualidade e quantidade, bens e
serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades básicas de toda a
população.
Não há, contudo, que confundir o atendimento das necessidades básicas
da população com o consumismo característico dos países capitalistas
industrializados. Nossa economia não dispõe de recursos para proporcionar esse
padrão de consumo a 170 milhões de habitantes e mesmo que dispusesse, não haveria como evitar
uma catastrófica agressão ao meio ambiente, uma vez que a característica
desse tipo de consumo é o extraordinário desperdício. Por isso, quando se
fala em atender às necessidades básicas da população, está-se falando de um
consumo frugal, compatível com o objetivo de satisfazer todos os habitantes sem
comprometer o meio ambiente. Um consumo frugal, mas nem por isso impeditivo de
proporcionar a todos, como atributo da cidadania plena, um padrão de vida que
ponha ao alcance dos brasileiros os meios de acesso ao conforto e aos avanços
intelectuais, morais e espirituais da civilização.
O mercado interno dinâmico constitui uma
condição indispensável para dar estabilidade à economia. Como se assinalou
anteriormente, quando o dinamismo da economia depende da demanda externa,
aumenta sua vulnerabilidade às flutuações de preços determinadas por
movimentos fora do controle dos centros internos de decisão.
A segunda decisão crucial a ser tomada para
reativar o processo de construção nacional refere-se à ruptura dos laços de
dependência externa. A dependência subordina o processo de acumulação de
capital ao controle de empresas que visam exclusivamente o lucro e, conseqüentemente,
dirigem seus investimentos para os setores que mais podem proporcioná-lo. Em
conseqüência, enquanto esse controle não for suprimido, será impossível
canalizar o excedente econômico para a ampliação da capacidade produtiva
daqueles bens e serviços necessários ao atendimento das necessidades básicas
de toda a população.
“Efetivamente, o nosso desenvolvimento
econômico, enquadrado no sistema imperialista – e é isso que se propõe com
o apelo ao concurso de empreendimentos imperialistas, e que de fato se está no
momento realizando no Brasil – se pautará necessariamente pelos interesses
dos trustes aqui instalados que se farão, como já acontece e será cada vez
mais o caso, o elemento principal e fator decisivo da nossa economia. São os
trustes que fixarão as normas, o ritmo e os limites do desenvolvimento, para
eles naturalmente determinados pelo montante dos lucros que a economia
brasileira é capaz de proporcionar. E que limites são esses? Encontramo-los na
margem dos saldos financeiros que o Brasil oferece nas suas contas externas, a
saber, aqueles que resultam do nosso intercâmbio com o exterior.
De fato, o lucro auferido pelos empreendimentos imperialistas no Brasil
somente se podem liquidar (e somente então constituirão verdadeiros lucros)
com os saldos do nosso comercio exterior, uma vez que é da exportação que
provêm nossos recursos normais em moeda internacional. Descontada a parte
desses recursos que se destina a pagar as importações, é do saldo restante, e
somente deles, que poderá sair o lucro dos empreendimentos aqui instalados
pelos trustes. Na base do previsível para esse saldo, portanto, fixarão os
trustes o limite de suas atividades; e portanto, em conseqüência, o do
desenvolvimento brasileiro que no sistema vigente é por eles enquadrado”
(Prado Jr., 1987:
88).
A longa citação de um texto escrito há 30 anos ajuda a entender porque o
desenvolvimento precisa basear-se nos recursos do país e fornece ademais um
elemento para compreender porque nosso país não conseguirá jamais se libertar
do endividamento externo, enquanto sua economia depender dos capitais
estrangeiros.
O desenvolvimento do espaço econômico
nacional supõe a existência de um Estado capaz de controlar a introdução no
país dos avanços das técnicas produtivas. Se esse controle já era difícil
na etapa anterior, em que o capital transnacional se deslocava para a periferia,
a fim de disputar os mercados desses países, mais difícil é agora, quando o
capitalismo passa, em ritmo vertiginoso, a concentrar nas economias centrais,
tanto o capital quanto a inovação tecnológica.
A simples menção das medidas que se
necessitará tomar para cumprir essas duas pré-condições da retomada do
processo de construção nacional deixa ver quão difícil e penoso será ele.
A extraordinária resistência da elite à
realização de um arremedo de reforma agrária indica quão acirrada será a
luta para realizar uma redistribuição da riqueza e da renda que promova,
efetivamente e em prazo relativamente curto, a homogeneização da sociedade
brasileira. É ilusório imaginar que isto possa ser conseguido sem enfrentar o
boicote de empresários, a ofensiva da mídia, a resistência difusa de todos
quantos terão de perder privilégios para que o país possa progredir.
As reações dos núcleos centrais do sistema capitalista e das grandes
potências mundiais a uma política econômica voltada para a retomada da
construção nacional são também bastante previsíveis: fechamento das linhas
de financiamento; obstáculos às exportações; fuga de capitais; recusa de
transferência de tecnologia. Uma política de ruptura com a dependência
significa o fim dos privilégios hoje concedidos às firmas transnacionais, o
que provocará, sem sombra de dúvida, ferrenha reação. Tendo em vista o
alarme que o chamado “efeito dominó” causa nas potências dominantes, não
se deve descartar que às pressões econômicas se acrescentem pressões diplomáticas
e até militares – episódios usuais no tempo da Pax Britannica e da gun
boat diplomacy, os quais continuam ocorrendo, sob novas formas, no Iraque,
na Iugoslávia, na Líbia, no Sudão e em Cuba.
Obviamente, as represálias causarão
dificuldades e sofrimentos para a população brasileira. Mas, embora alguns não
acreditem, temos todas as condições para resistir.
Com essa visão realista do presente e do
futuro, é possível apontar os desafios decorrentes da alternativa que, como
ensinou Caio Prado Jr., corresponde ao sentido mais profundo da nossa evolução
histórica: a transição do Brasil-colônia ao Brasil-nação.
“É assim que se há de abordar a realidade brasileira atual, o que
leva a considerá-la como situação transitória entre, de um lado, o passado
colonial e o momento em que o Brasil ingressa na história como área geográfica
ocupada e colonizada com o objetivo precípuo de extrair dessa área produtos
destinados ao abastecimento do comércio e mercado europeus; de outro lado o
futuro, já hoje bem próximo, em que essa mesma área e seu povoamento, afinal
nacionalmente estruturados, comportarão uma organização e sistema econômico
voltados essencialmente e fundamentalmente para a satisfação das necessidades
dessa mesma população que a ocupa, e capazes de assegurar a essa população
um nível e plano de existência consentâneos com os padrões da civilização
e cultura de que participamos” (Prado Jr., 1987: 88).
Desafios
Ao examinar os desafios que a situação
atual coloca para a sociedade brasileira, é preciso, preliminarmente,
determinar quem está sendo desafiado. Como a elite brasileira renunciou ao
projeto de construção nacional, o desafio logicamente não se dirige a ela e
sim a um conjunto formado por segmentos sociais bastante diversos, mas que têm
em comum o fato de serem todos eles prejudicados pelo “modelo de inserção
subordinada”.
Dada a dificuldade de aplicar à nossa
sociedade atual as clássicas definições de classes sociais, pode-se chamar
esse conjunto de “classes populares”.
Pensar
o Brasil e o mundo
fora dos parâmetros estabelecidos
O primeiro desafio posto para as classes populares consiste em pensar o
Brasil e o mundo com liberdade. Quem o diz é Celso Furtado (1992:
76):
“O desafio que se coloca no umbral do século XXI é nada menos que mudar o curso da civilização,
deslocar o seu eixo da lógica dos meios a serviço da acumulação, num curto
horizonte de tempo, para uma lógica dos fins em função do bem estar social,
do exercício da liberdade e da cooperação entre os povos”.
Não é nada fácil pensar fora dos parâmetros
da ortodoxia estabelecida pelas instituições que racionalizam a dominação da
elite, aí compreendidas a academia, a mídia, a administração pública. Essa
ortodoxia penetrou tanto na cultura e na consciência do povo que já adquiriu o
estatuto de verdadeiro “senso comum”. Para pensar fora dos seus parâmetros,
é preciso que as classes populares, mediante suas organizações, seus
movimentos e suas lutas, consigam criar foros de reflexão autônomos e formar
intelectuais orgânicos, aptos, não só a formular novos diagnósticos e estratégias
para superar o subdesenvolvimento, como a assumir corajosamente a luta ideológica
destinada a desfazer o “senso comum” criado pelos dominantes.
Só no bojo de um processo com esses
objetivos e essas características, as classes populares terão condições de
expandir a consciência da dominação a que estão submetidas. Desta consciência,
e só dela, é que poderão surgir os elementos de força requeridos para
derrotar a elite, assumir o poder e executar o seu programa de transformação
social.
O desafio abrange ainda a capacidade de
gerar movimentos, instituições, lideranças e partidos aptos a organizar e
dirigir a luta política, conseguir a unidade do povo e dar os golpes decisivos
na dominação da elite dirigente. A dificuldade maior para atingir esses
objetivos consiste em recusar o eleitoralismo e combinar adequadamente a atuação
política dentro dos marcos da institucionalidade estabelecida pela elite com a
pressão direta de massas por suas reivindicações e pelo aprofundamento da
democracia em todos os planos da nossa sociedade.
Florestan Fernandes sintetizou as tarefas
dessas organizações das classes populares em três breves consignas, que podem
ser assim resumidas: não se deixar cooptar pela ordem e pelo pensamento
racionalizador dos interesses da elite; não se deixar aniquilar em movimentos
temerários e aventureiristas; desenvolver a habilidade de conseguir vitórias
para o povo. Toda uma ética está contida nessas recomendações. Essa ética
exige que as vanguardas das classes populares não escondam a realidade do povo
e nem rebaixem os objetivos da revolução popular.
Derrotar
a mentalidade colonizada
da elite e dos segmentos contaminados por ela
O segundo desafio é correlato com o
anterior: trata-se de derrotar a mentalidade colonizada que impera entre os
segmentos superiores da pirâmide social e contamina as camadas populares. A
mentalidade colonizada provoca o sentimento de inferioridade, a idéia enganosa
de que não temos condições de vencer o subdesenvolvimento sem a ajuda do
pensamento mais avançado, formulado no estrangeiro; sem os recursos técnicos
concentrados nesses países; e sem as virtudes morais e a capacidade psicológica
desses “seres superiores”. Enquanto esse tipo de consciência for dominante,
não só na elite, mas mesmo entre as classes populares, será impossível
“pensar fora dos parâmetros estabelecidos” e superar outro grande obstáculo
ao nosso desenvolvimento: o consumismo.
O consumismo consiste em uma atitude mental
que tomou conta das classes situadas nos patamares superiores da pirâmide
social e que a mídia transformou em ideal de vida e disseminou até entre
aqueles que jamais terão renda capaz de sustentar um nível elevado de consumo
de bens e serviços. O consumismo é a outra face da mentalidade colonizada,
pois deriva do fascínio com os padrões de consumo típicos dos extratos médios
e superiores dos países desenvolvidos. Tais padrões, difundidos pelo cinema e
pela televisão, constituem hoje, para as multidões, a expressão maior da
felicidade humana.
Enquanto o sentimento de inferioridade e o
consumismo desenfreado povoarem o consciente e o subconsciente das pessoas,
inclusive das que integram as classes populares, será impossível organizar um
sistema de produção de conhecimentos científicos e tecnológicos adaptados às
nossas necessidades e às nossas possibilidades, bem como usar esses
conhecimentos para embasar uma organização econômica apta a fornecer os bens
e serviços requeridos para propiciar um padrão de consumo adequado a toda a
população e para garantir a soberania da nação.
Conquistar
o poder
político e montar um Estado eficaz
O terceiro desafio dirige-se aos movimentos
e, mais especialmente, aos partidos que representam os interesses e visões de
mundo das classes populares. Trata-se de conquistar o poder do Estado,
transformando-o em um instrumento de democracia, de desenvolvimento econômico e
de promoção da eqüidade social.
A esse Estado caberá a tarefa de
proporcionar terra e meios de desenvolvimento à população rural; trabalho
produtivo, remuneração adequada; moradia digna aos habitantes da cidade:
terra, trabalho e teto. Não poderá cumpri-la sem assegurar a toda a população
educação de qualidade e atenção à saúde.
Para atingir tais objetivos, esse Estado
precisa estar presente em todo o território nacional; dispor de instituições
aparelhadas para orientar o desenvolvimento econômico e regular o mercado no
espaço econômico nacional; assegurar o pleno exercício da cidadania democrática
a todos os habitantes; proporcionar os serviços públicos básicos; estar
preparado militarmente para defender com eficácia a integridade do território
e a soberania nacionais.
Conclusão
A consciência de que a sociedade brasileira
vive um dilema obviamente não permite antever cenários róseos para os próximos
anos. Nem por isso, justifica-se uma atitude de desânimo ou desespero.
Novamente a história nos põe diante de uma decisão crucial. Este é um dado
positivo, pois, se as forças populares conseguirem vencer os desafios com os
quais se defrontam, os futuros habitantes do Brasil poderão viver em uma
sociedade justa, bem mais democrática e bem mais agradável que a de hoje.
Resta-nos, nestes tempos difíceis, a grandeza de lutar para atingir esse
objetivo – uma empreitada que dará sentido à existência dos que nela se
engajarem.
“Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de
feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos transportados de
outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino
melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país
sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade lingüística e
religiosa. Mas nos falta a experiência das provas cruciais, como as que
conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos
falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades, e
principalmente de nossas debilidades. Mas não ignoramos que o tempo histórico
se acelera, e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber
se temos um futuro como nação que conta na construção do devir humano. Ou se
prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico
de formação de um Estado-nação” (Furtado, 1992: 35).
Referências bibliográficas
FERNANDES, Florestan. A revolução
burguesa. Zahar, 1976.
FURTADO, Celso. Brasil: A construção interrompida. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1992.
PRADO Jr., Caio. A revolução brasileira, 7ª
ed. São
Paulo, Brasiliense, 1987.
SAMPAIO Jr., Plínio. Os impasses da formação nacional. In: José Luiz Fiori (org.). Estados
e moedas no desenvolvimento das nações, Coletânea. Rio de Janeiro, Vozes, 1999.
Plínio Arruda Sampaio, advogado, foi coordenador do Plano de Ação do
Governo Carvalho Pinto. Dirige atualmente o jornal semanal Correio da
Cidadania.
Texto publicado na revista Estudos Avançados, 14(40):64-76, set/dez.2000.
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