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A EXPLICITAÇÃO DA QUESTÃO DA EXISTÊNCIA E A
NOÇÃO DE NARRATIVA DE FICÇÃO EM SARTRE

                                                                                                         (por Renato Araújo)
 
 
 
“Em toda atividade descobre-se uma liberdade,
particularmente na atividade intelectual porque dá pouca margem à repetição”
Simone de Beauvoir – “Na força da Idade”  I Pg. 13

   Desvendar, remeter, dar testemunho... a função  do escritor, consagrada pelo estatuto da consciência reconhece como sua realidade irrecusável a atividade da liberdade. Dever-se-ia circuscrever um fundamento do seu próprio trabalho não fosse a liberdade para a consciência o fundamento daquilo que não tem fundamento.
    Fala-se nesse momento de invenção. O autor recria o mundo em sua evidência. Tal otimismo ordenador molda por seus próprios princípios acontecimentos que de direito não são menos verdadeiros que os acontecimentos de fato. Esse é o sentido da narrativa de ficcão em Sartre, o desvendar de uma factualidade que não tem menos significatividade que os eventos da experiência concreta. O escritor busca em sua “invenção” reportar por meio da estrutura da existência humana, o embate das situações.
   Qual é o terreno dessa invenção?  Ela em algum instante conhecera limites? Vê-se conflitos entre o fato narrado e o fato vivido? Em primeiro lugar, Sartre insiste em descartar a narrativa pois a ordem narrativa é ordem falaciosa. A narrativa hesita diante do fracasso. Ela contorna o abismo entre a palavra e a coisa, entre o dado e o narrado, entre o mundo e sua impressão. “Pela literatura, pensava, justificamos o mundo recriando-o na pureza do imaginário, e ao mesmo tempo salvamos a própria existência...”(Beauvoir, “Na Força da Idade I Pág.69).
   O ato de escolha, sendo um ato livre, só tem valor não relativo quando afirmado na força da universalidade. Eu só assumo minha individualidade num ato de escolha quando reconheço que este meu ato é um ato que vale para todos. As situações se equivalem sob o ponto de vista da universalidade moral, pois o valor individual da ação é envolvido pela liberdade individual de todos os indivíduos. A mesma liberdade que revela o meu Para-si, a minha consciência, é fatalmente relacionada às outras liberdades. Ora, essa relação é portanto vinculada aos conflitos supostos pela diversificação das liberdades. Eu tenho um ato de escolha que é conferido pelo Para-si como um ato livre,e, ao mesmo tempo, esse ato remete ao ato livre dos outros que equivalem ao meu, possuindo o mesmo estatuto. Por liberdade entendemos um conceito de itinerância( direção do projeto)  em afastamento daquilo que pode ser definido, deduzido, acabado. No entando, este afastamento tende a constituir-se e pode-se falar mesmo que ele quer constituir-se, esse desejo, essa tentativa resultará certamente em fracasso.
    O Em-si, este sim, plenamente definido, acabado, não contém a itinerância da liberdade. A consciência se projeta em diração ao Em-si na pretensão de constituir-se, mas na medida em que ela supõe apreender esse algo, reconhece sua absoluta separação, pois esse ser para o qual a consciência tende é inapreensível. Sartre caracteriza a noção da consciência humana, como um nada em oposição ao Ser. A consciência por ser nada, escapa a qualquer determinismo.Somente ela se auto-determina enquanto atividade de negação. Sendo um "nada, ela "nadifica" seus objetos. A consciência é essencialmente negadora das coisas em-si mesmas, na medida em que se encontra revestida da característica ontológica de ser, ela própria, o seu próprio nada.

    A escolha livre possui um caracter gratuito que precisa ser melhor analisado. Para Sartre, toda escolha é livre e essa liberdade realmente supõe uma gratuidade, já que não há nenhuma instância superior a qual o homem pudesse consultar para definir sua escolha. Mas essa gratuidade representa somente aquilo que no homem é sua falta constitutiva. Nenhuma máxima moral me dira’que ação devo tomar, concebendo essa ação como a correta. E no entanto, eu sou moralmente responsável pela minha escolha porque mesmo ao não optar pela escolha eu já figuro-me em uma, a saber, o quietismo, a abstenção , a imobilidade. Por outro lado,  o homem, se se pode defini-lo, isso só pode ser feito por meio de seu projeto, seu compromisso. Ora, do que foi dito fica claro que a escolha gratuita tem como único guia a liberdade do sujeito em direção à constituição do seu projeto.
   Esse é , grosso modo, o pano de fundo da reflexão sartreana do estatuto ontológico da humanidade. O a consciencia é esse projetar-se em direção à constituição de si e ao mesmo tempo em que projeta, remete-se para fora, ou seja, perde-se no exterior perseguindo nessa trancendência que lhe é peculiar a finalidade de sua existência. Esse movimento de transcendência deve ser visto pois, como a própria construção da subjetividade, uma vez que essa construção não é dada no sujeito em si mesmo. Ele a busca para-fora-de-si, experimentando permanentemente um jogo entre uma transcendência e uma imanência porque, se por um lado, o sujeito parte em busca deste constituir-se no qual seu ego está adiante de si, e, por consegüinte está no domínio da contingência porque percebe que este “fora” é inessencial. Por outro lado, ele se vê às voltas de sua própria história como também uma construção dele, como o resultado daquilo que ele faz com sua liberdade.
    Essa relação entre a realidade histórica, vista como relatividade histórica, pois nenhuma determinação constitui o indivíduo e a realidade ontológica da consciência, vista como  relatividade da consciência, pois não há nada na consciência e por isso se diz que consciência é sempre consciência de algo, nos permite observar a visão sartreana do papel conferido à literatura. Uma vez que a escolha do sujeito tem caráter absoluto, já que este é o caráter mesmo da consciência – sua irredutibilidade, esta escolha livre é equivalente ao destino(1)
   De qualquer modo, não havendo uma redutibilidade do sujeito em nível histórico enquanto um determinar-se, conclui-se daí que nem pode o sujeito abandonar-se ao destino e por consegüinte, ele não poderia abandonar-se a qualquer determinação histórica. Em suma, ele deverá sempre assumir uma posição, no limite, a partir do nada. E essa é mesmo a função da literatura; Você tem um indivíduo em sua escolha absoluta particular exigindo algo que desvele para si o universal que é o campo da história ao qual o indivíduo está estreitamente relacionado. O que faz a tentativa de mediação (que não é extrema e ,por isso,  nem sempre alcançada) entre esse particular e aquele universal é justamente a narrativa ficcional. A narrativa busca em seu desvelamento do real a interpenetração entre o relativo e o absoluto.
    Vemos que Sartre concentra seu esfoço na superação entre o abstrato e o concreto. É a mesma preocupação da dialética hegeliana enquanto processo que se eleva a ponto de alcançar a unidade na diferença. Essa é a tarefa da filosofia para o filósofo alemão, o constituir-se da unidade latente na diversidade. Hegel separa o universal e o concreto das determinações e com isso reduz a significatividde na identidade mostrando a importância do sistema de relações. Sartre também toma de Heidegger o projeto de reconciliar o objetivo com o subjetivo
  “si la littérature nést pas tout, elle ne vaut pas une heure de peine. Cést cela que je veux dire par ‘engagemente’. Elle sèche sur pied si vous la réduisez à l’ innocence, à des chansons si chaque phrase écrite ne resonne pas à tous le niveaux de l’homme et de la societé, elle ne signifie rien”
( Sartre, Situations ix “Sur Soi-Même Pág. 15). Mediar, relacionar, reconstruir; a literatura, ao delinear o conflito ordinário das consciências retoma o sentido histórico que está contido na experiência das subjetividades. Esse senso histórico, contudo, não se trata de uma justificativa da preservação dos ideais de classe tal como se figurava na geração de escritores que precedeu a geração de Sartre. Esses escritores consideravam o desenvolvimento histórico da sociedade como uma ação do passado sobre o presente ( Ver: “Que é literatura Pag. 152) sem o vislumbre de uma totalidade sintética do tempo, sem sequer uma apreensão sintética dos indivíduos em suas singularidade; numa palavra, faltou-lhes a compreensão no sentido em que dava Karl Jaspers/hegel e mesmo Heidegger dão ao termo. Para estes escritores da geração que precedeu a de Sartre, se impõe “um mito objetivo segundo o qual a literatura deveria escolher temas eternos , ou ao menos inatuais”. Esse empreendimento falsifica as verdadeiras relações humanas que devem se constituir no âmbito do concreto. Cada situação, no limite, se equivale. Não há, neste sentido, uma situação, a saber, do herói romanesco, que seria privilegiada em relação às demais. A literatura atinge então esse reconhecimento do qual falava Hegel, o qual “salva os homens da imanência e da contingência”(Ver: “Na Força da Idade Pág. 157). Essa temporalidade sintética permite que um evento histórico seja objeto de um romance.
As singularidades   representam-se a si mesmas e aos outros, nessa relação intermitente, o fato a constituir-se é imediato e se dá ao mesmo tempo em que se constitui a situação.
  “Jéntends par roman, une prose que se donne pour but de totaliser une temporalisation singulière et fictive.”(Situations ix “je-tu-il” pag.277-315).
A experiência do singular remete à essa experiência de totalização na qual é possível fazer uma teoria das situações. Não se trata pois de uma narração no sentido tradicional do termo, uma estória contada segundo os eventos de uma temporalidade analítica, parcial. Com a função da literatura organizada pela facticidade histórica do homem às voltas de uma realidade objetiva, o escritor não terá aí apenas um termo do qual falar, mas encontrará também uma urgência e uma atualidade inescapável nessa mesma realidade objetiva.
   Sua geração não teve escolha. “Brutalmente reintegrados à história, éramos acuados a fazer uma literatura de historicidade”.
( “Que é Literatura”Pg. 159). Pode-se falar portanto em uma reincorporação violenta com a história. As gerações que precederam a de Sartre não vislumbraram esse aspecto coercitivo e inelutável das circunstâncias históricas. Redescoberta a função da literatura, sua geração se depara com um tema que não pode ser ignorado. Assim, diante desta surpreendente situação o escritor deve assumir a historicidade.(2)
    Esse rigor característico da própria função da literatura impõe à narração do romance certas perspectivas também rigorosamente determinadas. Todo o construto lógico-onológico das situações são elaborados, tudo sempre em vista à estrutura básica da posição do sujeito no mundo. Assim, paralelamente à falta de narrativa interna nos romances, vê-se a desconcentração da atitude positiva frente aos acontecimentos. O “herói”, por assim dizer, não tem de estar necessariamente de posse da atitude moral , isto é, não cabe a ele necessariamente a absolutização ou universalidade de seus atos  Agem por vezes, ao contrário, por deliberação gratuita, sem intenção, sem “atividade”, sem compromisso. Sua mente, como a dos demais personagens é semi-lúcida, semi-obscura, mas nunca totalmente obscura ou totalmente  lúcida. Isso explica em partes a razão porque Sartre não apresenta em seus romances uma personagem que representaria em seu total rigor suas condições filosóficas  impostas por suas concepções da estrutura do Para-si. Uma personagem que encarnasse esse rigor estóico de plena positividade e autencidade falsearia a narrativa sartreana que se pretende sobretudo realista(em sentido fraco). (3) Uma consciência plena, tal como reinvidica a noção da ontologia fenominológica de Sartre, não implica necessariamente em conduta de boa-fé, de translucidez, conduta de liberdade positiva. Quando nunca, ao contrário, fecha-se os atos na espectativa mascaradora de se “libertar” da liberdade na espectativa mascaradora de se “libertar” da liberdade. E essa é aqui e ali as atitudes das personagens sartreanas.
     A má-fé é delineada também pela estrutura da consciência. Define-se a má-fé por sua extensão delimitada à metafísica da existência. Pode-se tentar ingenuamente velar o mundo dado dos fatos para os outros; mas não se vela ingenuamente este mundo para si. A má-fé aparece sempre para si pois quando ela é içada feito instrumento de consolo, quando é sacada da manga feito recurso ad hoc numa tentativa desesperadora de salvar um dogmatismo, quando postiça alavancagem é inserida para disfarçar defeitos feito Deus ex machina, tem-se um desvio no aparecer, uma interrupção na superfície como verniz, tem-se uma evasão da transparência. De outra feita, não se desaparece...se desvia, não se nadifica uma superfície...se a enverniza, dito de outra forma : “ não se mente pra si mesmo.” Os gregos têm uma noção muito clara disso e sua língua registrou “pseudomai”(mentira) é um termo na voz media( equivalente mais ou menos ao nosso reflexivo) – voz média quer dizer que o sujeito participa da ação. Ou seja, quando se mente, leva-se a mentira consigo. A luminosidade plena da consciência atinge sempre a evidência dos fatos.
    Mesmo não levando muito em conta o rigor moral das personagens sartreanas(4), tal como ele mesmo afirma o gênio, para ser gênio, não pode expressar sequer uma obra mediocre. Nesse sentido  mesmo em que Proust foi considerado gênio pelo conjunto manifesto de sua obra. Concluímos disto que mesmo o medíocre, não pode ter um lapso sequer de genialidade também, pois isso em parte o tiraria da classe dos medíocres. O mesmo se pode dizer das  personagens sartreanas, elas não podem agir covardemente ou não agir covardemente, como isso fizesse parte de um conjunto de regras da narrativa o qual cada “natureza humana-personagem” deveria seguir a esmo. Ao tratar-se deste tipo de personagem de romance de situação, vemos que não é possível sonsiderá-los como heróis, mas ao contrário, deve-se considerá-los como humanos demasiadamente humanos. Por consegüinte, reiteramos, não há de modo algum , um privilégio de perspectiva entre as personagens tomadas em abstrato, comparativamente. Podemos, se quisermos, encarar essa perspectiva como homogênea, ou seja, como equivalentes entre si, porque , ainda que em desigualdade de situações, elas gozam de igualdade quando se vêem em liberdade de escolha. “Que em liberdade se manifeste(sc as personagens) em nossos romances, nossos ensaisos, nossas peças de teatro. E como nossas personagens ainda não podem usufruí-la, pois são homens do nosso tempo, saibamos ao menos mostrar o que lhes custa a sua falta”(Que é Literatura pg. 204).
 

NOTAS

  Não se fala própriamente em destino na filosofia sartreana, pois isto seria um contra-censo haja vista à própria noção de consciência apresentada por Sartre. Justamente, este é o carácter ambíguo que a liberdade estabelece ao sujeito; a escolhe é absoluta, portanto a liberdade é absoluta e não há nenhuma instância ou determinismo histórico que o impeça de escolher – tem-se o que se pode chamar de “liberdade fatal” ou “condenação à liberdade”

  (2)Sartre diz criticamente, a despeito de sua posição política a favor do proletariado mundial, que a única positividade do escritor com a 1a. Internacional foi a tarefa de exercer sua negatividade sobre os valores burgueses com a “literatura de testemunho da opressão”. Embora, segundo Sartre, a 1a. Internacional tenha só superficialmente tocado neste ponto, ao ajudar o proletariado a tomar connsciência de si mesmo ele é um exemplo de sintonia da literatura com as exigências históricas.

  (3) Pelo menos este é o aspecto geral das personagens sartreanas; em geral, o herói é o anti-herói. Se se levar em conta a exigência filosófica da conduta a qual o homem está em constante processo de elaboração, neste ponto de vista, essas personagens são moralmente fracos.

 (4)  O caso de Mathieu na trilogia “Os Caminhos da Liberdade” é exemplar. Sua ação característica no romance é sempre moderada. Sempre vacilante, sempre remetendo à inação. Ele tenta escapar da ação evitando escolher por uma conduta específica(má-fé). Sua ida para a guerra ilustra isso. Ele vai, mas sem vontade de ir ou de ficar. Vai...simplesmente.
 

Aluno:Renato Araújo
prof. Franklin Leopoldo e Silva
Filosofia Contemporânea II


BIBLIOGRAFIA

SARTRE, J. P.O Ser e o Nada” Trad. Paulo Perdigão, Petrópolis Rj: Vozes 1997.

____________  “O que é Literatura” Trad. Carlos F. Moisés Ed. Ática SP. 1999.

____________   “Com a Morte na Alma” Trad. Sérgio Milliet 6ed Dif. Européia do livro SP1969.

____________    “Sursis” Trad. Sérgio Milliet ed. Difusão Européia do livro SP. 1958

____________  Situations xi” je-tu-il Galimmard france 1972.

                                                                                                              

J.Paul Sartre
Simone de Beauvoir
                                                                      

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