HOME -> INDICE GERAL COLABORADORES EXTRATOS FORUM LINKS
A EXPLICITAÇÃO DA QUESTÃO DA
EXISTÊNCIA E A
NOÇÃO DE NARRATIVA DE FICÇÃO
EM SARTRE
Desvendar, remeter, dar testemunho...
a função do escritor, consagrada pelo estatuto da consciência
reconhece como sua realidade irrecusável a atividade da liberdade.
Dever-se-ia circuscrever um fundamento do seu próprio trabalho não
fosse a liberdade para a consciência o fundamento daquilo que não
tem fundamento.
Fala-se nesse momento
de invenção. O autor recria o mundo em sua evidência.
Tal otimismo ordenador molda por seus próprios princípios
acontecimentos que de direito não são menos verdadeiros que
os acontecimentos de fato. Esse é o sentido da narrativa de ficcão
em Sartre, o desvendar de uma factualidade que
não tem menos significatividade que os eventos da experiência
concreta. O escritor busca em sua “invenção” reportar por
meio da estrutura da existência humana, o embate das situações.
Qual é o terreno dessa
invenção? Ela em algum instante conhecera limites?
Vê-se conflitos entre o fato narrado e o fato vivido? Em primeiro
lugar, Sartre insiste em descartar a narrativa pois a ordem narrativa é
ordem falaciosa. A narrativa hesita diante do fracasso. Ela contorna o
abismo entre a palavra e a coisa, entre o dado e o narrado, entre o mundo
e sua impressão. “Pela literatura, pensava, justificamos o mundo
recriando-o na pureza do imaginário, e ao mesmo tempo salvamos a
própria existência...”(Beauvoir, “Na Força da Idade
I Pág.69).
O ato de escolha, sendo um
ato livre, só tem valor não relativo quando afirmado na força
da universalidade. Eu só assumo minha individualidade num ato de
escolha quando reconheço que este meu ato é um ato que vale
para todos. As situações se equivalem sob o ponto de vista
da universalidade moral, pois o valor individual da ação
é envolvido pela liberdade individual de todos os indivíduos.
A mesma liberdade que revela o meu Para-si, a minha consciência,
é fatalmente relacionada às outras liberdades. Ora, essa
relação é portanto vinculada aos conflitos supostos
pela diversificação das liberdades. Eu tenho um ato de escolha
que é conferido pelo Para-si como um ato livre,e, ao mesmo tempo,
esse ato remete ao ato livre dos outros que equivalem ao meu, possuindo
o mesmo estatuto. Por liberdade entendemos um conceito de itinerância(
direção do projeto) em afastamento daquilo que pode
ser definido, deduzido, acabado. No entando, este afastamento tende a constituir-se
e pode-se falar mesmo que ele quer constituir-se, esse desejo, essa tentativa
resultará certamente em fracasso.
O Em-si, este sim,
plenamente definido, acabado, não contém a itinerância
da liberdade. A consciência se projeta em diração ao
Em-si na pretensão de constituir-se, mas na medida em que ela supõe
apreender esse algo, reconhece sua absoluta separação, pois
esse ser para o qual a consciência tende é inapreensível.
Sartre caracteriza a noção da consciência humana, como
um nada em oposição ao Ser. A consciência por ser nada,
escapa a qualquer determinismo.Somente ela se auto-determina enquanto atividade
de negação. Sendo um "nada, ela "nadifica" seus objetos.
A consciência é essencialmente negadora das coisas em-si mesmas,
na medida em que se encontra revestida da característica ontológica
de ser, ela própria, o seu próprio nada.
A escolha livre possui
um caracter gratuito que precisa ser melhor analisado. Para Sartre,
toda escolha é livre e essa liberdade realmente supõe uma
gratuidade, já que não há nenhuma instância
superior a qual o homem pudesse consultar para definir sua escolha. Mas
essa gratuidade representa somente aquilo que no homem é sua falta
constitutiva. Nenhuma máxima moral me dira’que ação
devo tomar, concebendo essa ação como a correta. E no entanto,
eu sou moralmente responsável pela minha escolha porque mesmo ao
não optar pela escolha eu já figuro-me em uma, a saber, o
quietismo, a abstenção , a imobilidade. Por outro lado,
o homem, se se pode defini-lo, isso só pode ser feito por meio de
seu projeto, seu compromisso. Ora, do que foi dito fica claro que a escolha
gratuita tem como único guia a liberdade do sujeito em direção
à constituição do seu projeto.
Esse é , grosso modo,
o pano de fundo da reflexão sartreana do estatuto ontológico
da humanidade. O a consciencia é esse projetar-se em direção
à constituição de si e ao mesmo tempo em que projeta,
remete-se para fora, ou seja, perde-se no exterior perseguindo nessa trancendência
que lhe é peculiar a finalidade de sua existência. Esse movimento
de transcendência deve ser visto pois, como a própria construção
da subjetividade, uma vez que essa construção não
é dada no sujeito em si mesmo. Ele a busca para-fora-de-si, experimentando
permanentemente um jogo entre uma transcendência e uma imanência
porque, se por um lado, o sujeito parte em busca deste constituir-se no
qual seu ego está adiante de si, e, por consegüinte está
no domínio da contingência porque percebe que este “fora”
é inessencial. Por outro lado, ele se vê às voltas
de sua própria história como também uma construção
dele, como o resultado daquilo que ele faz com sua liberdade.
Essa relação
entre a realidade histórica, vista como relatividade histórica,
pois nenhuma determinação constitui o indivíduo e
a realidade ontológica da consciência, vista como relatividade
da consciência, pois não há nada na consciência
e por isso se diz que consciência é sempre consciência
de algo, nos permite observar a visão sartreana do papel conferido
à literatura. Uma vez que a escolha do sujeito tem caráter
absoluto, já que este é o caráter mesmo da consciência
– sua irredutibilidade, esta escolha livre é equivalente ao destino(1)
De qualquer modo, não
havendo uma redutibilidade do sujeito em nível histórico
enquanto um determinar-se, conclui-se daí que nem pode o sujeito
abandonar-se ao destino e por consegüinte, ele não poderia
abandonar-se a qualquer determinação histórica. Em
suma, ele deverá sempre assumir uma posição, no limite,
a partir do nada. E essa é mesmo a função da literatura;
Você tem um indivíduo em sua escolha absoluta particular exigindo
algo que desvele para si o universal que é o campo da história
ao qual o indivíduo está estreitamente relacionado. O que
faz a tentativa de mediação (que não é extrema
e ,por isso, nem sempre alcançada) entre esse particular e
aquele universal é justamente a narrativa ficcional. A narrativa
busca em seu desvelamento do real a interpenetração entre
o relativo e o absoluto.
Vemos que Sartre
concentra seu esfoço na superação entre o abstrato
e o concreto. É a mesma preocupação da dialética
hegeliana enquanto processo que se eleva a ponto de alcançar a unidade
na diferença. Essa é a tarefa da filosofia para o filósofo
alemão, o constituir-se da unidade latente na diversidade. Hegel
separa o universal e o concreto das determinações e com isso
reduz a significatividde na identidade mostrando a importância do
sistema de relações. Sartre também toma de Heidegger
o projeto de reconciliar o objetivo com o subjetivo
“si la littérature nést
pas tout, elle ne vaut pas une heure de peine. Cést cela que je
veux dire par ‘engagemente’. Elle sèche sur pied si vous la réduisez
à l’ innocence, à des chansons si chaque phrase écrite
ne resonne pas à tous le niveaux de l’homme et de la societé,
elle ne signifie rien”
( Sartre, Situations ix “Sur Soi-Même
Pág. 15). Mediar, relacionar, reconstruir; a literatura, ao delinear
o conflito ordinário das consciências retoma o sentido histórico
que está contido na experiência das subjetividades. Esse senso
histórico, contudo, não se trata de uma justificativa da
preservação dos ideais de classe tal como se figurava na
geração de escritores que precedeu a geração
de Sartre. Esses escritores consideravam o desenvolvimento histórico
da sociedade como uma ação do passado sobre o presente (
Ver: “Que é literatura Pag. 152) sem o vislumbre de uma totalidade
sintética do tempo, sem sequer uma apreensão sintética
dos indivíduos em suas singularidade; numa palavra, faltou-lhes
a compreensão no sentido em que dava Karl Jaspers/hegel e mesmo
Heidegger dão ao termo. Para estes escritores da geração
que precedeu a de Sartre, se impõe “um mito objetivo segundo o qual
a literatura deveria escolher temas eternos , ou ao menos inatuais”. Esse
empreendimento falsifica as verdadeiras relações humanas
que devem se constituir no âmbito do concreto. Cada situação,
no limite, se equivale. Não há, neste sentido, uma situação,
a saber, do herói romanesco, que seria privilegiada em relação
às demais. A literatura atinge então esse reconhecimento
do qual falava Hegel, o qual “salva os homens da imanência e da contingência”(Ver:
“Na Força da Idade Pág. 157). Essa temporalidade sintética
permite que um evento histórico seja objeto de um romance.
As singularidades representam-se
a si mesmas e aos outros, nessa relação intermitente, o fato
a constituir-se é imediato e se dá ao mesmo tempo em que
se constitui a situação.
“Jéntends par roman, une
prose que se donne pour but de totaliser une temporalisation singulière
et fictive.”(Situations ix “je-tu-il” pag.277-315).
A experiência do singular remete
à essa experiência de totalização na qual é
possível fazer uma teoria das situações. Não
se trata pois de uma narração no sentido tradicional do termo,
uma estória contada segundo os eventos de uma temporalidade analítica,
parcial. Com a função da literatura organizada pela facticidade
histórica do homem às voltas de uma realidade objetiva, o
escritor não terá aí apenas um termo do qual falar,
mas encontrará também uma urgência e uma atualidade
inescapável nessa mesma realidade objetiva.
Sua geração
não teve escolha. “Brutalmente reintegrados à história,
éramos acuados a fazer uma literatura de historicidade”.
( “Que é Literatura”Pg. 159). Pode-se
falar portanto em uma reincorporação violenta com a história.
As gerações que precederam a de Sartre não vislumbraram
esse aspecto coercitivo e inelutável das circunstâncias históricas.
Redescoberta a função da literatura, sua geração
se depara com um tema que não pode ser ignorado. Assim, diante desta
surpreendente situação o escritor deve assumir a historicidade.(2)
Esse rigor característico
da própria função da literatura impõe à
narração do romance certas perspectivas também rigorosamente
determinadas. Todo o construto lógico-onológico das situações
são elaborados, tudo sempre em vista à estrutura básica
da posição do sujeito no mundo. Assim, paralelamente à
falta de narrativa interna nos romances, vê-se a desconcentração
da atitude positiva frente aos acontecimentos. O “herói”, por assim
dizer, não tem de estar necessariamente de posse da atitude moral
, isto é, não cabe a ele necessariamente a absolutização
ou universalidade de seus atos Agem por vezes, ao contrário,
por deliberação gratuita, sem intenção, sem
“atividade”, sem compromisso. Sua mente, como a dos demais personagens
é semi-lúcida, semi-obscura, mas nunca totalmente obscura
ou totalmente lúcida. Isso explica em partes a razão
porque Sartre não apresenta em seus romances uma personagem que
representaria em seu total rigor suas condições filosóficas
impostas por suas concepções da estrutura do Para-si. Uma
personagem que encarnasse esse rigor estóico de plena positividade
e autencidade falsearia a narrativa sartreana que se pretende sobretudo
realista(em sentido fraco). (3) Uma consciência plena, tal como reinvidica
a noção da ontologia fenominológica de Sartre,
não implica necessariamente em conduta de boa-fé, de translucidez,
conduta de liberdade positiva. Quando nunca, ao contrário, fecha-se
os atos na espectativa mascaradora de se “libertar” da liberdade na espectativa
mascaradora de se “libertar” da liberdade. E essa é aqui e ali as
atitudes das personagens sartreanas.
A má-fé
é delineada também pela estrutura da consciência. Define-se
a má-fé por sua extensão delimitada à metafísica
da existência. Pode-se tentar ingenuamente velar o mundo dado dos
fatos para os outros; mas não se vela ingenuamente este mundo para
si. A má-fé aparece sempre para si pois quando ela é
içada feito instrumento de consolo, quando é sacada da manga
feito recurso ad hoc numa tentativa desesperadora de salvar um dogmatismo,
quando postiça alavancagem é inserida para disfarçar
defeitos feito Deus ex machina, tem-se um desvio no aparecer, uma interrupção
na superfície como verniz, tem-se uma evasão da transparência.
De outra feita, não se desaparece...se desvia, não se nadifica
uma superfície...se a enverniza, dito de outra forma : “ não
se mente pra si mesmo.” Os gregos têm uma noção muito
clara disso e sua língua registrou “pseudomai”(mentira) é
um termo na voz media( equivalente mais ou menos ao nosso reflexivo) –
voz média quer dizer que o sujeito participa da ação.
Ou seja, quando se mente, leva-se a mentira consigo. A luminosidade plena
da consciência atinge sempre a evidência dos fatos.
Mesmo não levando
muito em conta o rigor moral das personagens sartreanas(4), tal como ele
mesmo afirma o gênio, para ser gênio, não pode expressar
sequer uma obra mediocre. Nesse sentido mesmo em que Proust foi considerado
gênio pelo conjunto manifesto de sua obra. Concluímos disto
que mesmo o medíocre, não pode ter um lapso sequer de genialidade
também, pois isso em parte o tiraria da classe dos medíocres.
O mesmo se pode dizer das personagens sartreanas, elas não
podem agir covardemente ou não agir covardemente, como isso fizesse
parte de um conjunto de regras da narrativa o qual cada “natureza humana-personagem”
deveria seguir a esmo. Ao tratar-se deste tipo de personagem de romance
de situação, vemos que não é possível
sonsiderá-los como heróis, mas ao contrário, deve-se
considerá-los como humanos demasiadamente humanos. Por consegüinte,
reiteramos, não há de modo algum , um privilégio de
perspectiva entre as personagens tomadas em abstrato, comparativamente.
Podemos, se quisermos, encarar essa perspectiva como homogênea, ou
seja, como equivalentes entre si, porque , ainda que em desigualdade de
situações, elas gozam de igualdade quando se vêem em
liberdade de escolha. “Que em liberdade se manifeste(sc as personagens)
em nossos romances, nossos ensaisos, nossas peças de teatro. E como
nossas personagens ainda não podem usufruí-la, pois são
homens do nosso tempo, saibamos ao menos mostrar o que lhes custa a sua
falta”(Que é Literatura pg. 204).
NOTAS
Não se fala própriamente em destino na filosofia sartreana, pois isto seria um contra-censo haja vista à própria noção de consciência apresentada por Sartre. Justamente, este é o carácter ambíguo que a liberdade estabelece ao sujeito; a escolhe é absoluta, portanto a liberdade é absoluta e não há nenhuma instância ou determinismo histórico que o impeça de escolher – tem-se o que se pode chamar de “liberdade fatal” ou “condenação à liberdade”
(2)Sartre diz criticamente, a despeito de sua posição política a favor do proletariado mundial, que a única positividade do escritor com a 1a. Internacional foi a tarefa de exercer sua negatividade sobre os valores burgueses com a “literatura de testemunho da opressão”. Embora, segundo Sartre, a 1a. Internacional tenha só superficialmente tocado neste ponto, ao ajudar o proletariado a tomar connsciência de si mesmo ele é um exemplo de sintonia da literatura com as exigências históricas.
(3) Pelo menos este é o aspecto geral das personagens sartreanas; em geral, o herói é o anti-herói. Se se levar em conta a exigência filosófica da conduta a qual o homem está em constante processo de elaboração, neste ponto de vista, essas personagens são moralmente fracos.
(4) O caso de Mathieu na trilogia
“Os Caminhos da Liberdade” é exemplar. Sua ação característica
no romance é sempre moderada. Sempre vacilante, sempre remetendo
à inação. Ele tenta escapar da ação
evitando escolher por uma conduta específica(má-fé).
Sua ida para a guerra ilustra isso. Ele vai, mas sem vontade de ir ou de
ficar. Vai...simplesmente.
Aluno:Renato Araújo
prof. Franklin Leopoldo e Silva
Filosofia Contemporânea II
BIBLIOGRAFIA
SARTRE, J. P. “O Ser e o Nada” Trad. Paulo Perdigão, Petrópolis Rj: Vozes 1997.
____________ “O que é Literatura” Trad. Carlos F. Moisés Ed. Ática SP. 1999.
____________ “Com a Morte na Alma” Trad. Sérgio Milliet 6ed Dif. Européia do livro SP1969.
____________ “Sursis” Trad. Sérgio Milliet ed. Difusão Européia do livro SP. 1958
____________ “Situations xi” je-tu-il Galimmard france 1972.
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Revista de filosofia e cultura
ALUNOS DA TURMA DE 1997 - UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO