Questão
de Confiança
1
Eram mais ou menos quatro
horas da madrugada quando recebi o telefonema. Levantei da cama, me vesti
e desci até a portaria do prédio. Como eu já esperava,
os três estavam me aguardando. Junto com eles, uma imensa limusine
preta de vidros fumê. Christian estava com um cigarro na boca, para
variar. Era um sujeito estranho; estava sempre usando terno e gravata,
mesmo que fosse à praia, e os óculos escuros eram tão
indispensáveis que eu juro que não sei a cor de seus olhos.
Ao seu lado estava um negro gordo como uma cadela depois do cio, vestindo
um macacão jeans e com uma imensa cicatriz no rosto. Era Blade.
Apesar de não ter nada dentro de sua “privada entupida”, ou cabeça,
como queiram, merecia respeito. Havia lutado no Vietnã, onde adquirira
sua “marca registrada” e perdera dois dedos do pé.
Depois de uma troca de cumprimentos
fria e seca, entramos no carro, com Wayne ao volante, e nos dirigimos para
fora do município de Dallas. Wayne era o que tinha “menos parafusos”
de todos nós, se é que você me entende. Ex-assassino
de aluguel, tivera uma infância conturbada: tinha sido violentado
e estuprado por seu pai, que ele próprio matara, com quarenta
e duas facadas, aos quinze anos. Acabou se envolvendo com drogas e chegou
a estar com a polícia, a Máfia e os viciados escrotos atrás
dele, mas acho que Deus não quis que ele fosse lá para o
Céu e ficasse enchendo o Seu saco, e o deixou viver.
Depois de uma meia hora
de viagem, avistamos a “Indústria de Alimentícios Good Food
at Home Corporation” e tomamos a estrada que leva até lá.
2
Nós passamos os portões
velhos e podres da Good Food e estacionamos atrás do prédio.
Era uma antiga indústria de alimentos, que fechara há uns
doze anos. Parece que eles vendiam comida de cachorro ao invés de
donuts, ou alguma coisa assim.
Descemos do carro e entramos
por uma porta oculta. Seguimos por mais algum tempo, através de
depósitos e laboratórios, e logo vi Klaus , dentro de sua
sala, digitando no computador. Você deve estar se perguntando: ”Como
é que podia estar tudo direitinho, se era um prédio velho
e fedorento, cheio de merdas como ratos e teias de aranha”? Acontece que
lá dentro operava secretamente a organização não-governamental
X-COM, que tinha como objetivo a investigação de fatos “estranhos”.
Por exemplo, foram agentes da X-COM que estiveram envolvidos naquele caso
de queima de arquivo em Kansas City. Sabe como é: testemunhas de
um caso de abdução alienígena… Os agentes agiram com
perfeição; os corpos das supostas “testemunhas” não
foram nem encontrados. Era para coisas ligadas a alienígenas que
a X-COM existia. Se você não quiser acreditar, tudo bem. Eu
também não acreditei quando fui convocado. Aliás,
eu me lembro até hoje do dia em que fui ”convocado”.
Uns seis “armários”
invadiram minha casa, me cobriram de porrada, me amarraram e colocaram
no porta-malas de um carro. Quando voltei a mim, estava deitado no chão,
em algum lugar do universo. Alguns segundos depois, um cara com um sorriso
sarcástico chegou para mim e disse: “Olá, John. Bem-vindo
à X-COM ”. Depois eu fiquei sabendo que seu nome era Klaus, e que
seria meu futuro chefe. Também descobri que, se não
obedecesse ao que eles mandassem a cada vez que o telefone tocasse, eu
com certeza iria estar “boiando no rio no dia seguinte” ou, na melhor das
hipóteses, amanhecer com dez quilos de coca debaixo do travesseiro,
só para ser apanhado pelos tiras e pegar, no mínimo, uns
quinze anos de cadeia. A X-COM “convocava” aqueles que eram os melhores
em suas áreas, e que lhe seriam úteis de alguma forma. Cientistas,
engenheiros, assassinos, médicos… O que importava é que,
uma vez dentro, você não podia desistir e nem tentar chantageá-los,
vindo com aquele papo de que vai contar tudo à imprensa...
Falando nisso, eu me lembro de Gerard Guerin, um francês que se revoltou
e achou que ia foder com tudo dando uma entrevista para a televisão.
Foi morto na entrada do estúdio do Canal 8, com doze tiros de AK-47.
O caso foi arquivado. O escroto não sabia que a X-COM tinha conexões
com a polícia e a imprensa. Além disso, os melhores atiradores
de elite haviam sido chamados para a missão.
Voltando ao presente, disse
que tínhamos entrado na fábrica e avistado Klaus digitando.
Pois bem, depois disso, ele se levantou da cadeira e veio falar conosco.
3
Ele foi bem direto: “John”,
começou. “Preciso de um serviço muito importante de vocês.
Três dos nossos homens mais confiáveis tiveram a ousadia de
nos trair, roubando de nossos depósitos nosso único artefato
alienígena: a Bomba Blaster X-05”.
Neste momento eu me lembrei
o que era a Bomba Blaster. Era o único artefato de origem extraterrestre
que a X-COM possuía. Era mais ou menos como uma bola de futebol
americano metálica e acizentada. Não sabíamos como
ativá-la; a única coisa que sabíamos é que
ela era extremamente sensível e poderia explodir com o menor impacto.
A força de um soco já era o suficiente para que duzentos
quarteirões fossem pelos ares.
Ele prosseguiu: “Nós
suspeitamos que eles queiram vendê-la para seus amiguinhos árabes.
Já temos o endereço do esconderijo dos putos. Quero que vocês
vão lá e recuperem a Bomba Blaster. Está entendido?”
Todos nós assentimos
com a cabeça. A melhor maneira de responder para Klaus era essa:
não abrir a boca, porque qualquer coisa que você dissesse
e ele não gostasse ... Pegue a pior coisa que você puder imaginar
e multiplique por dez. O cara era realmente “violento”, se podemos chamar
assim, mas frio, calculista e discreto. Acho que por isso os “chefões”
da organização o haviam escolhido como cabeça do projeto.
Depois de pegarmos o endereço
e os nomes dos desgraçados, partimos para cumprir o que foi designado.
Ou isso e a sobrevivência, ou a morte. Assim eram nossas vidas. Na
saída, Klaus ainda nos chamou: “Um detalhe”. Todos nós viramos
para escutar: “Sem testemunhas”! Sabíamos o que aquela frase fria
e curta queria dizer. Tomamos a limusine e partimos.
4
Não foi muito difícil.
O endereço era uma pequena casa no subúrbio de Dallas. Foi
um serviço rápido e simples. Chutamos a porta, pegamos três
idiotas bêbados e drogados, fuzilamos dois deles sem piedade até
que a cabeça deles ficasse “pior que saco de velho”, como dizia
Wayne. Afinal, quais eram suas chances? As armas oferecidas pela X-COM
eram pistolas, mas extremamente melhoradas. Eram projetadas pelos melhores
cientistas e engenheiros, e capazes de abrir um buraco do tamanho de uma
bola de baseball em qualquer engraçadinho. Além disso, apesar
dos sujeitos serem bons agentes, a coca, a bebida e seus cérebros
de primata já não muito desenvolvidos não fazem boa
mistura. O terceiro deles nós deixamos que sofresse um pouco mais,
ao submetê-lo ao nosso “interrogatório”. Aquilo era
um verdadeiro show dos horrores, com direito a choques, braço em
água fervendo, amputação de falanges dos dedos, entre
outras coisinhas. No fim, tivemos que meter um tiro na cabeça dele.
Fazer o quê, né? Ordens são ordens, e eu aposto que
se você estivesse no meu lugar, faria o mesmo.
Com as informações
arrancadas, achamos a bomba escondida num fundo falso de um cofre. Sem
demora, fomos embora dali, mas não sem antes deixarmos uma “surpresinha”
armada por Blade. Logo depois de nossa saída, a casa explodiu.
Retornamos à base
de operações da X-COM, cientes de que não tinha sido
desta vez que tínhamos falhado. Doce ilusão. Uma catástrofe
estava se aproximando. E das grandes.
Quando estacionamos o carro, Klaus estava nos esperando. Mas
ele estava diferente. Os olhos arregalados, uma expressão de horror
em sua cara, como se ele tivesse acabado de receber um convite para uma
festa no Inferno, onde ele seria o convidado especial. Ele estava como
eu nunca o tinha visto antes. Klaus estava assustado.
5
Descemos do carro e, sem
demora, Christian pegou a Bomba Blaster e foi entregá-la para Klaus.
Mas eu notei uma coisa que Christian não tinha notado: Klaus estava
com uma pistola na mão. Quando eu fui tentar avisá-lo, Klaus
apontou a arma. Mas não foi para Christian que ele apontou. Ele
apontou a arma para a bomba. Não sei se eu já disse, mas
a bomba era muito frágil e explodia ao menor impacto. Então
tirei a conclusão: o fodido queria matar a todos nós. Eu
apenas não sabia o porquê daquilo. Nunca o tinha visto desesperado
e assustado antes. Enquanto eu tirava conclusões, ele disparou.
Durante aqueles míseros
segundos, todos nós ficamos ali, estáticos, borrando nas
calças, achando que íamos morrer. Foi aí que aconteceu.
O tiro atingiu a bomba, que saiu da mão de Christian, voou uns cinco
metros, rolou por mais uns cinco, até parar no chão. Sem
explodir ou algo qualquer. Durante mais ou menos dois minutos houve silêncio.
Fui tomado por uma sensação de alívio e desespero.
A única coisa certa era: a bomba era falsa.
Depois do silêncio,
Klaus falou, gaguejando: “Tínhamos recebido a informação
de que a Bomba Blaster havia sido vendida há uma semana. Achávamos
que não passava de um boato, mas está provado que não
é. Está tudo perdido. Há um vírus na nossa
rede interna de computadores. Os três escrotos que vocês mataram
não passavam de testas-de-ferro. Há alguém mais por
trás disso tudo”.
Foi então que percebemos
a gravidade daquele acontecimento. A organização X-COM estava
perdida. Todo o pequeno mas importante conhecimento sobre extraterrestres,
os destroços de uma nave encontrada em Houston, os seis corpos alienígenas
que estavam congelados nos laboratórios da X-COM, a Bomba Blaster,
tudo perdido. Por ser não-governamental, era uma organização
politicamente muito frágil. Uma bomba havia sido vendida. O sigilo
sobre extraterrestres que a X-COM guardava foi quebrado. Alguém
mais sabia da existência de tais seres. E a organização
estava fodida. Não haveria volta. Klaus apenas virou as costas e
disse: “Façam o que quiserem”. Eu sabia o que iria acontecer.
6
Passado algum tempo após
o trágico incidente, os “chefões” do projeto resolveram começar
a agir; afinal, eles já tinham perdido muita grana no projeto. E
tudo o que interessa para esses escrotos são os dólares.
Sempre a porra dos dólares. Foi então que o projeto X-COM
começou a não deixar testemunhas. E todos aqueles que sabiam
de alguma coisa começaram a bater as botas.
O primeiro foi Klaus: seu
corpo foi encontrado amarrado no banco de seu carro, dentro do Rio Colorado.
Devia estar tentando ir para o México. Blade apareceu morto dentro
de sua casa, com o corpo crivado de balas. Pelo que disse a perícia,
os tiros vieram de pelo menos sete armas diferentes. Christian achou que
conseguiria fugir para a Grécia, mas seu jatinho explodiu em pleno
vôo. E Wayne... Bem, o Wayne ficou tão desesperado que morreu
de overdose. O escroto era tão fraco que nem precisou que o matassem.
E assim foi com todos os outros que trabalhavam na X-COM.
Quanto a mim... Talvez por
sorte, ou talvez por algum motivo especial, consegui sobreviver. Não
pensei duas vezes: fiz uma plástica, raspei a cabeça, arranjei
identidade e documentos falsos e saí do país. Agora, me encontro
no Rio, onde não consegui concluir se estou me safando ou apenas
adiando a morte. E ainda há algo que não consegui compreender:
quem estava por trás disso tudo, quem conseguiu realmente foder
com as coisas. Se isso foi obra de simples traidores, ou de algo diferente,
algo que passa despercebido por todos nós, cidadãos comuns,
eu não sei. Ao menos sobrevivi para contar. E é isso.
…
José Manoel Rodriguez Antunes