ONE MORE KISS, DEAR
 
 One More Kiss, Dear. Música da trilha sonora do filme Blade Runner. Era essa a fita que estava tocando no interior do carro. O volume, bem baixo, como se quisesse torná-la apenas uma melodia de fundo. Uma música um tanto desconhecida, mas que ela adorava: sempre que a ouvia, parecia que seus sentimentos se intensificavam. Se estivesse triste, certamente desandaria a chorar.  Por isso só ousava escutar quando estivesse feliz, um estado emocional que experimentara poucas vezes em seus quarenta e um anos de vida. E aquele dia era uma exceção a esse cotidiano emocional.

 Sim, Cristina estava feliz. E tinha motivos. Não tinha vontade de pensar em cada um deles. Ouvir aquela música sem se desmanchar em lágrimas explicava tudo:
 

for a love
is such pain,
is such pleasure

 Olhou pela janela do carro. O dia, ensolarado, bastante quente. A estrada, completamente vazia. Enquanto dirigia, via aquele cenário passar rapidamente diante de seus olhos. E começou a lembrar-se da sua vida, uma verdadeira sucessão de desgraças. Na sua infância, chorara muito pelos pais ausentes, mortos por um motorista de ônibus irresponsável, numa estrada, em noite chuvosa. Conviveu com sua avó materna, uma mulher que acreditava que devia criar sua neta para ser uma boa esposa. Cristina sabia que, se dependesse da avó, tudo que aprenderia a fazer seria cozinhar, lavar louça e arrumar a casa. Não gostava de admitir, mas foi quando a avó adoeceu que teve a chance de adquirir algum conhecimento relevante e útil para a vida. Conseguiu formar-se em marketing, num curso rápido e de segunda linha, mas considerou isso uma grande vitória. Pena que a velha morrera logo em seguida. Coitada, gostava muito dela. Podia ter sido dura, mas era de boa índole, e sua única parente, também.

 Foi alguns anos depois que conheceu Ernesto. Ele viera dar uma palestra na empresa onde ela trabalhava, na época. Empresário importante, rico, suas colegas diziam que ele estava de olha nela. Mas Cristina não sentia muita atração por aquele homem gordo e careca, cujas roupas estavam eternamentes empapadas de suor. Ela estava sozinha há muito tempo, com saudades de uma relação mais íntima. Seu corpo e alma precisavam de um suporte emocional provindo por alguém mais.

 Um dia, Ernesto convidou-a para sair. Casaram-se dois meses depois.

 Cristina continuava a dirigir olhando para fora da janela aberta do carro. Continuava a assistir à paisagem passar rapidamente por seus olhos, e lembrou que as coisas boas de sua vida também passaram de forma assustadoramente rápida. Seu marido obrigou-a a largar o emprego, dizendo que ela deveria cuidar da enorme casa que possuía. Suas relações sociais limitavam-se a recepcionar amigos de negócios de Ernesto. Era apenas ela tomando conta de uma casa tão grande, onde pessoas estranhas entravam e saíam o dia todo. Quando Ernesto não chegava cansado, a utilizava para satisfazer suas necessidades. Ficava calada naqueles momentos, mas seu interior gritava ao ver aquele enorme corpo gordo e suado em cima dela, penetrando-a com pueiris doze centímetros que não tinham a intenção de trazer prazer, mas sim de aliviar o estresse do dia de trabalho de um empresário rico e estafado. Nas manhãs e tardes que passava solitária na casa, Cristina às vezes chorava convulsivamente. Tinha vontade de fugir daquela prisão, mas não tinha mais emprego nem família. Havia percebido que tornara-se justamente aquilo que sua avó desejava: uma esposa trabalhadora e calada.

 Depois de dois anos, Cristina engravidou. Ficou muito feliz com isso. Sentia que poderia trazer a este mundo alguém com quem ela poderia se importar e que se importasse com ela. Mas quando André nasceu, a relação com seu marido mudou de ruim para pior. Ele começou a tratá-la como uma verdadeira escrava, nunca dirigindo a palavra a ela de forma gentil. Cristina sentiu que era por causa do seu filho. Isso a magoou profundamente. Já não agüentava viver daquela maneira.

 Quando André completou um ano, Cristina e Ernesto separaram-se.
 

like the sun, dear
will return, dear,
to the sky

 A canção seguia. Cristina movia os lábios acompanhando silenciosamente a letra. Queria entrar em simbiose com aquela música, pois ela estava feliz. Sua memória estava chegando a parte mais recente de sua vida. Por isso estava feliz.

 Uma hora e meia para chegar a Porto Alegre. As palestras que ministrara em Caxias haviam transcorrido normalmente. O sol escondeu-se atrás de espessas nuvens. Talvez fosse chover. Talvez não. Não importava. Para Cristina, nada importava. O que ela queria era sentir-se feliz. Desejava retornar o mais rápido possível para falar com ele naquele fim de domingo.

 Continuou a fazer o retrospecto mental de sua vida. Já fazia quinze ou dezesseis anos que havia se mudado para aquele apartamento minúsculo com seu filho, onde viviam até o momento. Conseguira um emprego novamente, mas trabalhava como nunca. Suas únicas folgas eram de noite, onde, sem quaisquer amigos, mergulhava no mundo virtual de relações que existe na Internet. O que começou como uma simples ferramente de trabalho tornou-se uma fuga espiritual, uma forma de sobreviver ao seu cotidiano sufocante.

 E foi lá que conheceu José.

 Havia lido um texto que ele escrevera sobre liberdade. Uma palavra de significado nebuloso para ela. Até então estava tendo uma vida onde simplesmente não conseguia viver. Sentiu-se tão identificada com o texto que mandou uma mensagem eletrônica para o autor. Este respondeu, agradecendo. Ela mandou outra, querendo conversar mais sobre o assunto e outras coisas. Descobriu que o rapaz de dezenove anos era um ser humano puro e também carente, como ela.

 E foi assim que, algumas semanas depois, combinaram se encontrar.

 No começo, sentira-se muito mal com a idéia. Por um lado, sentia estar prostituíndo-se, saindo com um rapaz décadas mais novo, cujo rosto nem conhecia; por outro, iria encontrar alguém capaz de ampará-la, dar-lhe amor, carinho e apoio. Alguém para ajudá-la a continuar o caminho dolorido que, para ela, chamava-se vida.

 Enquanto se arrumava para aquela noite, olhou-se atentamente ao espelho. Há anos não fazia isso. Tinha medo de ver as seqüelas que a vida deixara no seu corpo. As marcas do sofrimento manifestavam-se em rugas no seu rosto magro e pálido. Alguns fios de cabelo branco despontavam. Sua pele não possuía a mesma firmeza de antes. Seus seios estavam maiores e mais caídos. E os olhos, tão elogiados pelos homens na sua juventude, agora nada mais eram do que duas esferas que continham pontos de uma cor verde morta, cujo brilho havia sido apagado pelos desacertos que haviam presenciado, durante todos aqueles anos de existência.

 Seu grande medo era a rejeição. Havia prevenido seu confidente, até então virtual, de que ela já não tinha a mesma forma física de antes. Ele respondia dizendo-se pouco preocupado com essa questão. Cristina tinha medo de ter cegado o garoto com suas idéias e sonhos, e de que na hora do encontro ele sofresse uma grande decepção.

 O combinado era que iriam se ver numa badalada casa noturna. Vestida e arrumada de melhor forma que podia, Cristina esperou ansiosa do lado de fora por ele. Para sua alegria, ele compareceu. Alto, magro, com rosto de adolescente, como ele bem havia dito. Seus olhares logo se cruzaram e, apesar da multidão do local e do fato de nunca terem se visto antes, se identificaram facilmente.

 Uma vez dentro do local, Cristina sentiu o preço de passar tanto tempo sem contato com atividades sociais. Achava o lugar barulhento demais, muita gente, muita fumaça. Balançava a cabeça de um modo tímido e desritmado, na tentativa de agradar José e entrar em sintonia com o ambiente. Sentaram-se numa das poucas mesas existentes. Ela sentia-se completamente perdida e cada vez mais angustiada. Mas foi a partir daquele momento que pôde olhar para José com mais atenção. E sua angústia começou a ceder lugar a uma confusão de sentimentos. Ele olhava em seus olhos de tal modo que Cristina sabia que, agora, agradava de forma tanto mental quanto física. Então, num gesto firme mas carinhoso, ele agarrou sua mão. Aquele gesto passou-lhe um calor tão bom, tão agradável, que ela ficou apenas olhando-o aproximar o rosto do dela e tocar seus lábios.

 Começou a chover. O tempo estava fechando mesmo. O sol desapareceu completamente. Nuvens acizentadas era tudo que se via no horizonte, e pesadas gotas de chuva produziam um choque tão violento cotra o pára-brisa que ofuscavam até mesmo a música que escutava. Cristina achou aquele momento da natureza muito contrastante com os sentimentos que suas lembranças lhe proporcionavam no momento. Aumentou o volume do som, para aproveitar cada momento daquelas recordações da melhor forma possível e continuou a reviver aquela noite que mudaria seus valores sobre a vida.
 

and I will treasure
’til I die

 Naquela noite, José a beijara até que seus lábios ficassem cansados. Nem ele nem ela se importavam com os olhares de reprovação que outros lhes lançavam. Nunca havia beijado alguém com tamanha vontade, tamanha paixão. Sua boca, seu corpo inteiro ardiam pelo amor nunca recebido e que agora havia surgido.

 Ela não se recorda de muitos detalhes. Tudo que sabe é que, após algumas horas, foram parar num quarto de motel.

 Foi nesse momento que sua ansiedade e angústia retornaram. Lá estavam, a quatro paredes, ambos de pé, um fitando o outro. Cristina estava extremamente fragilizada por causa de sua abstinência de relações desde o divórcio. Aquele era um momento onde não somente seu corpo seria tocado, mas sua alma também. Afinal, mesmo sendo a primeira vez que haviam se encontrado, ambos já sabia muito sobre o outro. Sentimentos de moralidade sobre aquela relação despontavam. Tinha medo de tirar a roupa para um homem novamente.

 Foi quando José se aproximou e começou a beijá-la novamente. Agora, seus braços apertavam com paixão o corpo magro de Cristina. Ela sentia aquelas mãos jovens tocarem seus rosto, seus seios, seu clitóris. A penetração começou ali mesmo, de pé. Depois, rolaram juntos pela cama, onde ela teve o orgasmo mais vigoroso de toda sua vida. Então, ela finalmente se deu conta de que não era um simples relação carnal, e sim corpos e mentes que entravam em fusão.

 A fita acabou. A única música que continha era aquela, e Cristina voltou a rebobiná-la. Engraçado. Ela percebia agora que todos os bons momentos de sua vida haviam precedido grandes desgraças. Sua sofrida formação acadêmica e a morte de sua avó. Seu casamento prometedor e a condenação a uma vida infeliz. A chegada do seu filho e o divórcio. E agora, havia José, que seguramente fora a melhor coisa que lhe acontecera.

 A chuva aumentou de intensidade. José, a melhor coisa que já lhe acontecera. Cristina está feliz, e não teme desgraças. A fita pára de rebobinar e começa a tocar novamente.
 

one more kiss, dear
one more desire
only this, dear
is goodbye

 Na pista que até então estava vazia, aparece um par de faróis. Aquela luz que cerra seus olhos vem em grande velocidade na sua direção. Cristina estranha porque os freios do seu carro não respondem, enquanto a luz vai ficando cada vez mais e mais próxima. Ela sente um ponta de medo. Mas não importa. Na realidade, não a surpreende. Tudo que ela sabe é que está muito feliz.
 

and will vanish
the pain
and the sorrow
until tomorrow
goodbye