ESTRONDO
Um estrondo ecoou
no ar. Christian olha pela janela novamente. Mais um raio. A chuva já
havia se tornado uma tempestade.
Jogou o cigarro no
chão e esmagou-o nervosamente com a ponta do sapato. Estava sentindo-se
desconfortável com aquele sobretudo. Ajeitou com os dedos trêmulos
os óculos escuros, que insitiam em não parar na altura do
olhos, e retirou os fios da franja que haviam grudado no rosto suado.
Olhou para o relógio.
Retirou os óculos e pôs-se a enxugá-los com a flanela
que sempre trazia. Olhou para Thiago, e depois para o garoto.
<Christian> E então?
<Garoto> No sé.
<Christian> Tem
certeza que esse celular tá funcionando? Thiago, dá uma olhada
nessa merda.
Thiago levanta-se
do caixote onde estava sentado e repousa sua espingarda sobre ele. Leva
seus cento e vinte quilos sem pressa até o garoto, que se torna
ainda menor perto daquele negro do tamanho de uma porta. Analisa o aparelho.
<Thiago> É,
Christian, tá funcionando.
<Christian> Merda!
Merda! Merda! — Começa a chutar uma das várias caixas de
madeiras do local, como se pudesse arrancar dela resposta para aquela situação.
<Thiago> Calma,
Christian. Ele deve tá chegando. Fica calmo.
<Christian> Calmo?
Sim, eu tô calmo — disse, ajeitando os óculos e retirando
da face sua enorme franja novamente.
Olhou outra vez para
o relógio. Resolveu acender mais um cigarro. Um novo estrondo ecoou
no ar.
<Garoto> Deve ser
a chuva, señor. A chuva deve ter atrasado mi hermano…
<Christian> Cala
a boca, guri!
<Thiago> Calma,
Christian, o guri não tem culpa de nada. Daqui a pouco ele deve
chegar.
Christian riu sarcasticamente.
<Christian> Daqui
a pouco? Puta que pariu, não tá vendo que já se passaram
duas horas? Duas horas! A mercadoria era para estar aqui há duas
horas, tá entendendo?
<Thiago> Eu sei,
mas o Gutierrez nunca fura, tu sabe bem disso.
<Christian> É,
eu sei. Mas falta menos de meia hora para eles virem aqui pegar o que encomendaram!
Outro estrondo. A
chuva não diminuía sua força. Dentro do armazém,
ficaram em silêncio. O garoto apenas observava os dois. Christian
enxuga o suor da testa com sua flanela. Agora que Thiago estava de pé,
pôde observá-lo melhor. O negro não estava tão
nervoso quanto ele, mas estava empapado de suor. Christian suspirou, sentou-se
e começou a falar pausadamente.
<Christian> Olha,
Thiago… Vê só essa merda dessa estrada — disse, apontando
para fora do armazém. — Estamos aqui desde manhã e até
agora não passou um único carro! Um único carro! Deve
ter acontecido alguma coisa. Vai ver a polícia rodoviária
interditou a estrada.
<Thiago> Acho que
nem devem saber que essa estrada existe. E, pensa bem, mesmo que tivessem
bloqueado o acesso, tu acha que o Gutierrez não ia conseguir chegar?
E só tem esse lugar por aqui. Lembra do que a gente falou, não
tem como ele errar: “entra na estradinha no km 332, num baita armazém
caindo aos pedaços…” Ele até deixou esse guri irmão
dele conosco…
<Christian> Tá,
que merda, eu sei, esse lugar é bom pros negócios… Mas vou
repetir, Thiago: a porra da mercadoria deveria ter chegado aqui há
duas horas! E aqueles castelhanos de merda vão estar aqui dentro
de alguns minutos! “Comprende”?
<Thiago> Tudo bem,
digamos que talvez tenha mesmo acontecido alguma coisa com a mercadoria,
ou com o Gutierrez, sei lá. Mas eles entendem que os federais podem
aparecer quando a gente menos espera. Tu também sabe bem disso.
A gente conta pra eles o que houve. Esses castelhanos gostam de franqueza.
<Christian> Foda-se
a franqueza! Eu quero meu dinheiro! Não entende? Sem mercadoria,
sem dinheiro!
<Thiago> Eu sei,
eu também quero a minha parte pra dar o fora logo. Esse vai ser
meu último serviço, tu sabe. Confia em mim.
<Christian> É…
Tu vem tratando com os castelhanhos há bem mais tempo do que eu.
Essa é recém a segunda vez que faço um serviço
pra eles. Sabe quem é que vem buscar a carga?
<Thiago> O Ramón.
<Christian> O quê?
O próprio?
<Thiago> É.
Ele sempre vem pessoalmente, sabe. E sempre traz um ou dois junto.
<Christian> Que
merda… Alguém mais?
<Thiago> Não,
acho que… Ah, vem também aquele cara, o tal de Ramiro.
Estrondo. Thiago viu
os olhos de Christian arregalarem-se por trás das lentes escuras.
<Christian> Quem?
<Thiago> Ramiro.
Tu conhece?
<Christian> Mas
é claro! Que filho da puta! O que ele tá fazendo com esses
castelhanos? Ele atuava em São Paulo!
<Thiago> O cara
deve ter trocado de zona.
<Christian> Ah,
se eu não vou me esquecer desse alemão desgraçado…
<Thiago> O que
que ele te fez?
<Christian> O que
ele me fez? — Chrsitian jogou a ponta do seu cigarro longe. — Ano passado,
quando eu trabalhava no Rio, lembra?, pois é, eu tinha um serviço
que era um barbada, era pra entregar uma baita carga. Ele é quem
ia transportar, sabe. Mas pegaram ele, e aquele merda me entregou junto.
<Thiago> Que imbecil.
Esse merece um tiro no meio dos cornos pra aprender.
<Christian> É,
mas não pensa que eu deixei assim. Eu sempre te disse, quem tenta
foder comigo sempre acaba fodido. Eu sabia de uns servicinhos que ele fazia
no Mato Grosso periodicamente… E tu sabe como a polícia é,
adora foder com o cú dos caras de lá.
<Thiago> Eles te
ofereceram um acordo?
<Christian> Exato.
Disse tudo que sabia sobre aquele merda e fiquei só uns meses, enquanto
ele ia apodrecer lá. Nem sei como ele saiu.
Olhou o relógio.
Outro cigarro. Estrondo. Christian retirou os óculos escuros bruscamente
e olhou para Thiago.
<Christian> Ah,
mas que filho da mãe…Acho que estou entendendo tudo.
<Thiago> O que
foi?
<Christian> O Ramiro,
Thiago, o Ramiro! Aquele alemão deve ter feito alguma coisa pra
foder comigo, cara!
<Thiago> Mas como
ele ia saber que é tu quem tá…
<Christian> Porra,
Thiago, com toda tua experiência tu não é capaz de
ver ? Isso é fácil de se saber! Ele descobriu que era eu
quem ia entregar a mercadoria. Então fez alguma merda com ela! No
mínimo, fez os federais pegarem o Gutierrez pra ele não chegar
aqui! E aí, sabe o que vai acontecer? Aqueles castelhanos de merda
vão nos currar aqui mesmo! Mas isso não vai ficar assim.
Christian puxou um
grande revólver de dentro do sobretudo. Abriu o tambor da arma.
Thiago viu seus olhos brilharem, ao constatar que a arma estava carregada.
<Christian> Prepara
tua espingarda. Vamos ter uma conversa com aquele alemão de merda.
Thiago ficou visivelmente
perturbado.
<Thiago> Agora
chega. Não vou deixar tu fazer isso. Tu não vai enfrentar
o Ramón.
<Christian> Não
o Ramón, caralho. Acha que eu quero estragar minha imagem com essa
gente que não conheço direito, ainda mais com esse aí?
Tô falando do Ramiro, cara!
<Thiago> É,
mas quando tu puxar essa arma eles vão interpretar mal! Essa gente
não gosta de ter uma arma apontada! Eles ficam nervosos! E quando
essa gente fica nervosa, fazem cagada! Tá me entendendo?
<Christian> Só
vou apontar a arma pra eles se resolverem complicar. Vou provar pra esses
merdas que quem fodeu com todas as coisas não fomos nós!
<Thiago> Mas e
se aconteceu mesmo alguma coisa com o Gutierrez que ele não conseguiu
chegar a tempo?
<Christian> Foda-se
o Gutierrez! Tu mesmo disse que ele nunca fura! E ele está aqui?
Não, está duas horas atrasado! Isso é o mesmo que
dizer que ele não chega mais! Além disso, por que é
que tu tá discutindo comigo? Porra, já te disse que é
o Ramiro o culpado de tudo! Agora, pega essa merda de espingarda e te prepara!
Tu tá comigo ou não?
<Thiago> Mas o
Ramón…
<Christian> Pois
fodam-se todos! Eu mato esse Ramón se tentarem foder comigo, tá
entendendo? Mato dez deles se for preciso! Tá me ouvindo?
<Thiago> Estou
te ouvindo. Fica calmo.
<Christian> Já
disse que tô calmo! Eu quero saber se tu tá comigo ou não?
Um estrondo ecoou
no ar. Sem dizer uma única palavra, virou-se e andou lentamente
até a caixa onde repousava sua espingarda. Retirou do bolso duas
balas de grosso calibre e carregou a arma com elas.
<Thiago> Muito
bem, Christian. Já tô ficando velho demais pra esse serviço.
Esse era para ser o meu último, e como eu queria que tivesse transcorrido
normalmente. Mas eu sabia que um dia algo assim ia acontecer. Estou pronto
pra qualquer coisa. Se eu tiver que atirar em alguém, não
vai ser a primeira vez. Mas eu só quero te dizer uma coisa: é
bom que tu esteja certo sobre isso.
<Christian> Ainda
não confia em mim, Thiago? Depois de todos esses anos? Alguma vez
eu falhei contigo nessa merda de trabalho?
<Thiago> Sim, eu
sei. Só digo que é bom que tu tenha razão.
<Christian> Puta
merda! Olha lá! — Do lado de fora era possivel ver um par de faróis
na chuva, aproximando-se lentamente do armazém. — É agora.
Te esconde atrás daquelas caixas lá. E tu, guri, pega essa
merda desse celular, e vai lá pra trás, que eles não
sabem que tu tá aqui. Anda!
Christian escondeu
sua arma no sobretudo. O negro Thiago, apesar do seu enorme peso, posicionou-se
agilmente atrás de grandes caixotes de madeira.
Um estrondo ecoou
no ar. O relâmpago ocorreu quando quatro figuras adentraram. Christian
observou que três deles eram muito parecidos, usando costeletas e
cabelos compridos e encaracolados. O outro era Ramiro. Não havia
mudado nada desde quando trabalhavam juntos. Christian, jogou fora o cigarro,
colocou os óculos escuros, respirou fundo e aproximou-se. Não
sabia qual daqueles três era Ramón, os castelhanos pareciam
todos irmãos. Ramirou aproximou-se, apresentando-se como intermediário
do grupo.
<Ramiro> Olha,
Christian, vamos logo ao assunto, que essa chuva tá uma merda e
tenho certeza que todos queremos acabar logo com isso. Traga a mercadoria
para você ir conosco receber sua parte.
<Christian> Tudo
bem. Mas antes temos que conversar…
<Ramiro> Que barulho
é esse? Tô ouvindo um telefone tocar lá no fundo? Tem
mais alguém aqui nessa merda?
Um dos castelhanos
grunhiu algo, e os três enfiaram a mão atrás da cintura.
Thiago surgiu como resposta por trás das caixas empunhando a espingarda,
obrigando todos a pararem o movimento que pretendiam executar. Christian
sacou seu revólver, puxou Ramiro pelo colarinho e grudou a ponta
da arma na sua face.
<Christian> Vai,
alemão, vai dizendo onde é que tá. Tu não merece
viver, sabia disso? Mas antes eu quero saber onde é que tá
a porra da mercadoria!
<Ramiro> Que porra
é essa?
<Christian> Eu
juro que te meto uma bala nas fuças! Mas antes vou atirar nos teus
joelhos pra saber de tudo!
<Ramiro> Você
enlouqueceu! Não vai sair vivo dessa!
<Castelhano> Hijo
de puta!
O sujeito mais próximo
de Christian sacou uma enorme pistola prateada, esbravejando num espanhol
ininteligível. Numa reação imediata, Thiago disparou,
abrindo um buraco maior do que um pires no peito do castelhano. Christian,
com os óculos banhados em sangue, fez vários disparos. Acertou
um deles na cabeça de um dos sujeitos e outro no ventre de Ramiro.
Jogou-se no chão instintivamente, enquanto o último castelhano
fazia disparos enlouquecidamente para as caixas onde Thiago se escondia.
Christian, deitado no chão, descarregou sua arma, fazendo o último
deles que estava de pé tombar em silêncio.
<Christian> Seus
filhos da puta! — disse, jogando longe os óculos manchados pelo
espesso líquido vermelho. — Tô banhando em sangue! Sangue!
Thiago!!!!
<Thiago> Me atingiram!
— ouviu a voz do seu companheiro atrás dos caixotes — Esses merdas
me atingiram!
Christian ouviu um
gemido ao seu lado. Era Ramiro.
<Christian> Ah,
seu merda, viu o quê você me fez fazer? Eu matei a porra do
Ramón!!!
Ramiro apenas gemia
e se contorcia no chão. Christian sentiu seu sangue ferver, e chutou-lhe
o maxilar, ouvindo o osso romper-se. Ramiro não se mexeu mais.
Arrancou o sobretudo
e jogou o revólver no chão. Correu para trás das caixas,
e viu Thiago colocando-se em pé com dificuldade. Estava encharcado
de sangue e suor.
<Thiago> Esses
merdas… Me atingiram. Bem no ombro!
<Christian> Fica
frio, negrão! Era uma pistola, a bala deve ter atravessado. Agüenta
firme aí. — Christian deu alguns passos, em direção
às caixas do fundo. — Onde está aquele guri?
<Garoto> Señor!
Señor!
<Christian> Seu
guri de merda! Por que não desligou essa porra de celular?
<Garoto> Era o
Gutierrez.
<Christian> Como?
<Garoto> Mi hermano,
señor. Ele disse que teve problemas.
<Christian> Problemas?
<Garoto> É.
O caminhão dele bateu num carro. Ele tá bem, mas acha que
a mulher do outro carro morreu. O colega dele vinha logo atrás com
outro carro. Chegam daqui a pouco.
<Christian> Bateram?
Bateram num carro? Q-que porra é essa?
<Garoto> É.
Parece que foi num Chevette.
<Christian> Um
Chevette? Um maldito Chevette?
<Thiago> Christian!!!
Suas mãos e
rosto encrisparam-se ao ouvir aquela voz. Ouviu a respiração
pesada de Thiago, e o som da espingarda sendo carregada. Apenas fitou o
garoto segurando o celular à sua frente. Não teve coragem
para virar-se.
Um estrondo ecoou
no ar.