TRECHOS DE SEXTO EMPÍRICO
O princípio causal da filosofia cética é a esperança de alcançar
a serenidade, pois os homens de natureza nobre, perturbados pelas anomalias que
há nas coisas em geral, e não sabendo em qual delas se encontra a verdadeira face
das coisas, começam a investigar sobre o que é falso e o que é verdadeiro, na
esperança de chegarem à descoberta da verdade. Mas o princípio fundamental da
filosofia cética é, antes de tudo, o fato de que a toda razão se opõe outra razão
equivalente. E é isto que nos leva a não dogmatizar.
Dizemos, contudo, que o cético não dogmatiza. E isto não no sentido em que alguns
definem o dogma como a aprovação comum de uma coisa. Pois o cético não rejeita
as impressões impostas pela fantasia. Quando, por exemplo, sente frio ou calor,
não exprimirá uma dúvida sobre o que realmente estiver sentindo.
O cético, porém, não dogmatiza, no sentido em que se define o dogma como a concordância
com alguma coisa obscura, sujeita ainda à investigação da ciência. Pois o verdadeiro
pirrônico não sustenta nada que não esteja definitivamente esclarecido.
O cético não dogmatiza sequer ao enunciar os princípios do ceticismo sobre as
coisas obscuras e não usa expressões como esta: "não se pode dizer nada sobre
isso", ou "não defino nada disso", ou outras semelhantes. Pois, desse modo, estaria
dogmatizando, uma vez que sempre que se estabelece um principio ou uma máxima,
pretende-se estabelecer uma verdade absoluta e, pois, fundar um dogma.
O cético entende, com efeito, que a máxima —"tudo é falso"— traz,
obviamente, consigo, a afirmação de sua própria falsidade, uma vez que, se tudo
é falso, também há de ser falso dizer que tudo é falso. Da mesma forma, sustentar
que "nada é verdade", é o mesmo que dizer que o que se está dizendo com isso também
não é verdade, e assim, qualquer máxima, princípio, ou sentença constitui uma
negação do ceticismo.
Se uma pessoa dogmática estabelece como real aquilo que dogmatiza, enquanto o
cético enuncia suas afirmações de modo a circunscrevê-las virtualmente dentro
de si mesmas, não se pode dizer que, ao proferi-las, esteja dogmatizando. E o
que é ainda mais importante: — ao enunciar suas afirmações, ele apenas está
dizendo aquilo que lhe parece, expondo sua própria impressão adogmaticamente,
sem assegurar nada sobre outras possibilidades de verdade.
Podem perguntar-nos se o ceticismo é uma seita. Se se entende por seita a adesão
a muitos dogmas, decorrentes uns dos outros e em conexão com fenômenos que se
sucedem —e se se entende por dogma a atribuição de verdade a uma coisa obscura—
então diremos que o ceticismo não é uma seita.
Mas se por seita se entender a diretriz que resulta de um raciocínio apoiado no
fenômeno, indicando esse raciocínio o modo de vida que parece correto, e correto
tanto no sentido da virtude como num sentido geral, de viver retamente, então
podemos dizer que o ceticismo também é uma seita. Pois adotamos um modo de raciocinar
apoiado no fenômeno que nos ensina a viver de acordo com os costumes de nossa
pátria, com nossas próprias leis, nossas tendências e nossas impressões...
Parece necessário indagar qual é a finalidade do ceticismo. O fim do cético é
a serenidade diante da opinião e a moderação nas paixões necessárias. Na verdade,
o cético começa a filosofar quando tenta julgar quais as fantasias que são falsas
e quais as que são verdadeiras, a fim de alcançar a própria serenidade. Mas quando
não consegue superar as discrepâncias com que se defronta, abstém-se, então, de
proferir um julgamento.
A essa abstenção sucede, então, imediatamente, como por acaso, a tranquilidade
diante do que deve opinar. Com efeito, o que crê que algo é bom ou mau por natureza,
está em contínua perturbação da própria paz. E quando não consegue definir o que
é bom e o que é mau, julga-se perseguido pela maldade da natureza, e passa a procurar
o que é bom com todo o empenho de que é capaz. Uma vez encontrado, aumentam suas
angústias, temendo vir a perder o que encontrou, ao surgir-lhe uma nova forma
de verdade.
Ao cético acontece o que aconteceu ao pintor Apeles. Dizem que um dia, pintando
um cavalo, Apeles tentou inutilmente reproduzir no focinho do animal a espuma
que ali às vezes se produz. Tentou por todos os modos, e não o conseguiu. Desesperado,
lançou contra o quadro a esponja com que limpava os pincéis. Esta, ao tocar a
pintura, reproduziu incrivelmente o que parecia ser a espuma no focinho do cavalo.
Assim também os céticos: ao desistirem de aclarar os números e os fenômenos, chegam,
de repente, à serena verdade, que surge como por acaso, acompanhando o pensamento
como a sombra acompanha o corpo.
Sexto Empírico, geralmente considerado como o último
dos grandes filósofos gregos, continuador de Pirro, viveu no século II de nossa
era. Foi médico em Alexandria, onde existia um grupo dedicado a um tipo de medicina
experimental. Pouco mais se sabe de sua vida. Dele, porém, se conservam três
obras importantes: as "Hipóteses pirrônicas", os seis livros "Contra os Matemáticos"
e os cinco livros "Contra os Dogmáticos". Partindo do pensamento Pirrônico,
foi o verdadeiro fundador da Escola Cética, na qual, de certa forma, deita suas
raízes a moderna fenomenologia, especialmente em Husserl. Excelentes fontes
sobre sua obra, da qual não há tradução em português, são os estudos de A. Goedeckemeyer,
"Die Geschichte Des Griechischen Philosophie".
Publicado na Folha
de S.Paulo, terça-feira, 4 de abril de 1978.
