O  saque   

(Primeiro lugar, no I Concurso Nacional Hugo de Abreu)

 

 

 

 

A fome, a fome, a FOME!

O sol, o sol, o SOL!

Por impossível que pareça, tudo no mundo se resumia a fome e sol. O sol que causava a fome, calcinando a terra, imóvel: uma bola de fogo, no firmamento azul e imutável.

Todos os dias os olhos ansiosos se voltavam para o espaço, em busca de uma pequenina mancha cinza, de fiapos de esperança: de uma nuvem.

E nada. O azul do céu, que faria o encanto de um pintor, simbolizava a miséria dos homens!

Debaixo dos pés descalços, o solo se transformava em poeira; turbilhonava com o vento, penetrava nos olhos, entupia os poros. Como se a própria terra, negada a sua função de sustento, se recusasse a existir.

A vegetação, dantes mirrada, perdia lentamente a luta pela existência; reflexo da derrota inexorável dos homens. No ar muito límpido, os sons se propagariam com uma nitidez quase inacreditável. Mas não havia sons; só o implacável silêncio da miséria, da desesperança, do sofrimento!

Gervásio tinha uma pequena área de terra e uma casa humilde. Tinha mulher e dois filhos: curtidos de sol, esqueléticos, amarelados como ele. Os rostos refletiam a cor da terra, do barro.

Tinha, também, um rádio portátil; presente do irmão, operário na cidade grande. Embora não conseguisse sintonizar mais do que uma estação, era o seu símbolo de status; a representação concreta do seu prestígio entre os vizinhos. Em volta dele a família se reunia nas noites do sertão, acompanhada pelos visitantes que sempre apareciam. E a voz do locutor, as músicas modernas, se misturavam às conversas sobre as chuvas, a criação, as plantações.

Através do rádio, os sertanejos tomavam contato com a civilização. Mesmo naquele lugar distante, era possível ouvir alguém falando dos artistas mais citados pelos programas; ou assoviando, desajeitadamente, alguma canção de sucesso.

Mas isso fora antes: antes da seca, antes da extrema penúria. Agora, o rádio já não falava: se não havia dinheiro para a comida, haveria para as pilhas? E mesmo que aquele som do progresso ainda se fizesse ouvir, quem seria capaz de dar-lhe atenção? A miragem da cidade se esvaía, suplantada pela dura realidade da fome.

Gervásio sofria como os outros. Vira definhando as suas plantações, morrendo a sua parca criação. Olhava para a mulher, para os filhos e para si mesmo: via a imagem da miséria, da necessidade, da revolta.

Abandonara o trato da terra, que já nada produzia além daquela poeira irritante. De enxada ao ombro, alistara-se numa das frentes de trabalho, tentativa demagógica e mal-dirigida para minimizar um problema crônico; iniciativa de última hora, para diminuir as conseqüências do abandono de sempre.

Trabalhava de sol a sol; fraco, subnutrido. A pouca comida que conseguia era insuficiente mesmo para os diminutos estômagos dos filhos. A presença da morte, ao seu redor, era quase uma realidade; a fome convivia com todos, qual visitante indesejável e que não se podia mandar embora.

Naquela tarde, observara a divisão do último resto de comida. Vira como as crianças se esforçavam para engolir o pobre alimento, com alguma dificuldade de fazê-lo escorregar pelas gargantas ressequidas.

Atravessou a porta da casa, sentou-se à sua frente. Os olhos esmiuçaram o céu: procurando, procurando, procurando. Nada. O mesmo azul translúcido, a mesma aparência de limpeza, o mesmo nada.

Nenzinha veio juntar-se a ele. Ela também não comera; procurava enganar a fome com a ilusão de reduzir o sofrimento dos filhos. Ao lado do marido se assentou, também calada: o ser humano não precisa de sons para exprimir o seu sofrimento. Ouviu a fala arrastada:

- Vambora?

Ela já sabia a resposta; ansiava por aquela pergunta e a temia. Mesmo assim, os seus lábios formularam a questão inútil:

- Pra onde, Geo?

Ele olhou em volta; os seus olhos percorreram a terra que amava, aquele pedaço de chão que era a sua posse no mundo. A voz revelava a naturalidade da dor:

- Simbora, Nem. Pra cidade.

Ela não respondeu logo. Pelos seus pensamentos exaustos passaram rápidas imagens: os filhos famintos, o marido à beira da desnutrição, a terra estéril. A história de alguns vizinhos que ofereciam as filhas mais velhas a quem ainda podia pagar, em troca de um pouco de comida. Como Gervásio, amava aquele lugar: a calma, a beleza, a sensação de segurança que a posse transmitia. Ali moravam desde o casamento, naquela existência apagada e quase feliz.

- Tu acha melhor?

- Não sei. O que eu sei é que, se ficar aqui, a gente morre de fome.

A cidade! Um mundo novo, desconhecido. Fascinante, assustador! Uma terra de facilidades, de conforto, de pecados! O medo do desconhecido se juntava à atração da ânsia de conhecimento; como que os atraía e empurrava para longe dessa idéia, a um só tempo.

- Tu quer ir?

- A gente tem que ir.

Frase lapidar, irretorquível. Alguns dias depois, uma realidade consumada. Fechada a casa pobre, os cacarecos jogados em trouxas, ao peso das quais se vergavam os corpos, juntaram-se a uma leva de retirantes; todos impelidos pela fome, irmãos de desespero.

A pé, atravessarem os caminhos do sertão. Pelo caminho, a natureza cumpria seu papel seletivo: eliminava os fracos, os menos aptos a uma sobrevivência tão difícil. Numa cova rasinha, à beira de uma estrada até então desconhecida, ficou o corpo frágil de Getúlio, o filho mais novo, como o pai chamado Geo. Sem lágrimas, sem frases de despedida; apenas mais uma dor profunda, outro motivo para lutar pela vida, o instinto de conservação despertado em face da morte.

Chegaram à cidade. Restos de vida, frangalhos de gente, plenitude de miséria. As luzes agrediram os seus olhos, as casa grandes e bem montadas agrediram ainda mais os seus corações. Os olhos arregalados, as bocas escancaradas, contemplavam outro modo de vida, uma vida que não podiam sequer imaginar.

Ajeitaram-se sob uma marquise; era tarde da noite. Dormiram no chão, muito juntos, meio mortos de fome e cansaço. No dia seguinte, ainda cedo, Gervásio acordou com o pontapé:

- Ei, Paraíba, acorda! Sai daí, vagabundo!

Piscou os olhos, estremunhado. Eram dois homens, ambos altos e fortes. Um vestia a farda da polícia e o outro, muito branco, parecia furioso; falava com um sotaque estranho, que dificultava o entendimento:

- Onde já se viu? Isto é um absurdo! Pois então já não pode um cidadão ir para casa, dormir, depois de um dia de trabalho, sem que apareça um bando de marginais e se instale bem em frente ao seu estabelecimento?

E, para o guarda:

- Garanto que aí estão a reconhecer o terreno; para, depois, me roubarem! Eu bem que conheço esses miseráveis: preferem ficar pelas ruas, roubando, em vez de procurar um trabalho honesto!

A essas alturas, todos já haviam acordado. Gervásio procurava explicar; gaguejava, agoniado:

- Não é nada disso, doutor... a gente chegou agora de noite, não tinha pra onde ir, estava morto de cansaço. A gente só deitou pra dormir um pouco...

- Mentira! Seu vagabundo, seu preguiçoso!

O guarda colocou um ponto final na discussão. A cidade estava recebendo um grande número de retirantes e, por isto, havia um terreno baldio destinado a eles, perto dali. Ensinou onde era; que fossem para lá, juntar-se aos outros!

Foram. No improvisado acampamento, a miséria só era superada pela solidariedade egoísta: gerada pela certeza de que a sobrevivência do vizinho era a única probabilidade da própria sobrevivência.

Quase todos dormiam sob o céu; apenas dois privilegiados exibiam rotos pedaços de lona, sobre uma armação de paus. Ali imperava o mesmo desânimo, a mesma tristeza do sertão agonizante. Conseguiram alguma coisa para comer; para eles, torturados pela fome de muitos dias, um verdadeiro banquete. Devoraram o pão duro, receberam como uma benção o café frio e com gosto de barata. E ficaram sabendo como era a vida no acampamento.

Durante o dia as mulheres iam a um depósito de lixo, nas redondezas, como “catadeiras”. Procuravam, em meio ao monturo, alguma coisa que pudessem aproveitar: para usar, ou vender por alguns trocados.     Ou - quem sabe? - uns restos de comida. Os hoomens saíam pelas ruas, em busca de qualquer trabalho; qualquer coisa servia, desde que pudesse proporcionar o minguado sustento.

Integraram-se à vida da comunidade, assim estabelecida. Nenzinha acompanhava as outras mulheres e Gervásio, como os outros homens, ia para a rua, em busca de serviço. Voltavam à noite: alguns alegres, outros com a máscara da frustração; mas todos cansados, abatidos. Uma vez ou outra, alguém chegava com um valor maior ou um objeto mais caro; a ninguém diria como o conseguira e ninguém lhe perguntaria coisa alguma. O que interessava, afinal? As noções de decência perdem todo o valor, diante das necessidades da vida.

E a vida andava difícil, muito difícil. Rareavam os empregos, escasseava o dinheiro em toda parte. Era cada vez mais comum os homens e as mulheres voltarem tristes, as mãos vazias. A conversa era travada em vozes cada vez mais baixas, multiplicavam-se as imprecações. Falava-se, murmurava-se, xingava-se cada vez mais.

Foi num desses dias, ao voltar para o acampamento, que Gervásio se surpreendeu: encontrou um pedaço de carne do sertão, iguaria à qual se desacostumara. Com os olhos, interrogou Nenzinha. Ela respondeu baixinho, os olhos no chão:

- Sabe. Geo...

Hesitou, constrangida. Não queria falar, não sabia como dizer. Enfim, num arranco:

- Eu vendi o rádio. Joãozinho tá doente, o doutor que vem aqui passou uns remédios, não tinha como comprar. Eu vendi o rádio, comprei os remédios... e comprei essa carne pra você, com o troco!

Seus olhos se encheram de lágrimas, não disse nada. Passou o braço pelos ombros da mulher; dava-lhe, naquele contato, o seu consentimento e o seu perdão. Mas a dor era funda: perdia o seu último patrimônio, a última lembrança de um tempo em que fora gente e o símbolo da esperança de um dia voltar a sê-lo. Não tocou na carne, não disse uma única palavra naquele dia ou no seguinte.

Mais alguns dias se passaram, iguais. Uma noite, foi convidado por Manézinho: tinha uma garrafa de cachaça. Sentaram-se e começaram a beber; outros vieram, apareceram mais duas garrafas e mais homens. Logo, todos estavam embriagados: de cachaça e desespero.

Falaram da terra natal, contaram casos. Depois, a conversa passou a girar em torno da fome, da pobreza, da miséria. Não saberiam quem deu a idéia, quem primeiro falou do supermercado: tão cheio de coisas boas e relativamente tão perto.

Desceram do acampamento, como um bloco compacto. De homens, mulheres, crianças e miséria. Esquecida a honestidade, desprezada a moral, abolido o medo.

Pararam em frente às largas portas de vidro que, como um tênue e transparente muro, os separavam de coisas que haviam passado a constituir os seus sonhos mais queridos.

Alguém atirou uma pedra; o som de vidros quebrados foi como o sinal para um concerto de gritos, palavrões e ordens. A massa avançou, irresistível; derrubando as portas, quebrando o resto dos vidros, espancando os vigilantes apavorados.

Como gafanhotos, lançaram-se sobre as prateleiras repletas dos mais variados artigos: tantas coisas que sonhavam, que seus estômagos queriam, que suas lembranças reclamavam!

Num verdadeiro pandemônio, enchiam sacolas e fugiam pela rua, correndo. Ouviram-se as primeiras sirenes: a polícia chegava. Acentuou-se a debandada.

Também Gervásio começava a fugir, quando seus olhos caíram sobre algo em uma das prateleiras. Voltou, estendeu a mão, agarrou o objeto. O guarda chegou a seu lado: cassetete numa mão, a outra em seu ombro. Ordenou:

- Largue isso! Já!

Brandiu a faca de cozinha; o guarda caiu. Outros correram para ele. Deixou cair o saco que carregava, as duas mãos segurando o seu tesouro; deitou a correr.

Correu por ruas desconhecidas, pulou muros. Fugindo da polícia, do crime, da sua consciência. Corria por algo que, naquele momento, era mais importante do que tudo; que o levara a matar.

Só na madrugada seguinte, chegou ao acampamento. Sujo, apavorado, os farrapos rasgados, o peito arfante. Vencido, mais derrotado ainda; e, por outro lado, um vencedor.

Nas mãos, trazia o troféu de sua vitória. E, com um sorriso esquisito, o mostrou a Nenzinha:

- Tá vendo? Um rádio de pilha!

 

foto: www.tibico.com.br

 

            

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