Por causa da chuva?

Chovia torrencialmente.
José despertou com o barulho da
chuva. Pelas goteiras do zinco, a água penetrava no barraco; como se pretendesse
lavar a miséria que ali se acumulava.
Moveu-se na cama. E percebeu que
Maria também acordara e o olhava, com os olhos muito abertos. Como sempre, nada
dizia: falava e sofria através dos olhos. E essa dor, que ele entendia, doía
nele também: como se naqueles olhos estivesse contida toda a dor do mundo.
Dessa vez, ela falou:
- Nego, tô com medo!
Ele sabia de que: o barraco,
equilibrado na encosta do morro, também o assustava. Com aquela chuva, quanto
ainda resistiria?
Começara há uma semana.
Esperava-se que passasse logo, como sempre, mas a chuva persistia. Era como se o
próprio Deus se houvesse encarniçado contra os pobres, como se o céu quisesse
varrer aquela mancha negra no branco da sociedade.
De repente, o seu medo se
transformou em raiva:
- E o que é que eu posso fazer?
Diga: o que você quer que eu faça?!
- Ô, nego, eu não sei! Não quero
nada. Só sei que tô com medo. Não é por mim, não; é pelas crianças!
As crianças! Uma chaga aberta na
alma de José: crescendo pobres, passando fome. Magros, mirrados: dois restos de
vida ainda em começo. Muitas vezes, um trapo molhado servia de mamadeira ao
menor; chupando o pano, as gotas d’água enganando a
barriga vazia. Será que ele conseguia imaginar que aquilo fosse leite? Mas,
ainda que o menino se pudesse enganar, José sabia que aquela era a água
estagnada da favela; e a fome dos filhos o castigava mais do que a sua própria
fome.
Arrependeu-se da explosão: Maria
e aqueles meninos eram tudo que tinha de seu neste mundo. Com os seus cabelos
encarapinhados, como os dele mesmo; com a sua compreensão mansa da pobreza, como
se outra coisa não existisse... humildes, machucados, valentes como ele mesmo.
Pousou a mão calejada sobre um
dos seios flácidos:
- Desculpe, nega. Eu sei que tá
ruim, mas não sei mais o que vou fazer! Ontem mesmo falei com o engenheiro lá
das obras, o patrão. Pedi a ele que me adiantasse uma grana, pra poder tirar
vocês daqui.
- E o que foi que ele disse?
- Droga nenhuma; ficou de
responder depois, o miserável! Ele mora numa casa grande, com piscina e tudo!
Outro dia fui lá, fazer um serviço pra ele: dando um duro danado, debaixo de um
sol de rachar, e aquele bando de ricos em volta da piscina, no bem-bom!
Silenciou, absorvido na
lembrança. Sempre que pensava naquele dia, recordava apenas de passagem os
homens bebendo uísque, contando piadas.
O que se fixara, mesmo, em sua
memória, foram as mulheres: com biquínis exíguos, as carnes alva expostas aos
seus olhos. As coxas rijas, os seios firmes, os traseiros quase de fora. Uma
tentação tão grande, que a sua virilidade quase não era contida pelas calças; e
talvez tivesse chamado a atenção daquela madame que, entediada, viera falar com
ele:
Jamais esqueceria aqueles
instantes. A voz bem educada, as mãos tão bonitas, o pé bem tratado. E o
corpo... meu Deus, o corpo daquela mulher!...
- Bom dia.
- Bom dia, madame.
- O que é que você está fazendo
aí?
- Tô ajeitando isto aqui; o
doutor mandou.
Ela se curvara, fingindo
examinar o serviço. Estavam muito próximos, as nádegas roçaram nele; José
estremecera, quase se sentindo explodir. A boca pintada desenhara um sorriso
indefinível e o corpo se afastara do seu. A mulher olhara para baixo; exatamente
para onde se concentrava, naquele instante, toda a vitalidade de José. E
comentara:
- Você é grande, hein?
Ele abaixara os olhos,
envergonhado. E ela prosseguira:
- Boa ferramenta! Se souber
usá-la, deve fazer um bom serviço!
E a mão, despudorada, avançara;
a princípio, apenas roçando no macho excitado. Depois, segurando; como se
pesasse, se avaliasse. José fechara os olhos, sentindo tonturas. Parecia-lhe que
ia desmaiar; que o mundo sumia, resumindo-se àquela mão, àquele ponto do seu
corpo. E a voz foi como uma chicotada:
- Vai trabalhar, negro!
E ela se afastara, devagar,
remexendo os quadris num balanceio enlouquecedor. Reunira-se às outras, às suas
iguais; falando baixinho, unindo as cabeças. Depois, riram-se às gargalhadas.
Todos os olhos femininos se voltaram na sua direção e os seios se agitavam, as
coxas pareciam ter vida própria, tremendo, tremendo... enquanto as bocas rubras
de batom riam dele : da sua miséria, da sua fraqueza.
- E aí, Nego?
A voz o arrancou das suas
lembranças. Voltou ao barraco, à penumbra. Voltou a Maria, de mãos destruídas
pela lavagem da roupa dos ricos, de peitos moles, de carnes corroídas pela fome.
A urgência o assaltou: as lembranças haviam cumprido o seu papel. Virou-se para
o lado,
encostando-se em Maria.
- Mas agora, Nego?!
E não protestou mais; afinal,
ele era o seu homem, o que o mundo lhe dera. Deixou-se tomar; sentiu-o em si,
como um misto de provação necessária e êxtase sobrevivente.
Deu-se a José, enquanto ele
provava nela a carne da madame; enquanto a imaginação dele enrijecia os seus
seios, torneava as suas pernas, aumentava as suas nádegas mirradas.
Sentiu que ele a machucava, como
se tivesse uma raiva secreta; e sentiu-o explodir dentro dela como nunca o
fizera antes. Por sua parte, gostou também: um prazer misto de físico e
compaixão dele e dela mesma. Assim, tinham sido geradas as crianças... as dela e
as de antes dela. Assim, tinham sido gerados eles dois.
O sol não aparecera, encoberto
pelas nuvens, mas uma difusa claridade enchia o mundo, quando José levantou.
Pegou um pouco de água, bochechou com um ruído engraçado. Sentiu a presença de
Maria atrás dele:
- Não tem nada pra comer, Nego;
nem café. Só tem farinha. Quer um pirão?
Pegou a garrafa de cachaça;
restava um pouco no fundo, quase um dedo. Esvaziou-a pelo gargalo. Comeu aquela
mistura de farinha com água e sal. Talvez lhe tenha passado pela cabeça a
semelhança entre ele e o filho: ambos enchendo de água a barriga, como se a fome
pudesse ser enganada.
Saiu para a rua, debaixo da
chuva. A pé, enquanto os ônibus passavam: sem dinheiro ou vale para a passagem.
Andando, pensando: a lembrança da madame, o medo pelo barraco, a sensação de que
aquele seria um dia diferente em sua vida.
Procurou nos bolsos vazios: nem
uma ponta de cigarro esquecida. A necessidade do vício veio juntar-se às outras
necessidades. Os carros, reluzentes, o ultrapassavam. E ele perdido, a pé; com
fome, com medo. Droga de vida, droga de mundo, droga de Deus!
Chegou ao barracão das obras.
Alguém lhe deu um cigarro. Sentiu-se tonto, ao inspirar a fumaça. Procurou o
engenheiro:
- Bom dia, doutor.
Um rápido olhar, o corpo curvado
sobre a prancheta. A frieza na voz:
- Diga, José.
- Doutor, aquilo que eu lhe
falei: o dinheiro... o adiantamento... o vale, o senhor sabe. O barraco pode
cair... as crianças... Maria ..
Sentiu que as pernas tremiam,
que não se expressava como queria. Porque aquela maldita humildade, aquela
submissão que não podia evitar?
O engenheiro levantou os olhos.
E o que José viu neles o fez baixar os próprios olhos: desprezo, nojo,
indiferença.
- Ah, é... você me falou.
Um silêncio, para acentuar ainda
mais o domínio; o poder do dinheiro. Parecia a José que a sua própria vida
pendia da boca daquele homem.
- Não vai dar. Claro que, se
você preferir sair e procurar outro emprego, ninguém vai se zangar. No sábado,
você recebe a semana.
Voltou a absorver-se na
prancheta. José sentiu uma onda de raiva: outro emprego? Onde? E para que ?
Droga, droga, droga! Ele sabia; aquele branco desgraçado sabia que ele nada
podia fazer, que precisava engolir o ódio! Disse, apenas:
- Obrigado, doutor.
Deu as costas e voltou para o
canteiro de obras; para o meio dos operários iguais a ele, com problemas como o
dele. Imaginava o que diria a Maria; como explicaria que precisariam continuar
no barraco, desafiando o perigo.
Mas não precisou dizer nada;
nada mais poderia explicar.
Depois do dia suado, as costas
doendo, voltou para casa. De longe, viu a aglomeração.
Da fraqueza fez forças, do
cansaço sangue novo; correndo, percorreu os últimos metros. E, antes de ver a
tragédia, viu a sua extensão nos rostos que o cercavam. Algumas pessoas tentaram
impedir a sua passagem, bateram em seus ombros, disseram palavras vazias.
Mas ele conseguiu passar :
distribuindo murros, gritando palavrões; chorando o seu desespero, urrando o seu
ódio do mundo.
Passou... e, talvez, antes não
tivesse passado. Para ver Maria e os meninos : três corpos sem vida, imundos de
barro, arroxeados pela asfixia.
Abraçado a eles, chorou as suas
últimas lágrimas; gastou os seus últimos minutos como ser humano. Quando se
levantou, tinha secos os olhos desvairados; morto o coração, vivo o desejo de
vingança.
No dia seguinte, chegou cedo às
obras. Com a faca escondida debaixo das calças.
* * *
Este é o José que a polícia
procura: culpado de assaltos, de estupros, de morte. Aquele que não se contenta
em roubar, mas violenta as mulheres nas casas ricas que assalta.
E foi assim que ele começou a
sua vida de crimes, naquele dia.
Matando o engenheiro, seu
ex-patrão.

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