Lua cheia.
Sexta-feira, meia noite; a hora dos lobisomens. Mas Zeca, sentado na porta da
casa e observando o sertão banhado pelo luar, tinha o pensamento em preocupações
mais reais e prementes.
No dia seguinte, o seu casamento com Maria Luísa. Cabocla jovem e bonita, de
longos e negros cabelos, de corpo roliço e carnes firmes.
No curral, a égua relinchou. Zeca não sabia como, mas aquela diaba parecia
advinhar os seus pensamentos. Depois de tanto tempo, o animal poderia perceber
os sentimentos do dono?
Tanto tempo!... Zeca ainda se lembrava de que recebera a égua de presente, ao
completar dezessete anos. Agora, já aos vinte e um, os laços entre eles pareciam
cada vez mais apertados. Como nos primeiros tempos, ainda era ele o único a dar
banho no animal, a escovar o seu pelo; tratava da égua como se fosse uma
namorada.
E não era? Até aquele dia, ele ainda não conhecera mulher. Fugia dos amigos,
quando tentavam carregá-lo para o mulherio da vila, e arrepiava caminho quando
via mulher à sua frente. Ainda não sabia como conseguira coragem para se dirigir
a Luísa, para iniciar aquele namoro rápido de três meses. Agradecia a Deus,
porque os pais da moça nunca os haviam deixado a sós; porque nada acontecera
entre eles, além de um rápido beijo nas despedidas.
Tanto tempo!... ele ainda se lembrava da primeira vez!
Fora num anoitecer de sábado; acabava de dar banho na égua, como sempre
fazia. Afagava o seu pelo, quase enxuto, com carinho; estavam sós no curral. De
repente, Zeca julgou perceber alguma coisa diferente nos olhos do animal: algo
assim como um convite, uma necessidade que precisava ser satisfeita. Talvez a
sua própria necessidade: com dezoito anos, tímido, já há algum tempo sentia o
chamado da natureza. Arredio das meninas da sua idade, com medo das mulheres da
vida, satisfazia-se com a mão, no escuro do quarto.
As recordações eram meio nebulosas, embora muito presentes: dera uma olhada
medrosa ao redor e levara a égua para um canto do pasto, junto de uma pedra onde
subira. A mão, trêmula de medo e desejo, abrira os botões das calças... e
pronto. A égua começou a relinchar baixinho, como se sentisse o que ele sentia.
Lá dentro era quente e úmido. Zeca sentiu-se desfalecer, perdido em sensações
novas e intensas. Algo dele cresceu, cresceu... até derramar-se naquela caverna
acolhedora e sem fundo. A égua deixou escapar um relincho diferente, em que
transparecia algo assim como uma nota de prazer.
Quantas vezes, depois ? Zeca não sabia. Após a descoberta, não se passara semana
em que não procurasse a égua, por mais de uma vez. Era como se fosse sua mulher;
ela o satisfazia e ele permanecera fiel, afastando-se cada vez mais das
mulheres. Também, não lhe permitira conhecer garanhão; como se sentisse ciúmes,
ou temesse não mais poder satisfazê-la, depois do contato normal com um animal
da mesma espécie.
Assim tinha sido, até aquele esbarrão em Luísa. Um pedido de desculpas, um olhar
naqueles olhos negros e úmidos. O olhar, fora principalmente o olhar! Zeca
julgara perceber naqueles olhos algo que, até então, descobrira apenas nos olhos
da égua: um pedido de sexo, uma ânsia de amor.
A égua tornou a relinchar; era um som longo, sofrido, ansioso. Zeca rosnou,
entredentes:
- Maldição! Agora, não; não hoje!
O relincho se repetiu; como um convite, um chamado. Ele atirou fora o toco de
cigarro, levantou-se e caminhou para o curral.
* * *
Naquela noite, também Luísa não conseguia conciliar o sono; ao lado da
ansiedade, natural em todas as noivas virgens, sentia também um pouco de medo.
Tinha dezenove anos. O bem pouco que sabia da vida, aprendera ao ouvir as
conversas das mulheres mais velhas e das próprias colegas.
Antes, sentia uma vontade imprecisa. Um desejo de algo que não sabia o que
fosse, até que o destino a fizera dar aquele encontrão em Zeca, na feira; alguma
coisa nele transformara o desejo latente em uma vontade irresistível, que
precisava ser satisfeita.
E ela, que havia rejeitado tantos pretendentes, resolvera namorar Zeca; mais do
que isso, fizera tudo para vencer a timidez do escolhido, encorajara-o de todas
as formas possíveis. Lamentava apenas a presença constante dos pais, que jamais
lhe permitira encostar-se nele um instante sequer, sentir bem de perto aquele
corpo, como tanto desejava.
Percebera, desde que o começo, que os pais não viam com bons olhos aquele
namoro, embora não chegassem a opor-se abertamente. Ficara sem saber o porque
até aquele dia em que ouvira, sem ser percebida, a conversa de duas vizinhas que
comentavam o casamento já marcado. Riam, falavam, diziam que toda a vila sabia
da deformidade de Zeca e longe dele, pelas costas, todos o chamavam de "Zeca da
Égua".
Não deixou que a vissem; de mansinho, como chegara, se foi. Deixou de conversar
com as duas, falsas amigas; nem as convidou para o casamento. Depois daquele
dia, afastou-se de todos e concentrou ainda mais os seus pensamentos em Zeca;
mais do que nunca, queria casar-se com ele. Provaria a todos que aquilo era pura
mentira, falatórios de gente desocupada. Como ficaria orgulhosa, quando pudesse
desfilar com a barriga grande; carregando o filho de Zeca, seu marido !
Mas agora, a poucas horas do casamento, Luísa sentia medo: e se tudo fosse
verdade ?
Ouviu bater na porta do quarto; a batida leve, característica, inconfundível, do
pai. Falou:
- Entre, pai.
A porta se abriu e o velho entrou no quarto. Ela o observou, enquanto ele
caminhava até assentar-se na cama. Era magro, rijo, moreno, a pele castigada
pela contínua exposição ao sol. Homem de poucas palavras e raros transportes de
carinho, sentia uma profunda afeição pela filha, a caçula, única entre seis
irmãos do sexo masculino. Casados os outros filhos, só Luísa morava com eles;
era a alegria da casa.
Passou a mão pelos cabelos brancos e coçou, nervosamente, o bigodinho ralo. Ela
conhecia os sintomas: o pai estava preocupado, tinha algo a dizer e não sabia
como começar.
- O pai queria falar comigo?
O velho olhou para a filha: o rosto redondo e juvenil, os olhos brilhantes. Na
dúvida, sentiu pena dela e raiva, muita raiva, do homem que poderia fazê-la
infeliz. Começou:
- Filha, tem certeza... quer dizer: quer mesmo...
- Casar? Sim, pai. Quero casar com ele./p>
O homem suspirou. Tentou outra vez:
- Filha, sua mãe achou melhor que eu viessse. Ela não sabe como dizer...
- Dizer o que, pai?
A cabeça erguida, orgulhosa, desafiante, Luísa encarava o pai; era a fêmea,
lutando pelo seu direito de escolher o macho, como em todas as espécies. E
repetiu:
- Dizer o que?
Ele percebeu que ela já sabia; talvez alguém lhe houvesse dito. E isso, longe de
facilitar a sua missão, a tornava ainda mais difícil; como falar de certas
coisas, a uma filha de dezenove anos, criada com todo recato?
- Filha, tem umas coisas que o povo fala....
- Sim, pai? O que é que o povo fala?
- Esse rapaz... o seu noivo, o Zeca... elle é um moço trabalhador, sossegado. A
rocinha dele vai crescendo, mas...
- Mas o que, pai?
Luísa como que gozava o embaraço do pai. Naquela hora, deixara de ser a filha
obediente; era a mulher, pronta a lutar pelo que queria.
- Mas, filha, o povo fala umas coisas... e dizem que a voz do povo é a voz de
Deus...
- Fala o que, pai?
- Fala que ele não é um homem normal, um homem como os outros. Fala que ele não
gosta de mulher...
- O que, pai? Então, como ele quer casar comigo?
- Não sei, filha, não sei! O povo fala quue lá, na roça dele, tem uma égua...
- E o que tem a égua, pai? O senhor tambéém não tem uma?
- Mas o que o povo fala... é que ele usa a égua como mulher!
Tinha sido dito. Luísa olhou para o rosto enrubescido, contrafeito, do pai; o
velho, confuso, desviou os olhos. O silêncio mais pesado do mundo caiu sobre
eles, esmagando-os.
- Pai...
- O que é, filha?
- O senhor conhece Zeca desde menino. Acrredita nisso?
- Filha, eu não acredito nem desacredito.. Sou velho, já vi coisas neste mundo
que até Deus duvida!
E, pensativo:
- A verdade é que esse moço tem vinte e uum anos, e ninguém nunca o viu com uma
mulher, como todos os outros homens da idade dele. A família é boa; eu conheci
os finados pais, eram de boa natureza. Mas essas coisas, filha, a gente nunca
sabe! O povo aumenta, mas não inventa...
Novamente o silêncio, enquanto Luísa ouvia a voz dos próprios receios. Alguns
momentos se passaram, até que o velho perguntou:
- E então, filha? Quer mesmo?
- Quero, pai. Vou casar com ele!
O homem abaixou a cabeça, vencido:
- De qualquer forma, se alguma coisa der errada, quero que você saiba que esta
casa é sempre sua casa, e este velho vai ser sempre seu pai. Se a coisa for
ruim, volte. Aqui sempre vai ter o seu lugar!
Os olhos da moça encheram-se de lágrimas. A voz tremeu e a cabeça foi reclinada
no ombro do velho.
- Obrigada, pai! Obrigada!
A mão calejada levantou-se, inexperiente, para afagar os cabelos negros. Pai e
filha choraram juntos o seu medo em comum.
* * *
Sábado, sete horas da noite.
Os últimos convidados estavam indo embora. Pouca gente, que Zeca quase não tinha
amigos e Luísa chamara apenas aqueles mais chegados.
De pé, na porta, os noivos olhavam as pessoas que sumiam na estrada, os lampiões
iluminando o caminho. Pela primeira vez, Luísa sentia o corpo de Zeca encostado
ao seu, o calor das carnes dele acendendo um calor dentro dela. Falou:
- Vou tomar um banho.
Esquentou a água no fogão de lenha. Carregou o balde para o banheiro e com a
cuia derramou a água, lenta e voluptuosamente, sobre o corpo. Saiu do banheiro
já vestida na camisola nova e estendeu-se na cama. Chamou o marido:
- Não vem, Zeca?
Da sala, veio a resposta:
- Já vou; é só fechar a casa.
Nesse momento, a égua relinchou. Com um som de desafio, de raiva, de amante
traída. Pelo menos assim pareceu a Luísa, esposa fremente à espera.
Mais alguns minutos se passaram e Zeca apareceu na porta do quarto, vestido num
pijama, os cabelos molhados, a boca cheirando a pasta de dentes. Meteu-se na
cama, ao lado dela. Do curral veio um novo relincho da égua; agora mais
insistente, mais incisivo, mais premente.
Luísa achegou-se ao marido; colou o corpo ao dele. Em um movimento casual , a
mão roçou de leve a frente do pijama; sentiu a quentura e a dureza do homem.
Zeca deitou-se sobre ela; desajeitadamente, afobadamente. A mão afastou a parte
de cima da camisola e a boca arfante tomou posse de um seio. A mulher respirou
fundo; aquelas carícias inexperientes provocavam sensações desconhecidas e
ansiadas. Camisola e calçola despidas, atiradas a um canto do quarto, a mão rude
do sertanejo apalpava as carnes virginais de Luísa, que se sentia desfalecer.
Desta vez o relincho da égua chegou a seus ouvidos como amortecido, vindo de
muito longe, de um mundo que já não existia. O seu mundo, agora, era aquele
quarto; aquela boca que sugava, a mão que lhe abria as pernas... ah! Mundo
delicioso, de novas sensações!
Demorou a perceber que tudo mudara. Que a boca já
não estava em seu seio, a mão já não estava em suas partes e a abertura de suas
pernas já não tinha qualquer finalidade. O seu corpo não suportava mais o peso
de Zeca, que soluçava a seu lado.
Virou-se para o marido; a perna nua roçou na frente do pijama. Ainda era o mesmo
calor da carne, mas onde estava a dureza? Sentiu, contra a coxa, um pedaço de
carne mole e inútil. Chamou:
- Zeca...
A égua tornou a relinchar. Como um autômato o homem se levantou, deixou o
quarto, abriu a porta da casa e foi para o curral. Ardente, molhada,
desesperada, enterrando os soluços no travesseiro, os olhos fechados para não
ver o desmoronar dos seus sonhos, Luísa ficou ali, abandonada.
E escutou, pouco depois, o relincho triunfante da égua.
* * *
Vinte dias se haviam passado, e a vida entrara em uma mansa rotina.
Luísa não dissera nada ao pai, nem a ninguém. Mas quando ia ao povoado, fazer
compras no armazém, percebia ou julgava perceber que todos se riam dela,
comentavam às suas costas, apontavam-na com o dedo; nessas horas, chegava a
odiar Zeca.
Mas o pior eram as noites, depois do jantar. Quando Zeca, sempre calado, arredio
como envergonhado de sua tara, saía para o alpendre, a fumar um cigarro. Luísa
deitava, fingia dormir; só quando tinha certeza do seu sono, o marido vinha para
a cama, de mansinho, e se estirava a seu lado.
Isso, nas noites boas. As que lhe davam ódio de verdade eram as noites em que
Zeca vinha para o quarto, espreitava o seu respirar uniforme e depois escapava
para o curral; era como uma punhalada em seu corpo o relincho satisfeito da
égua, depois de cada uma dessas incursões do marido. Odiava a idéia de que o
animal recebia, dentro de si, a descarga que só a ela, Luísa, mulher de
casamento na igreja e papel passado no Cartório, pertencia de direito.
Não suportava mais! Naquela noite, jogaria tudo; faria de tudo, para que Zeca
esquecesse a maldita égua. O marido estava casmurro, ensimesmado; sinais de que,
mais tarde, iria ao curral. Mas ela não iria deixar; não naquela noite!
Depois de um banho prolongado, perfumou todo o corpo. Foi para o quarto,
despiu-se e chamou o marido:
- Zeca, venha cá!
Ele foi. E quedou-se, estupefato, ao passar da porta: Luísa, nua, estava de
quatro sobre a cama, as nádegas voltadas na direção dele, remexendo,
convidativas. O mesmo convite que vibrava na voz:
- Venha, Zeca, venha!...
Olhou, por alguns instantes: as carnes maciças e morenas, as ancas redondas, as
coxas roliças. E, entre as coxas, sombreada pela penugem macia, aquela caverna
que lhe fazia lembrar a da égua, que pedia a sua presença.
- Venha, Zeca, venha!....
Como hipnotizado, desatou o cinto; arrancou as calças e a cueca e acercou-se da
cama. Ainda em pé, colocou as mãos nas ancas de Luísa e foi-se aproximando, até
sentir em seu próprio corpo o calor das carnes úmidas. De súbito, sem aviso,
enterrou-se nelas, até que suas coxas pressionaram o corpo da mulher.
A princípio, Luísa sentiu dor: uma dor brutal, quente, como se algo dilacerasse
o seu corpo, penetrando em suas profundezas mais sensíveis. Mas era uma dor
triunfante, e que logo se transformou em prazer, quando Zeca começou o vai-e-vem
dentro dela. E o prazer foi aumentando,
aumentando... até explodir num grito satisfeito, ao qual fez eco a voz de Zeca
que derramava, pela primeira vez, o sêmen em seu recipiente legal.
Exaustos, deitaram-se lado a lado, ambos nus. E Zeca cochilava quando Luísa
aproximou a boca de seu ouvido. Ela sabia que, agora, o marido aprenderia sempre
mais sobre o amor normal, mas era preciso afastar dele a rival, a tentação, o
objeto da sua tara.
Pediu, a voz meiga e suplicante:
- Zeca, me dá a égua?
Sonolento, ele resmungou:
- Dou, dou...
- Pra eu fazer o que quiser?
- Dou...
A mão dela afagou os seus cabelos, até que Zeca estivesse completamente
adormecido; então, Luísa saiu da cama e colocou o seu vestido de noiva. Na
parede da sala, apanhou a espingarda de caça; abriu a porta e saiu, na direção
do curral.
Parou, junto à cerca. A égua a encarou, bufando, a cabeça erguida, os olhos
destilando raiva e desafio. Luísa levantou bem alto o lampião, olhou
cuidadosamente para o animal: nem o menor sinal de medo, só atrevimento e
expectativa.
Pousou o lampião no solo, a luz dissipando o escuro da noite. Apoiou o cano da
espingarda na madeira da cerca; a culatra apoiada no ombro, firmou a pontaria.
Com o disparo, Zeca acordou. Sobressaltado correu para o curral, a tempo de ver
a égua estrebuchando no chão. Em silêncio, com um misto de remorso e alívio,
passou o braço pelos ombros de Luísa, puxando-a para si e evitando olhar para a
égua moribunda.
No sangue do animal, que começava a escorrer pelo capim ralo, diluíam-se as
frustrações da mulher...