Índios do Ceará

 Tornou-se rotineira nos livros de história a idéia de "descobrimento do Brasil". Refere-se ela à chegada dos portugueses a terras até então desconhecidas. Contudo, em 1500 esse país foi descoberto somente para o branco europeu, visto que já era habitado por milhões de índios. Tal ano marca, por certo, o início da invasão, da conquista e da exploração dessa terra.

O território cearense, na época de seu descobrimento, era habitado apenas por dois povos selvagens: os tupis e os cariris. Essas duas nações se subdividiam em mais de sessenta tribos que possuíam quase os mesmos costumes dos demais povos selvagens que povoavam o Brasil.

O primeiro contato do branco europeu com o nativo foi amistoso; é só lembrar o escambo (troca de produtos). Contudo os maus tratos, o egoísmo e a imoralidade de alguns colonizadores causaram o ódio e a revolta nos índios, originando um tremendo conflito.

Milhões foram mortos em nome do capitalismo, do comércio, do lucro, da fé. E o pior de tudo, tentou-se justificar esse holocausto propagando a idéia que o índio era "selvagem, pagão, inferior, indisciplinado, sujo, preguiçoso e que precisava adaptar-se à missão progressista e cristã do branco civilizado".

Dos 4 milhões de índios do ano de 1500, restam hoje pouco mais de 150 mil, dispersos pelo país, sujeitos à extrema miséria, a doenças, à exploração de grileiros, de garimpeiros, de multinacionais, perdendo a própria cultura e identidade - discriminados, sem assistência do governo, sem nada.

Não obstante imprecisões, devido as ações de expulsão e extermínio dos nativos terem sido feitas quase sem registros ou documentação, conforme as línguas faladas pelos nativos, o historiador Carlos Studart Filho aglutinou-os em 5 grupos: Tupis, Cariris, Tremembés, Tarairius e Jês.

Os Tupis cearenses compunham-se basicamente de duas grandes nações, a dos Tabajaras (parentes dos Tupiniquins) e a dos Potiguares (próximos dos Tupinambás), inimigas radicais.

Os Tabajaras, que provavelmente vieram da Bahia, habitavam a serra da Ibiapaba. Guerreiros valorosos, segundo alguns, antropófagos, chegaram a dominar outras tribos (como a dos Tucurijus), oferecendo feroz resistência à penetração do conquistador (foram eles que, em aliança com traficantes franceses, combateram Pero Coelho em 1603).

Os Potiguares, originários do Rio Grande do Norte, de onde foram expulsos pelos colonizadores, localizavam-se principalmente no Baixo Jaguaribe e em alguns pontos ao longo do litoral. Também combateram a bandeira de Pero Coelho, embora alguns do grupo "já mansos", tenham servido como flecheiros na expedição deste conquistador e na dos jesuítas Pinto e Filgueiras. Um de seus líderes, Jacaúna, foi importante aliado de Soares Moreno, ajudando-o no combate a outros indígenas e até a piratas estrangeiros.

Do grupo Cariri ou Quiriri, que ocupava áreas dispersas entre os rios São Francisco (BA) e Parnaíba (PI), poderíamos citar as nações dos Inhamuns (habitantes dos sertões de igual nome e aldeados por frades carmelitas em São Mateus, hoje Jucás), dos Cariús (localizados sobretudo na serra do Pereiro e nas terras compreendidas entre os rios Cariús e Bastões, foram "amansados" na missão do Miranda, atual Crato), dos Cariris propriamente dito (uns dos que, vivendo no extremo sul da capitania, reagiram intensamente à invasão branca; foram catequizados em Missão Velha) e dos Caratéus ou Crateús (que se localizavam na bacia superior do rio Poti).

O grupo dos índios Tramenbés ocupava uma faixa litorânea que ia da baía de São Jorge, no Maranhão às margens do rio Curu. Acabaram aldeados pelos jesuítas na Missão de Nossa Senhora da Conceição de Almofala, hoje município de Itarema.

Dentre as nações que compunham o grupo Tarairiu, destacaram-se os Janduins (habitantes originais do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco, mas que incursionavam amiúde pelas terras do Baixo Jaguaribe), os Canindés e os Jenipapos habitantes das Margens dos rios Banabuiú, Quixeramobim e cabeceiras dos Cariús. Outros Tarairius eram os Baiacus, também chamados de Paiacus ou ainda de Pacajus, os Arariús, os Quixelôs e os Tacarijus ou Tucurijus, responsáveis pelo trucidamento do jesuíta Francisco Pinto em 1607.

Do grupo , ao que parece, nas terras do Ceará, apenas habitavam os Aruás em área próxima ao rio Jaguaribe.

Confederação dos Cariris (Guerra dos Bárbaros)*

* Bárbaros - índios não Tupis, ou nativos que não falavam tupi-guarani - os índios de língua travada Entenda-se por Cariris os Tapuias em geral. Pelo exposto, já é possível concluir que o mundo indígena findou-se com o avanço das fazendas de gado do branco colonizador (que assassinava os gentios, violentava-o sexualmente, usurpava as terras deste) e com a própria ação dos missionários católicos, os quais, na pretensão de catequizar o nativo, acabaram por destruir-lhe a cultura e o modo de viver.

Os índios, todavia, jamais aceitaram passivamente a dominação do homem branco, reagindo de modo heróico contra as circunstâncias. Tal reação veio de diversas maneiras, como escapando dos aldeamentos, fugindo do cativeiro e armando-se para lutar abertamente contra o invasor, atacando-lhes as vilas e as fazendas, trucidando-o. O europeu, em contrapartida, fazia a "guerra justa", enchendo os sertões de sangue e cadáveres.

Um dos grandes exemplos da resistência indígena no Brasil deu-se com a chamada "Guerra dos Bárbaros" ou "Confederação dos Cariris", que durou cerca de 30 anos (1683 - 1713), na qual nativos do Rio Grande do Norte e principalmente do Ceará, e alguns de Pernambuco, Piauí e Parnaíba se uniram em uma confederação para enfrentar o conquistador branco.

Os cariris ocupavam a vastíssima região compreendida entre a margem esquerda do Rio São Francisco e as quebradas das serras do Araripe e da Ibiapaba. Habitavam o sertão mas, ao longo dos rios e de suas cabeceiras, estendiam-se até as proximidades da costa ou para lá se dirigiam de outubro a novembro, para a colheita do caju, que usavam como alimento e na fabricação do vinho denominado mocororó.

Em face da gravidade da situação, dos pedidos de socorro que lhe chegavam das zonas conflagradas, não dispondo de forças suficientes para reprimir a revolta, frei Manuel da Ressurreição, então no governo-geral do Brasil, decidiu requisitar bandeirantes de São Paulo e de São Vicente, para acabar com a anarquia.

A presença dos paulistas não evitou que a guerra entre os brancos e os silvícolas confederados se dilatasse anos seguidos das fronteiras do Rio Grande do Norte ao interior do Ceará. Os Baiacus foram os mais terríveis e constantes inimigos dos colonizadores na zona do baixo Jaguaribe.

No ano de 1713 a Confederação mostrou-se ainda viva na revolta geral desencadeada pelos Baiacus, Anacés, Jaguaribaras, Acriús, Canindés e Jenipapos, que forçaram os Tremembés a segui-los.

A vila do Aquiraz, então sede da Capitania, foi inopinadamente atacada. Na sua defesa morreram 200 pessoas. O resto da população fugiu, defendendo-se como pode pelo caminho, que se semeou de mortos, indo acolher-se à proteção dos canhões da fortaleza de Nossa Senhora da Assunção na foz do Pajeú.

Entrou então em ação o famoso regimento de ordenanças do coronel João de Barros Braga. Essa cavalaria, vestida de couro como os vaqueiros e composta de homens conhecedores do terreno em que pisavam, bem como do modo de guerrear dos indígenas, exterminou-se em violentíssima guerra de morte, que subiu pelo vale do Jaguaribe ao do Cariri e aos confins piauienses.

Assim, acabou melancolicamente a terrível Confederação dos Cariris que durante 30 anos trouxe em sobressalto as gentes que iam povoando e civilizando as terras do Rio Grande do Norte e do Ceará.


Montes e Feitosas

Sem função econômica definida, muitas vezes os índios já "domesticados" acabavam na dependência (semi-servidão) de grandes fazendeiros. Estes, dotados de enorme autonomia perante as autoridades governamentais, chegavam mesmo a controlar tribos inteiras, envolvendo-as nas disputas particulares. Com base nesse raciocínio, compreende-se a participação de muitos gentios no famoso conflito entre as famílias Monte e Feitosa, que abalou o sul cearense no primeiro quartel do século XVIII.

Os sertões cearenses eram dominados por dois grandes fazendeiros, criadores de gado, proprietários de vastíssimos latifúndios, senhores patriarcais que se inimizaram por questões de terra ou de família, dando origem a uma luta de clã, que durou mais de cem anos e se tornou famosa na história do cangaceirismo nordestino.

Além de dezenas de acostados, Lourenço Alves Feitosa (originário de Alagoas) chefiava os Jucás e Geraldo do Monte (originário de Sergipe) os Carius, formando verdadeiros exércitos sustentados às suas custas. Os embates sangrentos dessa verdadeira guerra chegaram quase aos nossos dias. A tradição oral conservou por longo tempo a memória das crueldades e morticínios praticados no decurso das lutas, sobretudo das ações bárbaras dos índios a serviço dos contendores.

Os únicos que sofreram alguma punição, foram os índios envolvidos no confronto, obrigados a deixar o Ceará (para não mais serem usados pelos coronéis). Os Montes, segundo registram os antigos historiadores, saíram da contenda empobrecidos e dizimados, enquanto os Feitosas continuaram fortes e a exercer seu poder nos anos seguintes.

Nenhuma tribo resistiu às tentações da aguardente, às moléstias contagiosas, às brutalidades do colonizador. Em três séculos toda essa pobre gente emigrou, fugiu, desapareceu. O índio do Ceará foi desaparecendo misteriosamente, como sentindo que o seu tempo passara e eles se haviam tornado estrangeiros em sua própria terra.

O sangue índio, embora diluído e fraco, corre ainda na veia dos matutos, dando-lhes com os traços fisionômicos, a coragem e a resignação da raça vencida.

Eles não desapareceram! Eles existem! Hoje, seus descendentes, como os Tremembés (em Almofala - Itarema), Os Genipapos e Canindés (em Lagoa da Encantada - Aquiraz), os Paiacus )em Aquiraz e Pacajus), os Pitagarys (em Maranguape), os Tabajaras (em Viçosa) e os Tapebas (estes originários do convívio entre Cariris, Potiguares e Tremembés em Caucaia) lutam pelo reconhecimento e preservação de sua identidade e patrimônio cultural, além de exigirem, com toda razão, a demarcação de terras historicamente a eles pertencentes. A resistência indígena continua!

Fonte: Filgueira Sampaio - História do Ceará - Editora do Brasil S.A. Aírton de Farias - História do Ceará - Dos Índios á Geração Cambeba - Tropical Editora