Dia desses eu estava sentado numa sala de espera aguardando a minha
vez para cortar o cabelo, com o Toninho, da Super Quadra Tupã.
Estava muito distraído, lendo uma daquelas revistas que sempre tem
em sala de espera, quando adentrou uma menina, linda, magra, muito
branquinha e, aparentemente, de uns sete anos de idade. Ela usava
um arco a lhe prender os cabelos finos e lisos que iam até os
ombros, roupas que denunciavam a origem pobre, mas que também
mostravam um cuidado materno especial, pois estavam muito limpas e
cheirosas. Era uma criança impossível de não ser notada, sorriso
aberto, carisma a flor da pele e trazia numa das mãos um cartão de
loteria instantânea, dessas conhecidas como "raspinha".
Já completamente cativado não me preocupei em disfarçar o meu
encanto e fiquei ali torcendo para que ela me dirigisse a palavra.
Era como se eu soubesse que algo especial estava para acontecer.
- O senhor compra pra ajudar? É deis real...
- Reais, disse eu para ver a reação dela.
- É mesmo. Minha mãe sempre me corrige: deis reais. Mas o senhor
compra?
A minha vontade era comprar o cartão, mas não queria acabar logo
com a conversa e continuei:
- Depende... Pra ajudar o quê?
- É pra ajudar a gente lá em casa. Meu pai tá desempregado e a
minha mãe tá muito doente. Eu tô vendendo essa raspinha aqui pra
poder comprar leite pro meu irmãozinho. Ele tem dois anos e meio.
A essa altura eu já tinha certeza de que compraria o cartão. Não
que me comovesse além do normal. Era puro encantamento com aquela
menina.
- Como é o seu nome?
- Amanda...Nossa! Como o senhor ficou vermelho!
- É que eu tive uma filha que se chamava Amanda... A última
lembrança que eu tenho dela, ela era assim como você... Sabe?
Em todo lugar que eu vou eu sempre encontro uma Amanda.
- Onde tá a sua filha agora?
- Ela morreu num acidente faz algum tempo. Talvez ela esteja
"vendendo cartões" no céu pra ajudar lá em casa...
- O senhor ficou triste, né? Desculpa...
- Não, eu não estou triste. Mas o que é que a sua mãe tem?
- Eu não sei dizer não senhor. Mas o meu pai vive chorando
escondido. Ele bem que tenta disfarçar. Eu também finjo que não
noto, mas eu sei que ele tá chorando. Eu não gosto de ver meu pai
chorando... O senhor vai comprar, não vai? Eu vou contar um
segredo: este cartão aqui está premiado, sabia?
- É? Onde você conseguiu este cartão? E como você sabe que ele
está premiado?
- Foi um anjo que desceu lá do céu e me deu ele pra eu vender. Ele
disse que é um cartão premiado.
- Um anjo??
- É! Por quê? O senhor não acredita?
- Acredito sim. Mas se o anjo lhe deu o cartão e disse que é
premiado, por que você o está vendendo? Por que você não raspa ele
e fica com o prêmio? Assim você vai poder ajudar toda a sua família,
a sua mãe...
- Mas eu não posso ficar com ele não senhor.
- Por que não?
- O anjo me disse que era pra eu vender por deis real.
- Reais!
- É. Por deis reais. E que não era pra eu raspar ele senão eu
estaria sendo gananciosa. Eu não sei o que quer dizer essa palavra
"gananciosa", o senhor sabe?
- Eu também não sei não. Esse anjo fala muito difícil... Mas eu
tenho certeza que você não é isso não...
- Ele falou que eu tinha de dar a sorte pra alguém que eu
encontrasse e que eu gostasse, e eu gostei do senhor. O senhor
compra?
- Como você sabia que era um anjo de verdade?
- Ele tinha duas asas bem grandes e desceu voando lá do céu.
- Como era o nome dele?
- Ele não falou o nome dele não senhor.
- E você não perguntou?
- Se o senhor visse um anjo o senhor ia ficar fazendo pergunta? Eu
fiquei foi mudinha.
- E por que esse anjo apareceu logo pra você?
- É que eu estava rezando pro menino Jesus, pedindo pro meu pai
arranjar um emprego e pedindo pra Ele curar a minha mãe, então o
anjo apareceu pra mim. Ele disse que se eu vendesse esse cartão
que ele me deu, por deis real...
- Reais!
- É, reais... Se eu vendesse, Jesus já tinha autorizado ele a curar
a minha mãe e a arranjar um emprego pro meu pai, mas, que se eu
ficasse com o cartão só ia acontecer coisa ruim.
- Então se eu comprar o cartão que o anjo deu pra você, só vai me
acontecer coisa ruim?
- Não. O senhor não entendeu. Eu é que não posso ficar com o cartão.
A pessoa que comprar ele, vai tá sendo boa e vai tá acreditando no
anjo. Então, pra quem comprar, só vai acontecer coisa boa. O senhor
vai receber o prêmio e não vai mais ser triste.
- Quem disse pra você que eu sou triste?
- O seus olhos e o seu jeito de falar. O senhor parece uma pessoa
triste, sabia?
- Sabia... Tá bom. Eu compro o seu cartão.
Deixando escapar um breve suspiro, Amanda agarrou os dez "real" e,
num gesto que me deixou surpreso e muito feliz, me deu um beijo no
rosto. Ela parou na minha frente e ficou olhando eu guardar o
cartão no bolso, com um sorriso bobo nos meus lábios. Um tanto
decepcionada ela perguntou:
- O senhor não vai raspar pra ver se está mesmo premiado?
- Não. Eu tenho certeza de que está.
- Mas se o senhor não raspar não vai poder receber o prêmio.
- Eu já recebi quando você entrou aqui.
- Eu não entendi o que o senhor quis dizer.
- Mas o seu anjo entendeu, minha filha. O seu anjo entendeu, meu
anjo...
Ela foi embora meio que desconfiada, olhou pra trás algumas vezes e
eu nunca mais a vi. Sempre que volto ao Toninho, ou paro na super
quadra para alguma coisa, corro os olhos pelas calçadas. Tenho
certeza de que a verei um dia. Quero saber se sua mãe está melhor e
se seu pai já "arranjou" um emprego.
Quanto ao cartão, eu ainda não me atrevi a raspá-lo e creio que
nunca o farei. Gosto de acreditar que sou o único homem no mundo
que ganhou um cartão de loteria premiado, dado por um anjo e
trazido por outro.
Quanto ao prêmio, penso que não pode haver um mais valioso do que
esta história toda.
por ROBSON LUIZ RAMOS
<< Como você vê a vida?
Opala >>