CARTA AOS MORTOS

Amigos, nada mudou em essência.

Os salários mal dão para os gastos; as guerras não terminaram e há vírus novos e terríveis embora o avanço da medicina. Volta e meia um vizinho tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade, e, como sempre, mulheres portentosas nos seduzem com suas bocas e pernas, mas em matéria de amor não inventamos nenhuma posição nova.

Alguns cosmonautas ficam no espaço seis meses ou mais, testando a engrenagem e a solidão. Em cada olimpíada há recordes previstos e nos países, avanços e recuos sociais. Mas nenhum pássaro mudou seu canto com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas, relemos o Quixote, e a primavera chega pontualmente cada ano. Alguns hábitos, rios e florestas se perderam. Ninguém mais coloca cadeiras na calçada ou toma a fresca da tarde, mas temos máquinas velocíssimas que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros e a formação das galáxias não avançamos nada. Roupas vão e voltam com as modas. Governos fortes caem, outros se levantam, países se dividem, e as formigas e abelhas continuam fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas, discutimos futebol na esquina, morremos em estúpidos desastres e volta e meia um de nós olha o céu quando estrelado com o mesmo pasmo das cavernas. E cada geração, insolente, continua a achar que vive no ápice da história.

Affonso Romano de Sant'anna
Enviado por Idelmo - Novos Mensageiros

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