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rOMANTISMO

 

OS SOFRIMENTO DO JOVEM WERTHER - Goethe (Excertos)

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE CAMÕES - Almeida Garret

A MORTE NO ROMANTISMO - Hegel

O NOIVADO DO SEPULCRO - Soares de Passos

LENDAS E NARRATIVAS - Alexandre Herculano (Excertos) 
AMOR DE PERDIÇÃO - Camilo Castelo Branco (Excertos)

Os sofrimentos do jovem Werther - Goethe (excertos)

Introdução

Juntei cuidadosamente tudo quanto me foi possível recolher a respeito do pobre Werther, e aqui vos ofereço, certo de que mo agradecereis. Sei, também, que não podereis recusar vossa admiração e amizade ao seu espírito e caráter, vossas lágrimas ao seu destino. E a ti, homem bom, que sentes as mesmas angústias do desventurado Werther, possas tu encontrar alguma consolação em seus sofrimentos! Que este pequeno livro te seja um amigo, se a sorte ou a tua própria culpa não permitem que encontres outro mais à mão! (...)  

As paixões do insensato

- Aí o caso é completamente diferente – replicou Alberto – porque um homem que é arrastado pelas suas paixões perde toda a capacidade de raciocinar e passa a ser encarado como um ébrio, como um demente.

- Ai de vós todos tão sensatos! – exclamei sorrindo. – Paixão! Embriaguez! Loucura! Conservai-vos tão serenos, tão desinteressados, vós, os moralistas; cobris de injúrias o bêbado, detestais o insensato, passais ao largo como o sacerdote e agradeceis a Deus, tal o fariseu, por não vos ter feito iguais a eles. Mais de uma vez me embriaguei, minhas paixões nunca estiveram longe da loucura e não me arrependo nem de uma coisa nem de outra, apesar de terem-me ensinado que sempre se haveria de menosprezar todos os indivíduos excepcionais que fizeram algo de grandioso, algo de aparentemente irrealizável!

Mas também na vida cotidiana é insuportável ouvir quase sempre gritar para qualquer um empenhado numa ação livre, nobre, inesperada: “É um bêbado, está louco!” Envergonhai-vos, vós todos são sóbrios! Envergonhai-vos, vós todos tão sensatos!

 

O Sentimento da Natureza

 

O sentimento cabal, fervoroso do meu coração pela Natureza completa de vida que se inundava de infindáveis deleites, que transformava o mundo que me cerca num paraíso, está-se convertendo para mim num verdugo insuportável, num espectro atormentador que me persegue por todos os caminhos. Quando, outrora, contemplava de um rochedo o fértil vale, que além do rio, se estendia até as colinas e via tudo em redor a germinar e a desabrochar; quando eu avistava aquelas montanhas cobertas, do sopé ao cume, de grandes árvores frondosas, os vales sinuosos sombreados pelos mais belos bosques, e a corrente remansosa que deslizava entre os juncos sussurrantes, refletindo as brandas nuvens que o ar suave da tarde impelia na atmosfera; quando, depois, escutava os pássaros encherem a floresta de alegria e os milhares de enxames de moscardos dançavam animadamente ao último raio rubro do sol, cujo derradeiro olhar vibrante trazia o escaravelho zumbidor para fora das ervas e os zunidos e o rumorejar à minha volta atraíam o meu olhar para o chão, e o musgo que tira o seu sustento do rochedo duro em que estou e a giesta que cresce pelas áridas encostas de areia iniciavam-me na vida secreta, ardente e sagrada da Natureza: como eu acolhia todas essas coisas no meu coração extasiado, sentia-me como um deus em meio à plenitude transbordante, e as formas admiráveis do universo infinito giravam na minha alma e tudo transmitindo uma vida nova. Montanhas colossais faziam cerco em torno de mim, abismos abriam-se à minha frente e torrentes precipitavam-se impetuosamente, os rios corriam em fúria a meus pés, florestas e montanhas ressoavam formidáveis fragores; e eu via todas as forças misteriosas agindo e operando umas sobre as outras, nas profundezas da terra; e à superfície, sob o firmamento, fervilhavam todas as espécies de múltiplos seres. Tudo, tudo repleto de milhares de formas; e os homens, depois, protegendo-se juntos em arremedos de casas e, em pensamento, reinando sobre o vasto Universo! Pobre louco, que consideras tudo tão insignificante, sendo tu tão ínfimo. – Da montanha inacessível, por sobre o deserto que nenhum pé trilhou, até os confins do oceano desconhecido sopra o espírito do eterno Criador que se regozija por cada grão de pó que sente a sua presença e que vive. – Ah! Naquele tempo, quantas vezes ansiei transportar-me para as praias do imenso oceano nas asas do grou que passava voando lá no alto naquela direção, beber da taça borbulhante do infinito as volúpias da vida que dilatam o coração e sentir um só instante, na veemência represada do meu peito, uma gota da bem-aventurança desse ser que tudo gera em si e por si.

 

Amor

 

A razão por que eu não lhe tenho escrito? E é você que mo pergunta, você que se inclui entre os sábios? Pode bem adivinhar que sou feliz, e mesmo... Em duas palavras, conheci alguém que tocou o meu coração. Eu... eu não sei o que diga... Não é fácil contar-lhe, metodicamente, as circunstâncias que me fizeram conhecer a mais adorável das criaturas. Sinto-me contente, feliz; serei, portanto, um mau narrador. É um anjo!... Bolas! Já sei que todos dizem isso da sua amada, não é verdade? Entretanto, é-me impossível dizer a você o quanto ela é perfeita, nem por que é tão perfeita. Só isto basta: ela tomou conta de todo o meu ser. (...)

Última carta

(...) você trazia no corpete, quando a vi pela primeira vez em meio das suas crianças... Oh! beije-as mil vezes por mim e conte-lhes a história do seu desgraçado amigo! Queridas crianças! Vejo-as alvoroçadas em torno de mim! Ah! Como me prendi a este nó cor-de-rosa, como, desde o primeiro momento, não mais pude deixá-lo... Irá comigo para o túmulo; você mo deu no dia do meu aniversário natalício. Com que sofreguidão o recebi! Não pensava que tudo me havia de conduzir até aqui!... Calma, peço-lhe, calma!

Elas estão carregadas... bateu meia-noite! Assim seja, então!... Carlota, Carlota! Adeus, adeus!

Narração

Um vizinho viu o clarão da pólvora e ouviu o estampido, mas, como tudo voltou ao completo silêncio, não se inquietou mais.

Às 6 horas da manhã, ao entrar com uma lâmpada, o criado encontrou o amo estendido no solo. Vendo as pistolas e o sangue, chamou-o, sacudindo-o. Nenhuma resposta. Werther estertorava. Correu ao médico, foi à casa de Alberto. Carlota ouviu bater e sentiu um arrepio por todo o corpo. Despertou o marido e ambos saltaram da cama. O criado, gritando e gaguejando, deu-lhes a notícia. Carlota caiu sem sentidos aos pés de Alberto.

Quando o médico chegou, o desgraçado jazia no soalho. Não havia mais esperanças de salvá-lo, pois, conquanto o pulso ainda batesse, todos os membros estavam paralisados. Ele havia metido uma bala na cabeça, acima do olho direito, e os miolos saltaram para fora. Fazendo uma tentativa, deram-lhe uma sangria no braço; o sangue correu e ele continuou a respirar. A mancha de sangue que se via no espaldar da poltrona provou que Werther estava sentado à sua secretária quando disparou a arma; que em seguida tombara e, debatendo-se na convulsão, rolara ao lado da mesma poltrona. Estirado em decúbito dorsal, perto da janela, não teve mais forças para fazer qualquer movimento. Estava completamente vestido e calçado, envergando um fraque azul e um colete amarelo.  

 

 

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE CAMÕES - Almeida Garret

 

 

A índole deste poema é absolutamente nova; e assim não tive exemplar a que me arrimasse, nem norte que seguisse

Por mares nunca dantes navegados.

Conheço que ele está fora das regras, e que, se pelos princípios clássicos o quiserem julgar, não encontrarão aí senão irregularidades e defeitos. Porém declaro desde já que não olhei as regras nem a princípios que não consultei Horácio nem Aristóteles, mas fui insensivelmente depós o coração e os sentimentos da natureza, que não pelos cálculos da arte e operações combinadas do espírito. Também o não fiz por imitar o estilo de Byron, que tão ridiculamente aqui macaqueiam hoje os franceses a torto e a direito, sem se lembrarem que para tomar as liberdades de Byron, e cometer impunemente seus atrevimentos, é mister haver um tal engenho e talento que, com um só lampejo de sua luz, ofusca todos os descuidos e impede a vista deslumbrada de notar qualquer imperfeição. Não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma), e por isso me deixo ir por onde me levam minhas idéias boas ou más, e nem procuro converter as dos outros nem inverter as minhas nas deles: isso é para literatos de outra polpa, amigos de disputas e questões que eu aborreço.

A ação do poema é a composição e publicação dos Lusíadas; os outros sucessos que ocorrem são de fato episódicos, mas fiz por os ligar com a principal ação. Tão sabida é a fábula ou enredo dos Lusíadas e a vida de seu autor, que nem tenho mais explicações que fazer a esse respeito, nem será difícil ao leitor o distinguir no meu opúsculo o histórico do imaginado: mas não separará decerto muita coisa, porque das mesmas ficções que introduzi têm sua base verdadeira as mais delas.

Sobre ortografia (que é força cada um fazer a sua entre nós, porque não a temos) direi só que segui sempre a etimologia em razão composta com a pronúncia; que acentos só os pus onde sem eles a palavra se confundiria com outra; e que de boamente seguirei qualquer método mais acertado, apenas haja algum geral e racionável em português: o que é tão fácil e simples seria se a nossa Academia e Governo em tão importante coisa se empenhassem.

 

A MORTE NO ROMANTISMO - Hegel

 

Na arte romântica, (…) a morte é apenas um perecer da alma natural e da subjetividade finita, um perecer que somente procede negativamente contra o negativo em si mesmo, que preserva o verdadeiro e, por isso, proporciona ao espírito a libertação da sua finitude e ruptura, bem como a reconciliação espiritual do sujeito com o Absoluto. Para os gregos, só a vida, unida à existência natural, exterior, própria deste mundo, era afirmativa, e a morte, por essa razão, a mera negação, o fim da realidade imediata. Mas na concepção de mundo romântica, a morte tem o significado da negatividade, isto é da negação da negação, e por isso, transforma-se tanto numa afirmativa, como num ressurgimento do espírito a partir da sua mera naturalidade e finitude inadequada. A dor e a morte da subjetividade agonizante convertem-se em regresso a si, em satisfação, bem-estar, e nessa existência afirmativa e reconciliada que o espírito somente pode atingir mediante a cessação da sua existência negativa, na qual ele está isolado da sua verdade e da sua vida reais. Esta tarefa fundamental não diz respeito apenas à morte, com a qual o homem depara na Natureza, mas também a um processo que o espírito, mesmo livre desta negatividade exterior, tem de levar a efeito em si mesmo, para viver em plenitude.

 

O NOIVADO DO SEPULCRO - Soares de Passos (1826-1860)
BALADA

Vai alta a lua! na mansão da morte 
Já meia-noite com vagar soou; 
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte 
Só tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe 
Funérea campa com fragor rangeu; 
Branco fantasma semelhante a um monge, 
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.


Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste 
Campeia a lua com sinistra luz; 
O vento geme no feral cipreste, 
O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto 
Olhou em roda... não achou ninguém... 
Por entre as campas, arrastando o manto, 
Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada, 
Que entre ciprestes alvejava ao fim, 
Parou, sentou-se e com a voz magoada 
Os ecos tristes acordou assim:

"Mulher formosa, que adorei na vida, 
"E que na tumba não cessei d'amar, 
"Por que atraiçoas, desleal, mentida, 
"O amor eterno que te ouvi jurar?

"Amor! engano que na campa finda, 
"Que a morte despe da ilusão falaz: 
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda 
"Do pobre morto que na terra jaz?

"Abandonado neste chão repousa 
"Há já três dias, e não vens aqui... 
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa 
"Sobre este peito que bateu por ti!

"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio, 
A fronte exausta lhe pendeu na mão, 
E entre soluços arrancou do seio 
Fundo suspiro de cruel paixão.

"Talvez que rindo dos protestos nossos, 
"Gozes com outro d'infernal prazer; 
"E o olvido cobrirá meus ossos 
"Na fria terra sem vingança ter!

– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda 
Responde um eco suspirando além... 
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda 
Formosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas, 
Longas roupagens de nevada cor; 
Singela c'roa de virgínias rosas 
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.

"Não, não perdeste meu amor jurado: 
"Vês este peito? reina a morte aqui... 
"É já sem forças, ai de mim, gelado, 
"Mas inda pulsa com amor por ti.

"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo 
"Da sepultura, sucumbindo à dor: 
"Deixei a vida... que importava o mundo, 
"O mundo em trevas sem a luz do amor?

"Saudosa ao longe vês no céu a lua? 
– "Oh vejo sim... recordação fatal! 
– "Foi à luz dela que jurei ser tua 
"Durante a vida, e na mansão final.

"Oh vem! se nunca te cingi ao peito, 
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim... 
"Quero o repouso de teu frio leito, 
"Quero-te unido para sempre a mim!"

E ao som dos pios do cantor funéreo, 
E à luz da lua de sinistro alvor, 
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério 
Foi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia, 
Já desse drama nada havia então, 
Mais que uma tumba funeral vazia, 
Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvido 
Das sepulturas o gelado pó, 
Dois esqueletos, um ao outro unido, 
Foram achados num sepulcro só.

LENDAS E NARRATIVAS - ALEXANDRE HERCULANO - (Excertos) (1839)
Trova Primeira

1.
Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.
E não me digam no fim: - não pode ser. - Pois eu sei cá inventar cousas destas ? Se a conto, é porque a li num livro muito velho. E o autor do livro leu-a algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares.
É uma tradição veneranda; e quem descrê das tradições lá irá para onde o pague.
Juro-vos que, se me negas esta certíssima história, sois dez vezes mais descridos que São Tomé antes de ser grande santo. E não sei se estarei de ânimo de perdoar-vos como Cristo lhe perdoou.
Silêncio profundíssimo; porque vou principiar. 
2.
D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro: neves da serra no inverno, sóis dos estevais no verão, noites e madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco montês, que, batido pelos caçadores, devia sair naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir um cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.
Alevantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a dama quem cantava.
O porco fica desta vez livre e quite; porque D. Diogo Lopes não corre, voa para o penhasco.
- Quem sois vós, senhora tão gentil; queem sois, que logo me cativastes?
- Sou de tão alta linhagem como tu; porqque venho do sêmel dos reis, como tu, senhor de Biscaia.
- Se já sabeis quem eu seja, ofereço-voss a minha mão, e com ela as terras e os vassalos.
- Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes,, que poucas são para seguires tuas montarias; para o desporto e folgança de bom cavaleiro que és. Guarda teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos são eles para te baterem a caça.
- Que dote, pois, gentil dama, vos possoo eu oferecer digno de vós e de mim; que se a vossa beleza é divina, eu sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado?
- Rico-homem, rico-homem, o que eu te acceitaria em arras coisa é de pouca valia, mas, apesar disso, não creio que mo concedas; porque é legado de tua mãe, a rica dona de Biscaia.
- E se eu te amasse mais que a minha mãee, porque não te cederia qualquer de seus muitos legados?
- Então, se queres ver-me sempre ao pé dde ti, não jures que farás o que dizes, mas dá disso a tua palavra.
- A la fé de cavaleiro, não darei uma; ddarei milhentas palavras.
- Pois sabe que para eu ser tua é precisso esqueceres-te uma coisa que a boa rica dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava.
- De que donzela ? - acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes - De nunca dar tréguas à mourisca, nem perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão. Guai' de ti e de mim, se és dessa raça danada !
- Não é isso, dom cavaleiro - interrompeeu a donzela a rir. - O que eu quero que te esqueças é o sinal da cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás de persignar-te.
- Isso agora é outra coisa - respondeu DD. Diogo, que nos folgares e de vassidões perdera o caminho do céu. E pôs-se um pouco a cismar.
E cismando, dizia consigo: - De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente ao apóstolo e duzentas cabeças de cães de Mafamede valem bem um grosso pecado. E, erguendo os olhospara a dama, que sorria com ternura, exclamou: - Seja assim: está dito. Vá com seiscentos diabos.
E, levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que viera montado.
Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.

Amor de Perdição - Camilo Castelo Branco (Excertos)

O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não poder viver com seu irmão, temeroso do gênio sanguinário dele. (...) (p.23)


O acadêmico, porém, com os seus entusiasmos, era incomparavelmente muito mais prejudicial e perigoso que o mata-mouros de tragédia. (...) (p.25)

"Não esperes nada, mártir - escrevia-lhe ele. - A luta com a desgraça é inútil, e eu não posso já lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos ao encontro da morte... Há um segredo que só no sepulcro se sabe. Ver-nos-emos?
Vou. Abomino a pátria, abomino a minha família; todo este solo está aos meus olhos coberto de forcas, e quantos homens falam a minha língua, creio que os ouço vociferar as imprecações do carrasco. Em Portugal, nem a liberdade com a opulência; nem já agora a realização das esperanças que me dava o teu amor, Tereza! (...)" (p.123)

(...) Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com assuadas. (...) (p. 23-24)

(...) Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão zomba das genealogias, e mormente do general Caldeirão que morreu frito. (...) (p. 24)

"Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os comparo aos que tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada. (...)" (p. 60)

(...) Eu queria que Mariana pudesse dizer: - "Sacrifiquei-me por meu marido; no dia em que o vi ferido em casa de meu pai, velei as noites a seu lado; quando a desgraça o encerrou entre ferros, dei-lhe o pão que nem seus ricos pais lhe davam; quando o vi sentenciado à forca, endoideci; quando a luz da minha razão me tornou num raio de compaixão divina, corri ao segundo cárcere, alimentei-o, vesti-o, e adornei-lhe as paredes nuas do seu antro; quando o desterraram, acompanhei-o, fiz-me a pátria daquele pobre coração, trabalhei à luz do sol homicida para ele se resguardar do clima, do trabalho, e do desamparo, que o matariam..." (p. 118)