Classicismo
Camões - Redondilhas
1.
Querendo escrever um dia
o mal que tanto estimei
cuidando no que poria
vi Amor que me dizia:
Escreve que eu notarei.
E como para se ler
não era história pequena
a que de mim quis fazer,
das asas tirou a pena
com que me fez escrever.
E logo como a tirou
me disse: Aviva os espíritos,
que, pois em teu favor sou,
esta pena que te dou
fará voar teus escritos.
E dando-me a padecer
tudo o que quis que pusesse
pude enfim dele dizer
que me deu com que escrevesse
o que me deu a escrever.
2.
ao moto que lhe enviou Dona
Francisca de Aragão para que Iho glosasse:
Mas porém a que cuidados ?
Tanto maiores tormentos
foram sempre os que sofri,
daquilo que cabe em mi,
que não sei que pensamentos
são os para que nasci.
Quando vejo este meu peito
a perigos arriscados
inclinado, bem suspeito
que a cuidados sou sujeito;
Mas porém a que cuidados ?
Que vindes em mim buscar,
cuidados, que sou cativo,
e não tenho que vos dar?
Se vindes a me matar,
já há muito que não vivo;
se vindes, porque me dais
tormentos desesperados,
eu, que sempre sofri mais,
não digo que não venhais;
Mas porém a quê, cuidados?
Se as penas que Amor me deu
vêm por tão suaves meios,
não há que temer receios,
que val um cuidado meu
por mil descansos alheios.
Ter nuns olhos tão fermosos
os sentidos enlevados,
bem sei que em baixos estados
são cuidados perigosos;
Mas porém, ah! que cuidados!
3.
a esta cantiga alheia
Perdigão perdeu a pena,
não há mal que lhe não venha:
VOLTAS
Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena do voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas, com que se sustenha:
não há mal que lhe não venha.
Quis voar a üa alta torre
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.
Camões - Sonetos
1.
Enquanto Febo os montes acendia,
Do céu com luminosa claridade,
Por conservar ilesa a castidade,
Na caça o tempo Délia dispendia.
Vênus, que então de furto descendia
Por conservar de Anquises a vontade,
Vendo Diana em tanta honestidade,
Quasi zombando dela, lhe dizia:
Tu vás com tuas redes na espessura
Os fugitivos cervos enredando;
Mas as minhas enredam o sentido.
Melhor é, respondia a deusa pura,
Nas redes leves cervos ir tomando
Que tomar-te a ti nelas teu marido.
2.
O filho de Latona esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
Matar pôde a pitônica serpente,
Que mortes mil havia produzido.
Feriu com arco e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente;
Nas Tessálicas praias, docemente,
Por a ninfa Peneia andou perdido.
Não lhe pôde valer contra seu dano
Saber, nem diligências, nem respeito
De quanto era celeste e soberano.
Pois se um deus nunca viu nem um engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu que espero de um ser que é mais que humano ?
3.
Não vás ao monte, Nise, com teu gado,
Que lá vi que Cupido te buscava;
Por ti somente a todos preguntava,
No gesto menos plácido que irado.
Ele publica, enfim, que lhe hás roubado
Os melhores farpões da sua aljava;
E com dardo ardente assegurava
Trespassar esse peito delicado.
Fuge de ver-te lá nesta aventura,
Porque, se contra ti o tens iroso,
Pode ser que te alcance com mão dura.
Mas ai ! que em vão te advirto temeroso,
Se à tua incomparável formosura
Se rende o dardo seu mais poderoso !
4.
Por os raros extremos que mostrou
Em sábia Palas, Vênus em formosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Ásia as adorou.
Aquele saber grande que juntou
Esprito e corpo em liga generosa,
Esta mundana máquina lustrosa
De sós quatro elementos fabricou.
Mas fez maior milagre a natureza
Em vós, Senhoras, Pondo em cada uma
O que por todas as quatro repartiu.
A vós seu resplendor deu Sol e Lua:
A vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, fogo, Terra e Água vos serviu.
Alma minha gentil, que te partiste
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
alguma cousa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
Amor é um fogo que arde sem se ver
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Busque Amor novas artes, novo engenho
Busque Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.
Que dias há que n'alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.
Transforma-se o Amador na Coisa Amada
Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim como a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
O vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
Um mover de olhos, brando e piedoso
Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quasi forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;
Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;
Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento:
Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.
Tanto de meu estado me acho incerto
Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando,
numa hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar uma hora.
Se me pergunta alguém porque assi ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.
Sete anos de pastor Jacó servia
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pertendia.
Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.
Epopéias
"Canta-me a cólera - ó deusa! - funesta de Aquiles Pelida,
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos inúmeros
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos" (Ilíada)
"Canta, ó Musa, o varão que astucioso,
Rasa Ílion Santa, errou de clima em clima," (Odisséia)
"As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Tróia
Por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro (Eneida)"
"As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca antes navegados (Lusíadas)"
PETRARCA - ITÁLIA (1304 - 1374)
Soneto VII - Cancioneiro
A alma minha gentil que agora parte
Tão cedo deste mundo à outra vida,
Terá certo no céu grata acolhida,
Indo habitar sua mais beata parte.
Ficando entre o terceiro lume e Marte,
Será a vista do sol escurecida,
Virá depois, muita alma ao céu subida,
Vê-la - portento de natura e arte.
E se pousasse entre Mercúrio e Lua,
Brilhara mais que eles nossa bela,
Como só se espalhara a fama sua.
A Marte certo não chegara ela.
Mas se mais alto o seu vulto flutua,
Vencera Jove e qualquer outra estrela.
Soneto XLII - Cancioneiro
Graças que a poucas o céu determina,
Rara virtude, não de humana gente;
Sob as tranças doiradas clara mente
E em dona humilde, graça peregrina.
Fineza singular e tão divina
E o seu canto que até nossa alma sente;
O andar celeste e o vago espírito ardente
Que rompe o orgulho e que a soberba inclina.
E os belos olhos, cheios de pureza
Capazes de aclarar a natureza
Fazem que a alma da Amante entre no amado.
E as palavras de suave sentimento,
E o interrompido e tão doce lamento;
Desses encantos me senti tomado.