Preserve a memória de sua cidade 


    

    

 

Batuques, quadrinhas 

e o jongo

 

As longas noites dos trabalhadores, brancos 

e negros, na primeira metade do século XX

O próximo texto é testemunha de um tempo. Foi escrito e publicado há quase 60 anos, num movimento encabeçado por Hernani Donato, pelas páginas da Folha de Botucatu, dentro de uma campanha lançada em busca da Recuperação Histórica. Nele, Hernani, descreve a dança chamada Jongo, com todo seu ritual e simbolismos. O olhar arguto do jovem Hernani fixou a manifestação cultural, num momento crucial: o seu fim. Permanece atual e, quanto mais passa o tempo, mais precioso ele fica, para ser estudado, pelos botucatuenses que buscam os detalhes do quotidiano da nossa cidade. Minucioso, o escritor botucatuense analisa os detalhes, dos passos aos instrumentos, do tempo de cada roda aos prazeres dos intervalos.

 

O último Jongo     por Hernani Donato

 

(publicado originalmente na Folha de Botucatu em 12 de novembro de 1947)

 

Perguntem meus senhores, a essas moças e a esses moços que se contorcem em danças modernas nos salões dos clubes aristocráticos, se conhecem o Jongo. Perguntem-lhes se já ouviram, ou assistiram, ou sentiram-se envoltos nesse misto de barbárie e requinte, no torvelinho animado de liberdades e de regras de cadência, ritmo e beleza coreográficas.

No entanto, a velha Botucatu dos idos oitocentos, foi uma das capitais do Jongo. Jongos animadíssimos foram dançados ali na hoje praça Cel. Moura e, então, Pátio do Calvário. A nossa cidade de hoje, na província de ontem, era a capital do sertão. Vilazinha acolhedora e festiva, colorida todos os dias pelo ir e vir dos comboios que batiam o mato bravo. Havia alegria e vida, também, pôr aqueles tempos. Dentre as festas populares: cavalhadas, batuques e jongo. Com o progresso e o nosso século, o Jongo sucumbiu. Ficou sendo apenas curiosidade folclórica, poucas vezes revivida. Vez outra, houve-se falar de um.

Vi o último Jongo em Botucatu

Noite de setembro, no largo tão querido da meninada toda, dos mais bairros mais centrais. Hoje atufaram-lhe pelo meio o prédio inacabado da residência sede do DER. Entre a General Telles e a Avenida Dom Lúcio. Foi esse, certamente, o derradeiro e o mais pobre dos Jongos celebrados na cidade. Os homens vieram com as surradas roupas do trabalho e, as mulheres, sem o adorno recomendado pelo ritual. Marcando a cadência, muitos instrumentos profanos, escandalizando a orquestra tradicional. Já não havia muito ritmo, nem a graça peculiar aos dançadores eméritos, naquela gente que mais se preocupava em divertir-se tanto e como fosse possivel.

Mas nem todos os Jongos foram assim em Botucatu...

Havia duas coisas famosas na vila dos miloitocentos: corrida de cavalos e festas populares. Quase sempre, uma seguia a outra. Durante o dia, nas raias caboclas, rasgadas a enxada, nas poucas e mentirosas retas descobertas entre a morraria. Depois, à noite, em mais de um lugar, o povo saía a divertir-se. Mas, vamos somente falar do Jongo.

O Jongo era uma dança mista em que tomavam parte, homens e mulheres, necessariamente brancos e pretos. Movimentavam-se os dançarinos, da esquerda para a direita, em grupos díspares, ou seja, ora um homem branco e duas mulheres, podendo uma ser também branca ou, então, ambas de cor. A cada verso., aproxima-vam-se um passo, balanceando o corpo, uma vez à direita, outra vez à esquerda, de maneiras a nunca se defrontarem, mas ficando sempre um pouco de lado. Assim iam dando voltas ao círculo, deslocando-se para mais próximo ou mais distante do centro.

As mulheres traziam as mãos à altura dos seios, resguardando-os, e movimentando os cotovelos como se fossem asas. Os homens deixavam as mãos à vontade. Os pés, de uns e outros, movimentavam-se para a frente e para trás, pisando de leve o chão, assentando todo o peso do corpo nesses pés ligeiros. A razão de ser da dança era o canto. O canto do Jongo chamava-se "o ponto". O "desafio" atual é quase uma degenerescência do Jongo. O "ponto" era o improviso do homem, regulado pelas voltas dos dançarinos. Assim, havia "pontos" de uma volta, de duas voltas, e três voltas, segundo o número de versos; geralmente dois versos valiam uma volta.

O "dono" do Jongo é que iniciava o canto, dando o ritmo e a letra, num solo vocal bem lento e claro, ouvido em silêncio. Logo depois, com um pequeno intervalo, em que a orquestra entrava na música dada pelo canto, ele repetia e, já no segundo verso, todos os dançarinos e os músicos faziam coro. A partir do primeiro, raramente a música cessava, abafando-se às vezes, à véspera de novo ritmo. Quando o "dono" ou o "jongueiro" cansavam-se de dar o "ponto", plantavam-se de mãos para o alto, como furtando-se a algo que caía misteriosamente do céu e , com os joelhos curvos gritavam "cachoeira"! Imediatamente outro dos homens tomava o seu lugar e principiava o seu "ponto". Podia, ou não, alterar o ritmo da música, segundo a sua capacidade de improvisador.

E assim, ininterruptamente, pela madrugada em fora.

A regra era de todas a se tornarem oxítonas, acordes à cadência do Jongo. Principiava o verso, bem alto, para ir se fazendo grave até a derradeira sílaba, quase sempre um verbo sem obrigatoriedade. Eis um "ponto" de duas voltas, recolhido naquele último Jongo.

"Num deixá balão subi ii

Ta começano se re náa

Serenô rasga pa-pée

Papé custa ga nháa"

E este outro, de uma "volta", que foi "dado" pôr um Jongueiro forçado pêlos companheiros a entrar na dança:

"Me-de-xa-me de-xa que vim só pris-piá Eu vou me imbora – eu vor-to-já"

Toda música do Jongo vinha de três instrumentos característicos: "angoiá", cestinho arredondado de farpas finíssimas de bambu, contendo, no interior, pedregulhos roliços e com uma empunhadura própria para a mão direita do homem; "candongueiro" ou "candonguê" de onde provinham os sons agudos, um pequeno tambor de forma afunilada e o "tambu" ou "tambo" bem caracterizado pelo seu nome, em regra tendo o comprimento determinado pelo dobro e mais da metade da largura, fechado no lado mais largo pôr um couro de boi guardado frouxo e estirado e aquecido ao braseiro no momento do uso. No último Jongo já não havia mais o típico "tambu", mas sim um autêntico tambor de aros de metal.

No período em que foi o movimento da escravatura negra, surgiram mais dois instrumentos para reforçar a orquestra do Jongo: o "urucungo" e o "caxambu". Ambos de percussão, variedade apenas do tambor, tinham a finalidade de produzir sons mais cavos e cadenciados, sendo instrumentos tipicamente de negros tenderam a desaparecer.

Hoje, o Jongo é uma tradição quase perdida. Os improvisadores campesinos que o deveriam cultuar preferem o canto sem a dança e daí nasceu o desafio. Nas cidades dá-se pouca importância, infelizmente, aos festejos populares do passado. Pôr isso, o Jongo morreu. Agonizou naquela noite em que o vi., desfigurado, anêmico, restrito, descambando muito ao gosto dos interessados, num batuque animado de umbigadas furtivas.

Mas vale apenas registrar o que foi o Jongo. Muitas e muitas de nossas noites serranas foram veladas pelo seu ritmo e acalentadas pelo seu canto. Muita gente, desaparecidos uns, apenasmente saudosos outros, viveram nos terreiros do Jongo, seus grandes e deliciosos momentos. A esses, pertencem estas linhas.

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