Largo
do Rosário: Sinais Perdidos no Tempo
O Largo do Rosário,
enquanto existiu, foi assumido pela comunidade como seu lugar
sagrado. Era ali que, nos dias de folga, uma boa parte dela ia
passear, tirar fotos, descansar. A Igreja do Rosário foi
demolida pouco antes de 1923. Em seu lugar foi construída a
primeira Igreja de S. Benedito (a da foto), inaugurada em 13 de
maio de 1924.
Muitas
das marcas da presença dos antigos escravos africanos em
Botucatu, ou quase todas elas, foram se apagando ao longo dos
anos, principalmente durante o século 20. Seus usos e os
costumes de sua cultura foram sendo abandonados aos poucos, ora
trocados pelos da sociedade local – onde predominavam povos de
outras procedências, ora abandonados pelo esvaziamento da
coesão grupal.
Quando, em 1888,
se deu o reconhecimento formal de sua libertação, uma de suas
grandes dificuldades foi manter viva a cultura herdada de seus
ancestrais, incluindo sua língua de origem, com suas
históricas grupais de além mar, a memória de seus
antepassados dos tempos do rapto e os traços de seus costumes
desenvolvidos no Brasil.
Em Botucatu sua
presença estava ligada, entre outras marcas, à criação e
consagração do Largo do Rosário como reduto típico dos
homens de cor. Abriram a densa mata, a meia encosta do morro,
ainda nos tempos da escravidão. Com o passar dos anos,
afirmaram-se no local, construíram a primeira capela – hoje
demolida, consagraram-na à Nossa Senhora do Rosário dos Homens
Pretos; construíram a segunda capela – também demolida, e
transferiram sua festas do antigo Largo da Liberdade - seu
primeiro reduto, para o Largo do Rosário. Levaram junto São
Benedito.
Em
toda nossa história o Largo do Rosário foi uma referência à
sociedade negra local. Tratado sempre como seu reduto,
atravessou quase um século como um sítio etno-histórico, onde
a cultura negra local podia ser expressa sem restrições.
Festas religiosas dividiram, sempre, o espaço com
manifestações musicais e coreográficas, próprias do grupo.
Eram festas memoráveis que atravessavam noites e dias, ao redor
de fogueiras que não se apagavam, ao som das batidas que davam
o ritmo a fandangos intermináveis.
Hernani Donato,
sempre atento aos detalhes de nossa história mais remota,
conta, em artigo memorável de 1947 que, "para justificar
tal nome há mais de uma versão: diz a primeira que, uma vez
aberto o largo, o capelão do lugar trazia para ali toda do
derrubaram o mato, um dos brancos, ao manejar o machado, foi
atacado pôr ferocíssima serpente e pôr ela enlaçado, só lhe
restando livre uma das mãos. Ao invés de procurar, com esta,
manejar o facão em sua defesa, empalmou o rosário e, longe de
se pôr a gritar, principiou a orar. Diante dos trabalhadores,
surpresos, a "serpe" desvencilha-se, roja ao solo,
desliza por entre as pernas do homem e, mansamente, desaparece.
O crente não foi egoísta. Nessa mesma tarde ergueu um
oratório e ali deixou seu rosário milagroso. E todos os
aflitos vinham orar pelas suas contas. Daí o nome. "Que
largo é aquele? O Largo do Rosário!".
Seu nome perdurou
pôr muito tempo até que, numa daquelas datas em que alguns
políticos não resistem, foi mudado para Praça Carlos Gomes.
Hernani Donato replicou pela imprensa, no memorável artigo:
"Lenda ou não o nome (Largo do Rosário) ficou. Foi Largo
do Rosário pôr mais de um século. Depois, há pouco, quiseram
homenagear a Carlos Gomes. Muito justa a homenagem. Que poderia,
no entanto, ser localizada em outro lugar, ainda sem
denominação. Mas deram o seu nome ao velho largo. E cortam a
homenagem que, através dos decênios, a cidade prestava à
memória de seus fundadores, ao trabalho de seu antigos escravos
e de maneira especial aos milhares de homens de cor que através
dos tempos labutam pelo seu progresso".
Fato idêntico
ocorreu, porém de forma mais acintosa, com a denominação de
Rua do Rosário. Seu nome original foi Rua Nova de Cima, já que
havia a Rua Nova (depois Cesário Alvim e depois João Passos).
O povo logo lhe deu um apelido, Rua Nova do Rosário. Finalmente
em 1884 a Câmara deu-lhe o nome oficial Rua do Rosário. Diz
Hernani que passados poucos meses, em 1885., sob pedido da
população local a Câmara substituía aquele nome por outro:
Rua Itapetininga. Durou pouco, pois cinco anos mais tarde
deu-lhe o nome de Américo Brasiliense.
Foi aí que, em 11
de janeiro de 1894, pôr indicação do vereador José Pires de
Camargo Rocha, a mesma Câmara muda de novo a denominação da
rua, chamando-a Rua 13 de Maio, uma homenagem à data da
libertação dos escravos.
Parecia
perfeito! Já estávamos em plena República, respiravam-se
novos ares (pelo menos foi o que pensava o vereador). "Mas
os moradores, diz Hernani, não entenderam assim o caso. E
fizeram saber à Câmara que não admitiriam se desse tal nome
à sua rua, pois se ele se constituía numa homenagem merecida,
poderia também, de futuro, justificar a idéia de que no
período da escravidão aquela rua havia localizado algumas
senzalas, o que, de qualquer forma era deprimente para os atuais
moradores". Bela justificativa!
Sem coragem para
mexer ainda mais no vespeiro a Câmara resistiu dois anos e
meio, até que, encontrou uma solução do tipo "em cima do
muro": "Não seria treze de maio. Ficaria melhor como
Rua Áurea". Deram à rua, não o nome da data, mas o nome
da lei. Incrível
Corria o ano de
1896 e a lembrança da data de libertação dos escravos, mais
fina, ao gosto dos moradores, ía dando lugar a outras
preocupações. Quando em 1898 abriu-se uma de suas
extremidades, ligando-a à Floriano Peixoto, estavam já
criadas, todas as condições para que o último traço da rua
que pretendeu homenagear os ex-escravos e sua data mais
significativa, fosse eliminado.
Na virada do
século (dezenove para o vinte) a cidade expandira-se subindo a
colina no rumo da nova matriz. Suas ruas encompridavam-se e
enchiam-se de novas residências, lindas chácaras de quintIis
arborizados e bangalôs fronteando as paralelas. A Rua Áurea
foi recebendo residências das mais finas e influentes famílias
da cidade e transformou-se numa espécie de lugar chic para
viver. Faltava pouco para que seu nome mudasse em definitivo
para Rua Dr. Cardoso de Almeida, uma homenagem ao seu filho mais
ilustre.
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