Preserve a memória de sua cidade 


    

    

 

Duas vidas: duas histórias

 

Professor Américo da Silva Veiga

Na crônica da cidade, escrita a partir dos meados do século passado, houve um professor, cuja vida foi sempre comentada intensamente. O professor Américo da Silva Veiga foi personagem do livro do Dr. Sebastião de Almeida Pinto (No Velho Botucatu). Nele, diz o aluno do velho mestre: "Em 1893 é nomeado para mais uma escola masculina da cidade, o prof. Américo da Silva Veiga, formado pela Escola Normal de São Paulo. O prof. Américo, que eu conheci bem, pois fui seu aluno, era um bom mestre. Tinha cultura e gostava de ensinar. Mas era um tanto boêmio. Levava vida irregular. E por isso, era censurado pelos catões da cidade. Gostava muito de música. Fundou uma banda de meninos, que fez época. Quando faleceu, repentinamente, andava afastado da sociedade. Teve seu nome perpetuado numa praça pública, que hoje é o Horto Florestal Américo Veiga."

Mas o professor Américo Veiga, como sempre foi chamado, era mesmo uma figura misteriosa. Foi para o Grupo Escolar Cardoso de Almeida lecionar as primeiras letras, logo nos primeiros anos daquele educandário. Quando o professor Arthur Goulart, chegou aqui, em 1897, vindo de São Paulo para assumir a direção do estabelecimento, logo firmou com ele forte amizade, e dela resultou, entre outros, um trabalho musical que anda desaparecido.

No jornal O Botucatuense de 2 de maio daquele ano diz: "Estudemos. É o título da lettra de um hyno escolar offerecido ao Grupo Escolar "Dr. Cardoso de Almeida". A lettra é de Arthur Goulart e a música foi arranjada pelo professor Américo Veiga." Produção grande, parceria produtiva. Alguns dias depois novo trabalho: Botucatu. Com este título o nosso ex-redactor e amigo Tenente Arthur Goulart, compoz um hyno escolar, dedicado ao Grupo Escholar Cardoso de Almeida. A música, que possue bella inspiração é da lavra do conhecido virtuose Américo Veiga. A lettra é simples porém correcta e inspirada. E assim os alumnos do Grupo, quando cantarem eesa pattriotica composição, lembrar-se-ão do seu estimado e querido ex-director Arthur Goulart."

Essa amizade foi além do tempo em que o professor Goulart ficou aqui. No mesmo dia da nota sobre a composição, o jornal de 9 de maio de 1897 estampou:. "Arte Musical. O professor Américo Veiga, bem conhecido como artista musical vae apresentar no Conselho Superior de Instrução Pública, um seu excellente méthodo de música, adaptado ao ensino moderno. Prefaciará a útil obra o nosso amigo Arthur Goulart. Desejamos que a obra do illustre normalista colha os louros que merece".

Só? Não. Artista gabaritado, compunha a orquestra regida pelo maestro Manoel Theodoro que, na Semana Santa de 1899, conduzia a execução das missas, ladainhas e cânticos compostos pelo maestro André Rocha. O jornal O Botucatuense, novamente, o único órgão da imprensa da época, falava: "Américo Veiga, Pedro Avelino, Francisco Conceição e Pedro Soares desempenharam com maestria as suas partes..."

O professor Américo da Silva Veiga faleceu em 1917 e repousa no cemitério Portal das Cruzes. Era filho da escrava "Nazasia", pertencente à Fazenda de Antonio Brás de Souza Nogueira. Seu pai foi o comerciante português, um dos mais fortes de Botucatu, Antonio F. Silva Veiga (Russo), estabelecido com um casa de ferragens na antiga Rua do Riachuelo. O professor Américo da Silva Veiga foi casado com Theodora da Conceição Veiga.

Quando de sua morte, pouco depois, o município resolveu homenagea-lo, dando-lhe o nome de uma praça. Era a praça onde estava localizado um Horto Florestal, que rodeava a antiga Caixa d’agua do município. Muito depois, nos anos 60 do século passado, o município criou, ali, um Centro de Atendimento Infantil – Ceim - e deu-lhe o nome de Professor João Queiroz Marques. Há pouco, durante uma polêmica sobre a denominação do Teatro Municipal o município trocou o nome, novamente, e denominou o espaço de Espaço Cultural Dr. Antonio Gabriel Marão, professor e juiz de Direito.

Durante todo esse tempo em que o recinto da praça teve seu nome mudado, permaneceu a denominação de Professor Américo da Silva Veiga, à praça, conforme pode ser visto pela placa das ruas. Mais do que merecida, a homenagem permanece justa. O professor Américo Veiga foi, salvo engano, o primeiro filho de escravos a receber uma merecida lembrança. Numa época em que ex-escravos e seus filhos davam os primeiros passos para se afirmar diante da sociedade branca, o nome do professor Américo revela-se como o de um personagem saído de filme, onde as dificuldades da vida, parecem estimular à sua superação.

A Praça Américo da Silva Veiga está a merecer da comunidade negra, um carinho ímpar. O professor Américo Veiga, personagem dos tempos da resistência, nunca renegou suas origens. Conforme foi lembrado ao autor, por velhos botucatuenses, era ele que, nas noites frias de maio, organizava, até sua morte, as longas semanas de batuques... (inicialmente na Praça S. José, junto ao bairro Tanquinho, um dos redutos negros pós-abolição).


 

A benção, dona Custódia!

Deus abençoe, minha filha!!!

Ela tinha bem uns 80 e tantos anos, lá pelos idos de 1935/40. Dona Custódia, era uma dessas figuras que, na infância de qualquer criança de 5 anos, fascina, amedronta e ocupa o mundinho de nossas cabecinhas, ficando ali para o sempre.

Dona Custódia foi assim, para mim. Meu avô paterno residia na Rua do Sapo (atual Rangel Pestana), empoeirada e salpicada por antigas casas antigas e casebres, que haviam vencido o século XIX e ingressaram no 20, meio caindo e sendo substituídos pelas novas residências que ali se edificavam. Residindo na Marechal Deodoro, este foi o cenário de minhas brincadeiras infantis com os primos e crianças da vizinhança.

 

Foto de Luiz Simonetti do arquivo da

 professora Maria Ana Moscogliato

A casa do avô ficava ali, onde a Rangel cruzava com a Marechal Deodoro e, aquele imenso canto de quarteirão coube aos filhos, por herança. Bem dentro dele existia o casebre de Dona Custódia. Ficava bem onde hoje está o número 150 da Rangel. Era misterioso, rodeado de velhas e frondosas bananeiras e mal separado com o resto do terreno do velho Guimarães.

Talvez por isso, as crianças de minha idade, lá pelos meus 5 ou 6 anos, sentissem certa emoção ao se aproximar dele. Uma olhada por entre os pés de banana, um espreitar rápido pelas frestas da velha porta, de longe, e uma corrida rápida quarteirão afora. O coraçãozinho batendo forte, as pernas meio bambas e a conversa baixa com os coleguinhas. Quando isso não era possível, e a plácida Custódia, nos surpreendia com a carinha saltando por entre as bananeiras era só dizer: "A sua benção dona Custódia!" Ela logo respondia, entre surpresa e divertida: "Deus abençoe, minha filha!!. E tudo ficava certo.

Quem seria aquela senhora sempre vestida de trajes longos", até os pés, turbante à cabeça, prendendo seus cabelos, já brancos pelos anos?

Dona Custódia morou ali longos anos, até quando quis, ou quando morreu. Nessa época sua única diversão era visitar o velho casarão do antigo Mercado, que ficava no lugar onde hoje se ergue o atual. Ia e vinha dali. Mudei de lá algum tempo depois e nunca mais vi dona Custódia. Por isso me surpreendi, satisfeita, quando vi a foto fixada pelo Luiz Simonetti e guardada pela professora Maria Ana Moscogliato, dessa personagem inesquecível de meus dias de criança. Merece sim, estar entre os mais lembrados dentre seus conterrâneos. Dela se dizia ter sido escrava (qual seria seu nome na África, seu sobrenome no Brasil?), poderosa rezadeira e alegre no batuque, velha amiga de um tal Júlio " não sei de quê". Bela figura, bela botucatuense, tipo do qual esta terra deve se orgulhar. A sua bênção Dona Custódia!!!

Depoimento da Professora Maria Glória Guimarães Dinucci Venditto, 

colhido por João Carlos Figueiroa

 

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