Um
Samba na Boa Vista
Corria o ano de
1906, nem bem duas décadas haviam se passado desde o 13 de
maio. Os antigos cativos estavam já a ocupar alguns bairros,
escolhidos, talvez, pela facilidade em serem ocupados, pelo
relativo isolamento em que viviam. Nesse verdadeiros guetos
deram vaza à cultura que seus antepassados trouxeram da África
ou de outros cantos brasileiros que pôr ventura tenham antes
passado. A Boa Vista foi um desses lugares da Botucatu antiga
que abrigou mocambos de negros recém libertos. A sociedade de
então escandalizava-se com a expansão dos costumes – entre
eles a dança do samba, também chamado batuque, onde pontuava a
preferida delas, a umbigada. Que horror!, diziam os jornalistas
da época, fazendo eco, com certeza, ao pensamento dominante na
sociedade que ocupava o centro e o poder da cidade.
Mas, parece, mesmo
escandalizados, alguns participantes dos círculos do poder,
adoravam fazer turismo nas festas negras. Ensejo único para ver
a liberdade que a sociedade branca ainda não dera às suas
mulheres, ou talvez, escandalizar-se, ainda mais com algumas
brancas - sem dúvida, filhas das centenas de famílias de
trabalhadores livres europeus, e pobres, que se espremiam nas
periferias da cidade, - a experimentarem a umbigada, numa roda
de negros. Os textos abaixo, do articulista J. Velho, de O
Correio de Botucatu nos mostram que a sociedade local,
principalmente a branca e rica, encarou como sofrimento o
impacto provocado pela divulgação e prática livre, dos
costumes negros à beira da
porta de suas
casas.
"Fui
também ao batuque, lá no alto da cidade, ao pé da capelinha
da Santa Cruz, levado pela curiosidade de assistir cenas
deprimentes à moralidade pública.
Num grande
circulo, à luz da lua e das fogueiras, homens e mulheres
embebedados, na maioria pretos, misturavam suas vozes roucas e
inarmônicas, confusamente, depois ao som de pandeiros e
tambaques, mais compassadamente, numa celeuma entontecedoura.
Depois, o
mestre da dança, batendo com as mãos o couro retesado do
tambaque, esvozeava fanhoso e babando: "Eh, negrada...
apronta que a coisa vai começá!... Eh!...eh!...eh!..."
Fez-se
momentoso silêncio. Uma preta espadaúda, alta, de olhar
amortecido pelas emanações alcoólicas, de mãos à cintura,
saiu do meio da turba, entrou vagarosamente no centro do
circulo, requebrando-se em trejeitos desaguisados.
Vários dos da
roda, avançando desordenadamente, estalavam os dedos com
ruídos de castanholas, provocando a dançarina a dar-lhes
preferência.
Ela, dando
três voltas em frente a um negrito alto como um caniço,
suspendeu os braços ao ar, estalou as mãos sobre a cabeça,
deu um saltinho em frente ao seu preferido, que imitou-a em
tudo, indo ambos bater seus abdomens antes dos pés tocarem o
chão...
Repetiu-se,
pôr várias vezes esse macabro salto, sempre ao grito de eh!eh!eh!...e,
ao ruído do tambaque, soltando ele e ela, em plena face um do
outro, baforadas mal cheirosas de alcool e fumo mascado.
Era horrível!
Nem bem a preta
provocadora dera a primeira batida no seu par, duas, três,
muitas outras avançavam para o centro do círculo, numa
confusão, aos gritos roucos, em saltos descompassados,
cambaleantes de bêbadas, numa brutalidade animal.
A confusão
dominou., enfim, o teatro da dança, mas bastou cessar o ruído
brutal do tambaque para voltarem todos a formar o círculo.
Fora do
circulo, cenas tristes provocavam o riso aos que nela tomavam
parte. Encostado a um botequim, feito num caramanchão,
esvozeando, agarrando-se às tábuas para não cair, um preto
velho cantava:
Eu sô
cativo, Não
posso saí.
Queria í
te vê, Não
posso í.
Coitado
di mim, Que
sô cativo.
Quiria í
te vê, Quero
bem vancê.
Dentro do
botequim, sonolenta, trêmula, arcadinha, uma preta cantava o
estribilho: "Eu sô cativo, Não posso í..." E o
preto mandraqueiro repetia a canção, apaixonada, amorosamente,
e a velha, quase dormindo exclamava: "Eta, forguedo!..."
Num comoro do
terreno uma preta moça era amparada por um rapaz forte. Ambos
bêbados, sustentavam-se mutuamente para não rolarem pôr
terra. Olhei-os e pus-me a considerar o grau de degenerescência
a que haviam chegado aqueles dois entes. Nisto sai da roda um
preto também bêbado e dirige-se àqueles que eu observava:
"Oceis tão na pinga!..." Não pode parar quando quis
e foi cair em cima de ambos, rolando todos três pôr terra.
Voltei à roda.
Uma menina de 14 anos, branca, bonitinha, dançava, aos saltos,
o macabro batuque. Entrou na roda um novo comparsa e, com voz
atroante, dominando as outras, berrou:
"A
primeira imbigada, É o papudo quem dá.
Eu tamém
sô papudo, Eu tamém quero dá."
...
J.
Velho
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