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O vôo da borboleta: notas sobre a construção da geografia e a adoção de metodologias matemáticas
Por Madson Santana PardoApresentação: as correntes do pensamento geográfico ou as correntes que enclausuram o pensamento
Para que a lagarta se converta em borboleta, deve encerrar-se numa crisálida. O que ocorre no interior da lagarta é muito interessante; seu sistema imunológico começa a destruir tudo o que corresponde à lagarta, incluindo o sistema digestivo, já que a borboleta não comerá os mesmos alimentos que a lagarta. A única coisa que se mantém é o sistema nervoso. Assim é que a lagarta se destrói como tal para poder construir-se como borboleta. E quando esta consegue romper a crisálida, a vemos aparecer, quase imóvel, com as asas grudadas, incapaz de desgrudá-las. E quando começamos a nos inquietar por ela, a perguntar-nos se poderá abrir as asas, de repente a borboleta alça vôo.
[MORIN, E. “Epistemologia da complexidade”. In: SCHNITMAN, D. (org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996: 286]
Ao longo do (per)curso (na)de geografia tive contato com leituras que fizeram-me refletir sobre a construção deste campo de conhecimento. Nestas leituras dois aspectos sempre me incomodaram: a linearidade que a maior parte das análises se apresentavam e, por outro lado, a substituição de uma “corrente” por outra, como se fosse possível “enterrar” definitivamente o pensamento precedente. Outro aspecto, que desdobra-se deste primeiro, é a relação entre geografia e matemática. Esta última, muitas vezes, aparece associada a uma forma específica, e única, de pensar. Se um dado estudo geográfico utilize em sua metodologia números, é logo rotulado e classificado: geografia quantitativa; evidenciado uma (aparente) confusão entre metodologia e método. Num (também aparente) desapego ao espiral que conduz a relação do homem consigo mesmo e com a natureza: o esclarecimento, este projeto, que em sua forma moderna foi fundamentado por Bacon. Num de seus aforismos, lemos um dos pilares do esclarecimento moderno: “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frusta-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática.” (1). Creio que o autor da célebre frase “poder e conhecimento são sinônimos” nos ajude a compreender estas (aparentes) cisões da história do pensamento (geográfico). Ciência e poder. Poder e conhecimento. Conhecimento e desencantamento. Abaixo esboço os diferentes níveis de relações entre o “entendimento humano e a natureza das coisas”. Trata-se portanto de diferentes escalas que complementam-se e excluem-se reciprocamente.
Este texto surge numa tentativa de compreender esta relação a partir da leitura de vários historiadores da geografia, e como muitos deles utilizam a sobreposição de uma “corrente” sobre a outra. Correntes que ditam regras. Correntes que cerceiam a liberdade do pensar. Correntes que aviltam. Enfim, correntes que enclausuram o pensamento.
A construção da geografia e a geografia em construção: a razão enquanto mediadora (pre)dominante
A sociedade burguesa está dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogêneo comparável, reduzindo-o a grandezas abstratas. Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão: o positivismo moderno remete-o para a literatura. (...) O que se continua a exigir insistentemente é a destruição dos deuses e das qualidades.
[ADORNO & HORKHEIMER. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985: 23]
Ao refletirmos sobre a construção da Geografia, caber-nos-ia de antemão refletir sobre o desenvolvimento da ciência e sua inserção num processo mais amplo que Adorno & Horkheimer chamaram de esclarecimento (aufklänrung) (2). Afinal o que hoje denominamos Geografia faz parte desse processo que ultrapassa as fronteiras e os limites (3) da ciência. Mito, fé, razão, arte, metafísica, ceticismo, técnica e até mesmo sensibilidade são algumas das formas do esclarecimento, e a Geografia tal qual conhecemos hoje surge no momento em que predomina a razão e com ela a ciência. Isto significa que esta Geografia, mediada pelo(s) método(s) científico(s), e que surge no século XIX é apenas uma representante de uma forma da humanidade lidar com o real apreendido. O mito e a ciência são apenas canais de explicação/entendimento do que concebemos como real. Bem como o primitivo e o moderno expressam apenas uma maneira de interpretar a história. Uma forma pode substituir a outra, bem como podem vir a coexistir predominando uma ou outra. Interpretar o mito e a ciência, ou ainda, o primitivo e o moderno, requer uma análise exógena (4), constituída de valores próprios e ao mesmo tempo endógena pois as formas superam-se ou sobrepõem-se apenas enquanto aparência. Esses valores podem estar vinculados a relações de tempo, espaço ou a uma visão de mundo dentre outras possibilidades coexistentes.Uma reflexão por esta via despenderia um esforço que acabaria por relegar a segundo plano a proposta deste trabalho. Contudo, ainda que este texto assuma uma postura que levará a uma análise aparentemente linear, gostaríamos de citar Quaini que nos alerta em relação ao que se tem feito quanto à historiografia da geografia resgatando Karl Marx:
K. Marx, historiador muito perpicaz das “idéias econômicas”, já observava que “o discurso histórico de todas as ciências conduz aos reais pontos de partida destas somente através de uma grande quantidade de vias transversais e cruzadas” e que, “diferentemente de outros arquitetos, a ciência não somente desenha castelos no ar, mas constrói, também, algum andar habitável de edifício antes de construir as bases”. (5)
Creio ser a identificação destas vias transversais e cruzadas o grande desafio a ser decifrado e devido às limitações desta redação não teremos oportunidade de aprofundar. Nosso objeto, a geografia, vêm ao longo do seu percurso – anterior inclusive ao próprio predomínio da Razão - apropriando-se de metodologias matemáticas conforme veremos a seguir. As páginas seguintes correspondem assim numa tentativa de apreender essa inserção da matemática nas mais diferentes correntes e pensadores da geografia.
Relações da matemática com a geografia: breve esboço histórico
A Matemática, fornece o exemplo mais brilhante de uma razão pura bem sucedida que se estende espontaneamente sem o auxílio da experiência. [...] O conhecimento filosófico é o conhecimento racional a partir de conceitos: o conhecimento matemático é o conhecimento a partir da construção de conceitos.(6)
[KANT, I. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural. 1999: 430].
A utilização da matemática no fazer geográfico remonta à antigüidade clássica. Segundo Ferreira & Simões:Ainda no século IV, Dicearco construiu um mapa utilizando dois eixos perpendiculares: um alongado no sentido este-oeste, o diafragma, passando pelas Colunas de Hércules e por Rodes, e o outro, a perpendicular, passando por Rodes.
Mais tarde Eratóstenes (276-196 a.C.), [...] é o primeiro filósofo grego a autodenominar-se geógrafo, aperfeiçoou o mapa de Dicearco, introduzindo-lhe vários meridianos e paralelos, formando uma rede retangular. (7)
Ainda segundo estas autoras Eratóstenes foi o primeiro a calcular com aproximada exatidão a circunferência da Terra. Hiparco de Nicéia (190-125 a.C.), Posidónio de Apameia, Ptolomeu de Alexandria (90-125 a.C.) dentre outros, desenvolveram a chamada geografia matemática que era associada à astronomia e à geometria. Na Idade Média temos o predomínio do cristianismo no mundo ocidental o que desestimula a produção de novos conhecimentos. A geografia neste período restringe-se à descrições de viagens, sem maiores preocupações com localização e distâncias, embora já desenvolvia-se uma cartografia incidente na China. A partir do século XV com as necessidades surgidas pelas viagens marítimas retomou-se aquela geografia matemática, com destaque à cartografia, inclusive com releituras daqueles autores clássicos.No século XVIII a geografia é vista por alguns autores como “[...] auxiliar das ciências econômicas e sociais, que se desenvolveram muito no século XVIII, e em estreita relação com a Estatística que, ela também em grande desenvolvimento, lhe oferece dados e materiais de vários tipos e variadamente elaborados [...]”. (8)
No século XIX Alexander von Humboldt (1769-1859) deu uma importante contribuição à sistematização da geografia elaborando uma metodologia própria. Para ele a geografia não era uma ciência mas uma geografia matemática (9), que tratava da localização absoluta dos lugares. Partia de casos particulares para os gerais procurando estabelecer um lei geral, válida para todos os casos não observados. Para ele:
O objeto final de uma Geografia Física, é sem dúvida, reconhecer a unidade na imensa variedade dos fenômenos, descobrir, pelo livre exercício do pensamento e combinando as observações, a constância dos fenômenos em meio às suas variações aparentes. (10)
Karl Ritter (1779-1859), em linhas gerais, tinha uma concepção de geografia similar à Humboldt, embora suas preocupações remetiam à natureza deste campo do conhecimento e sua sistematização enquanto ciência científica, em especial almejando que tivesse um caráter acadêmico, enquanto disciplina universitária(11). Suas formulações apontavam que “o objeto primeiro de toda investigação geográfica é a Terra, pois é a perspectiva telúrica que especifica a análise geográfica”.(12)
Com o intuito de caracterizar a ciência e conseqüentemente estabelecer seus métodos temos o surgimento do positivismo em fins do século XVIII e princípios do século XIX “como utopia crítico-revolucionária da burguesia antiabsolutista, para tornar-se no decorrer do século XIX, até nossos dias, uma ideologia conservadora identificada com a ordem (industrial/burguesa) estabelecida” (13). Com o positivismo as metodologias matemáticas assumem o caráter de possibilitar o registro fiel de uma leitura da realidade ou objeto pesquisado. As leis naturais, invariáveis, seriam desvendadas através da observação, registro e explicação dos fenômenos, de forma objetiva, neutra e livre de julgamentos de valor e ideologias. Estas premissas são válidas tanto para as ciências da natureza quanto para as ciências da sociedade. Na geografia uma das influências mais marcantes do positivismo se deu com Friederich Ratzel (1844-1904), autor de “Antropogeografia” (Anthropogeographie), e que foi por muitos críticos, especialmente La Blache, “acusado” de propor um determinismo geográfico, que teve seguidores, especialmente nos Estados Unidos com Ellen Churchill Semple (14). Leitor contumaz de Darwin, Ratzel pretendia aplicar os métodos das ciências naturais na geografia humana, considerando que o homem era resultado das condições do meio físico. Deve-se ressaltar que no segundo livro do seu “Antropogeografia”, Ratzel “suaviza” seu determinismo, de tal forma que consta neste volume sua famosa frase: “pode-se talvez compreender a Nova Inglaterra sem conhecer o país, mas jamais sem conhecer os imigrantes puritanos” (15). É também dele também a idéia de espaço vital (Der Lebensraum) e os primeiros estudos relacionados à geopolítica (Politischen Geographie).
No que se refere à descoberta de leis gerais que possam ser expressas por fórmulas matemáticas, Ratzel afirma o seguinte:
Do mesmo modo que todas as outras ciências que também compreenderam o homem no rol de suas investigações, tampouco a antropogeografia pode pretender descobrir leis que possam ser expressas através de fórmulas matemáticas. Assim como o homem, também o povo possui vontade independente. Mas esta vontade, sempre que pretenda se expressar, deve levar em conta as condições que a Terra impõe à existência humana e que representam uma limitação para essa vontade. [...]
A geografia do homem tem em comum com a estatística a tarefa de estudar os fenômenos relativos à vida dos povos e de buscar tudo que neles tem valor de lei. Mas os procedimentos das duas ciências são muito diversos. Os conceitos geográficos são sempre localizados com exatidão; eles têm na base de uma latitude e de uma longitude uma relação com elementos geográficos, como costas, interiores, relevos e cursos d’água. (16)Deve-se entretanto alertar que Ratzel não tinha preocupação de propor modelos quantitativos, o que podemos apreender pela citação acima, nem tampouco dar um tratamento quantitativo no que se refere à questão populacional, o que consta em algumas interpretações de seu pensamento, conforme nos alerta Carvalho:
Sinais de abordagens quantitativas, portanto, são raros e, quando aparecem, estão sempre vinculados à obsessão do autor em estabelecer, nas cerca de 2000 páginas de suas obras principais, uma "geografia das raças", ou uma "etnografia/etnologia", etc., como por exemplo nessa introdução sobre a composição populacional da India: "Los resultados del censo verificado en la India en el año 1871 indujeron á hacer una tentativa para agrupar las varias razas de la península según su importancia numérica. Así se hizo, deduciéndose de este trabajo que existen 110 millones de hombres de raza mezclada, 41 millones de mahometanos, 18 de raza primitiva y 16 de arios puros, en total de 185 millones. Esta variada clasificación demuestra cúan difícil es separar las razas en un país donde desde millares de años atrás afluyeron pueblos de tan diferentes partes, donde se mezclaron y transformaron bajo la influencia de un medio ambiente muy distinto" (Ratzel, 1889: 339)
Como se vê, para Ratzel a questão não era quantitativa, mas sim de enumeração das diferenças presentes em uma dada população. Quanto maior esse detalhamento -- "la tarea de distinguir más cuidadosamente las diferencias" (ib.) --, melhor: "Mantegazza ha distinguido indostanos de tipo ario (caucásico), malayo y semítico, mongoles, israelitas, parsis, mahometanos, entre los cuales hay turanios, y finalmente razas primitivas, y así ha ido por más recto camino, que debe parecer el mejor que pudiera adoptar cualquier etnógrafo" (ib.). (17)A geografia assume novamente um caráter descritivo, embora essa descrição não deva ser o fim e sim um meio necessário para se chegar a conclusões. Neste aspecto aproxima-se de Paul Vida de La Blache (1845-1918), normalmente colocado como adversário de Ratzel, que nos diz o seguinte:
A Geografia distingue-se como ciência essencialmente descritiva. Não seguramente que renuncie à explicação: o estudo das relações dos fenômenos, de seu encadeamento e de sua evolução, são também caminhos que levam a ela. (18)
Este autor geralmente é associado à corrente historicista que tem como idéias essenciais “que todo fenômeno cultural, social ou político é histórico e não pode ser compreendido senão através de e na sua historicidade; [...] a diferenciação entre os fatos naturais e os fatos históricos; existem diferenças fundamentais entre os fatos naturais e os fatos históricos e, consequentemente, entre as ciências que os estudam; não somente o objeto da pesquisa está imerso no fluxo da história, mas também o sujeito, o próprio pesquisador, sua perspectiva, seu método e seu ponto de vista.”(19) Entretanto para La Blache “a geografia é a ciência dos lugares, não dos homens”, e esclarecendo que “o homem pertence a geografia em função das construções que edifica sobre a superfície do solo, através da ação que exerce sobre os rios, sobre as próprias formas do relevo, sobre a flora, sobre a fauna e sobre todo o equilíbrio do mundo físico”(20).
No que se refere à utilização da matemática por esta corrente geográfica, Capel nos mostra que o pensamento lablachiano foi influenciado pela filosofia espiritualista de Émile Boutroux que tem a seguinte direção:
Los distintos tipos de leyes científicas se pueden agrupar en dos grupos esenciales: la lógica, las matemáticas y la física constituirían el primero, mientras que las ciencias biológicas, psicológicas y sociales el segundo; éstas tratan de captar a los seres concretos en su historia y no tienen la permanencia de las primeras, ya que su objeto es contingente. La realidad es tan compeleja que no puede ser expresada por los conceptos e las ciencias físicas. A partir de aquí hay un rechazo de la aplicación de la física y de las matemáticas, ya que “los objetos de las diferentes ciencias no se dejan penetrar enteramente por las matemáticas”. Si esto es posible en las ciencias físicas, lo es mucho menos en las biológicas y en las que afectan a la conciencia: “cuanto más se quiera atrapar al ser en su realidad concreta, más debemos contentarnos con observar e inducir, aplazando el empleo del análisis matemático. Así la forma matemática imprime a las ciencias un caráter de abstracción. El ser concreto y vivo rehúsa encerrarse en ella. [...]
Varios rasgos esenciales del pensamiento vidaliano pueden ponerse en relación com las ideas de Boutroux. Entre ellos, la conocida aversión de Vidal y de su escuela al uso de las matemáticas. Pero vale la pena detenerse en un punto fundamental: su valoración de la contingencia, expresada en esa famosa frase que se cita justamente como representativa del pensamiento de Vidal de La Blache: “todo lo que se refiere al hombre está afectado de contingencia. (21)_____ Os distintos tipos de leis científicas se podem agrupar em dois blocos essenciais: as lógicas, as ciências exatas e a física constituiriam o primeiro, enquanto as ciências biológicas, psicológicas e sociais o segundo; estas tratam de captar os seres concretos em sua história e não têm a permanência das primeiras, já que seu objeto é contingente. A realidade é tão complexa que não pode ser expressa pelos conceitos das ciências físicas. A partir daqui há uma negação da aplicação da física e da matemática, já que “os objetos das diferentes ciências não se deixam penetrar inteiramente pelas ciências exatas”. Se isto é possível nas ciências físicas, o é muito menos nas ciências biológicas e nas que afetam a consciência: “quanto mais se queira alcançar o ser em sua realidade concreta, mais devemos nos contentar em observar e induzir, afastando o emprego das análise matemática. Assim a forma matemática imprime às ciências um caráter de abstração. O ser concreto e vivo recusa encerrar-se nela. [...]
Vários pontos essenciais do pensamento lablachiano estão condizentes com as idéias de Boutroux. Entre elas, a conhecida aversão de La Blache e de sua escola ao uso das ciências exatas. Pois vale a pena deter-se em um ponto fundamental: sua valorização da contingência, expressa nessa famosa frase que se cita justamente como representação do pensamento lablachiano: “tudo o que se refere ao homem está afetado pela contingência”. (22)A Geografia lablachiana influenciou várias gerações, alguns seguindo fielmente suas idéias, outros propondo inovações no método de análise. Uma outra corrente que surge, e que foi por alguns autores denominada de “Geografia Racionalista” (23), tem como nomes principais Alfred Hettner (1859-1941) e Richard Hartshorne (1899). Para Hettner:
Mais importante que a descrição geográfica (Beschreibung), é o modo de representação geográfica que podemos denominar (Schilderung). Ela se satisfaz também com os fatos e não se preocupa (ainda) com as razões de suas conexões, mas ela escolhe os fatos e os ordena de maneira que, ao observá-los, tem-se uma idéia bastante viva das terras descritas. [...] A terceira forma de representação geográfica é a explicação (Erklänrung) das razões da interdependência dos fenômenos. Aquilo que a descrição permite-nos perceber é apenas (o ponto de partida) do que queremos compreeder mais claramente. (24)
As propostas de Hettner tiveram pouca penetração no seu tempo sendo retomada nos Estados Unidos por Hartshorne. Sua proposta era que o método diferenciaria uma ciência de outra seria o método, e não objeto, sendo portanto este o caminho da autonomia da geografia, enquanto ciência integradora. “Para ele, ‘o objetivo último da Geografia, ou seja, o estudo da diferenciação de áreas do mundo, expressa-se mais claramente na geografia regional’ e assim, procedimentos de aceitação geral seriam necessários para a identificação regional.” (25) Nestes estudos é necessário a coleta de dados de outras ciências especializadas, incluído aí a cartografia e obviamente a matemática enquanto instrumental, que servirão de apoio para a realização da síntese regional.
Desta forma, temos até então o predomínio da orientação filosófica positivista no fazer geográfico. Datar a mudança de orientação é praticamente impossível uma vez que o “rompimento” se dá muitas vezes apenas enquanto aparência. No entanto é fato que a partir da décadas de 50 e 60 tivemos um predomínio da influência do chamado neopositivismo na produção geográfica (26). Foi também neste período que temos o predomínio da matemática enquanto expressão fiel de um dado fato analisado da realidade. Segundo Johnston: “o departamento de Geografia da Universidade de Wisconsin em Madison, tem uma longa tradição de pesquisa com inclinação quantitativa” (27). A. H. Robinson, um dos geógrafos desta instituição, interessava-se pela Cartografia e pela correlação cartográfica. Ainda segundo Johnston:
A preocupação de Robinson era com o desenvolvimento de métodos estatísticos de comparação cartográfica, como indicava o título de seu artigo original – “Um método para descrever quantitativamente a correspondência das distribuições geográficas” [...]. Uma atenção particular foi dada aos problemas da representação de dados regionais por meio de pontos [...] e ao uso de métodos de correlação de mapas isorítmicos [...], Robinson estava consciente das dificuldades de se aplicarem procedimentos estatísticos clássicos a dados regionais e propôs um meio de se evitar isto. [...] O interessante, contudo, é que o principal trabalho sobre o assunto, nessa fase inicial, foi publicado por um grupo de sociólogos, sob o título de Statistical Geography... (28)
Johnston analisa outros geográfos e escolas que deram sua contibuição a esta corrente de pensamento geográfico. A Escola de Iowa, a Escola de Wisconsin (citada acima), W. L. Garrison e a Escola de Washington (que “tratava das possíveis aplicações geográficas de procedimentos matemáticos de programação linear, que produziriam soluções ótimas para problemas de alocação de recursos em situações de limitações”(29)), a escola da física social liderada por Stewart (“as dimensões da sociedade são análogas às dimensões físicas e incluem número de pessoas, distância e tempo. A Física Social trata de observações, processos e relações nestes termos. A distinção entre elas e a estatística matemática não é menos difícil de estabelecer que para certos outros aspectos da Física...”(30) ) são por ele revistos e considerados os precursores do crescimento dos – por ele denominado – estudos sistemáticos nos Estados Unidos. Quanto ao método Johnston nos aponta o seguinte:
A quantificação tem uma função central, neste método científico. As matemáticas são particularmente úteis na apresentação de modelos... [...] Alternativamente, um papel central era dado à Estatística, usada nos testes de hipóteses. Dois tipos de estatísticas são disponíveis: a Estatística Descritiva, que pode ser usada para representar um padrão ou uma relação; a Estatística Indutiva, usada para fazer generalizações com base em uma população cuidadosamente definida a partir de uma amostra, adequadamente realizada. (31)
Esta corrente de pensamento é duramente criticada, juntamente com a chamada Geografia Tradicional, pela Geografia Crítica ou Marxista. E é justamente desta última que vêm as mais duras críticas, repetindo inclusive alguns dos erros cometidos pelos geógrafos representantes das outras geografias. Podemos ler em Moraes que a chamada Geografia Quantitativa não rompe com a Geografia Tradicional, embora esta última, também segundo este autor, a partir da década de 70 “está definitivamente enterrada” (sic) (32). Encontramos aqui mais um exemplo de uma leitura linear da história da geografia, reconhecendo apenas a continuidade. Num primeiro momento a Geografia Quantitativa enquanto continuidade da Geografia Tradicional, e num segundo momento da Geografia Crítica enquanto uma "nova" forma de geografia.:
Troca-se o empirismo da observação direta [...] por um empirismo mais abstrato, dos dados filtrados pela estatística [...]. Do trato direto com o trabalho de campo, ao estudo filtrado pela parafernália cibernética. [...] Da submissão total aos procedimentos indutivos [...] passa-se a aceitar também o raciocínio dedutivo. Da contagem e enumeração direta dos elementos da paisagem, para as média, os índices e os padrões. Da descrição, apoiada na observação de campo, para as correlações matemáticas expressas em índices. Nesse processo, há um empobrecimento do grau de concretude do pensamento geográfico. Apesar da sofisticação técnica e lingüística, este permanece formal (preso às aparências do real), e agora mais pobre porque mais abstrato. (33)
Ainda assim segundo alguns autores a Geografia Crítica não rompeu metodologicamente com a Geografia Teorética uma vez que alguns geógrafos desta corrente continuam utilizando metodologias estatísticas. “Embora as geografias radicais sejam profundamente diferentes da geografia quantitativa, há que considerar que muitos destes geógrafos continuaram a utilizar muitas técnicas quantitativas para resolver os problemas levantados. [...] Sendo assim, a maior diferença entre as geografias radical e quantitativa parece ser mais uma mudança de objetivos do que de métodos” (34). Esta idéia de não rompimento total com a geografia quantitativa também encontra-se presente em Gomes que analisa através da modernidade a busca do “’novo’, para substituir o que é então considerado como superado e em choque com os novos tempos” (35):
[...] Há de imediato uma crítica à velha geografia, ou geografia tradicional, seguida da crítica à geografia analítica, para, enfim, introduzir o projeto de uma nova ciência, que irá finalmente dissolver toda a inadequação, a defasagem e as dicotomias, para fundar uma nova goegrafia. Sob esta nova forma, a objetividade possui uma natureza diferente daquela estabelecida pela ciência positivista, e só através dela se poderá por assim dizer, revelar a estrutura da realidade última. Neste sentido, a revolução radical, assim como a precedente, pensou em produzir um método de análise infalível, rigoroso e preciso. Ele também reclamava uma posição científica fundada sobre um conhecimento objetivo, sem os obstáculos ideológicos conservados pela geografia analítica. (36)
Outras geografia surgem, outras desaparecem. Utilizando-se ou não de metodologias matemáticas as geografias pretendem superar outras geografias. Suas origens? A negação do outro. Seus fundamentos? O outro. Desta forma tentamos esboçar em linhas gerais as relações históricas da matemática com a geografia.
Considerações finais: por uma geografia crítica do conhecimento e do pensamento livre
Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por ‘star aqui?Serei eu porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e murmúrio momento,
De tempos-seres de quem sou o viver?
[PESSOA, F. Poesias. Porto Alegre: L&PM, 1996: 38-39]
Creio que para entender a Geografia e sua trajetória é necessário fazer um paralelo com a própria trajetória do conhecimento. O novo não surge do nada. O novo pode até constituir-se em inovação. O novo pode até ser revolucionário. Mas ainda assim o novo é também o velho. A borboleta, embora totalmente diversa da lagarta, em essência é uma reprodução não morfológica da lagarta. Ainda que a lagarta numa crisálida destrua-se quase que totalmente, em essência ainda reproduz-se: os sistema nervoso. E assim faz-se o novo: borboleta.Na maior parte da bibliografia consultada para a realização desta pesquisa percebemos uma historiografia da geografia linear, onde uma corrente de pensamento substitui a outra totalmente ao evidenciar suas falhas e erros. É o novo substituindo o velho. Interessante notar que um dos sustentáculos da modernidade é a busca constante do novo. E o que é a modernidade senão uma (pseudo) materialização do esclarecimento numa dada fase histórica?
Tempo e espaço. Matemáticas. Realidades. Razão e emoção. Abstrações para sistematizar a análise daquilo que concebemos como real. Enquanto abstração realiza-se como fruto do imaginário. Uma percepção compartilhada coletivamente num fragmento de realidade que nos é comum. Ainda, enquanto fragmento compartilhado coletivamente concretiza-se num tempo e num espaço que não estão isolados em si mesmos. Existe uma continuidade espaço-temporal onde, creio, encontra-se a chave de uma interpretação do conhecimento.
NOTAS:
(1) BACON F. Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem. São Paulo: Nova Cultural. 1999: 33. VOLTAR(2) ADORNO & HORKHEIMER. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. VOLTAR
(3) “Fronteiras e limites, em princípio, fornecem imagens conceituais equivalentes. Entretanto, aproximações e distanciamentos podem ser percebidos entre fronteiras e limites. Focaliza-se o limite: ele parece consistir de uma linha abstrata, fronteira, por sua vez, parece ser feita de um espaço abstrato, areal, por onde passa o limite. O marco de fronteira, reivindicando o caráter de símbolo visual do limite, define por onde passa a linha imaginária que divide territórios. Fronteiras e limites ainda parecem dar-se as costas. A fronteira coloca-se à frente (front), como se ousasse representar o começo de tudo onde exatamente parece terminar; o limite, de outra parte, parece significar o fim do que estabelece a coesão do território. O limite, visto do território, está voltado para dentro, enquanto a fronteira, imaginada do mesmo lugar, está voltada para fora como se pretendesse a expansão daquilo que lhe deu origem. O limite estimula a idéia sobre a distância e a separação, enquanto a fronteira movimenta a reflexão sobre o contato e a integração. Entretanto, a linha que separa os conceitos é o espaço vago e abstrato.” [HISSA, C. E. V. A Mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 2002: 34] VOLTAR
(4) Isto não significa em hipótese alguma que esta análise pretenda-se neutra, pois qualquer olhar traz consigo a visão de mundo do observador. Desta forma a tão almejada neutralidade científica imposta pelos positivistas, redundam-se em simulacros, e por conseguinte em poder: sobre a natureza, o que significa, sobre os homens.VOLTAR
(5) QUAINI, M. A construção da geografia humana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983: 16 VOLTAR
(6) Kant foi professor de Geografia na Universidade de Königsberg [Alemanha] entre 1756 e 1796 e para ele a Geografia era um conhecimento empírico, pois possui suas fontes na experiência, logo pertencia à uma outra forma de razão: a prática. VOLTAR
(7) FERREIRA, C. C. & SIMÕES, N. N. A evolução do pensamento geográfico. Lisboa: Gradiva. 1986: 36 VOLTAR
(8) ALMÁGIA, cit. in QUAINI,. op. cit., p. 22 VOLTAR
(9) FERREIRA & SIMÕES. op. cit., p. 61 VOLTAR
(10) cit. in MORAES, A. C. A gênese da geografia moderna. São Paulo: Hucitec-EDUSP, 1989: 108 VOLTAR
(11) FERREIRA & SIMÕES. A evolução..., pág. 64 VOLTAR
(12) MORAES. A gênese..., p.117 VOLTAR
(13) LÖWN, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen. São Paulo: Busca Vida, 1987: 18 VOLTAR
(14) Autora de Influences of Geographic Environment (1911), onde pode-se ler logo na introdução: “O homem é um produto da superfície da Terra. Isto não significa apenas que ele é um filho da Terra, pó do seu pó; mas que a Terra o concebeu, o alimentou, lhe impôs tarefas, dirigiu pensamentos, criou dificuldades que lhe robusteceram o corpo e lhe aguçaram o engenho, lhe suscitou problemas de navegação e rega e, ao mesmo tempo, lhe murmurou sugestões para resolver. Ela entrou-lhe nos ossos e na carne, na mente e na alma.” [in. FERREIRA & SIMÕES., op. cit., p. 120] VOLTAR
(15) ESTÉBANEZ, J. Tendecias y problematica actual de la geografia. Madrid: Editorial Cincel, 1982: 49 VOLTAR
(16) MORAES, A. C. R. (org.). Ratzel. São Paulo: Ática, 1990:101-102; 104 VOLTAR
(17) CARVALHO, M. B. “Ratzel, releituras contemporâneas: uma reabilitação.” In. Revista Bibliográfica de Geografia y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona. Nº 25, 23 de abril de 1997
[As citações foram coletadas da tradução espanhola de Volkerkunde, Las Razas Humanas, Barcelona: Montaner y Simon, 1888, 2 vols, 672 p. e 466 p.] VOLTAR(18) LA BLACHE, P. V. “As características próprias da geografia”. in: CHRISTOFOLETTI, A. Perspectivas em geografia. São Paulo: Difel, 1985: 45 VOLTAR
(19) LÖWN., op. cit., p. 63-64 VOLTAR
(20) cit. in QUAINI., op. cit., p. 48 VOLTAR
(21) CAPEL, H. Filosofía y ciencia en geografía contemporánea – Una introducción a la geografía. Barcelona: Editorial Barcanova, 1981: 331 VOLTAR
(22) Traduzido sob orientação da profa. Eliene Vieira Santana. VOLTAR
(23) MORAES, A. C. R. Geografia – pequena história crítica. São Paulo: Hucitec. 1997: 84 VOLTAR
(24) HETTNER, A. “Die Methode und das System der Geographie” (originalmente publicado em 1895), in Probleme der Allgemeinen Geographie; herausgegeben von Ernst Winkler, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1975. [Traduzido pelo Prof. Oswaldo Bueno Amorim Filho, não publicado] VOLTAR
(25) JOHNSTON, R. J. Geografia e geógrafos – a geografia humana anglo-americana desde 1945. São Paulo: Difel, 1986: 64 VOLTAR
(26) Muitos autores associam a “origem” da geografia quantitativa e teorética ao polêmico artigo de F. K. Schaeffer intitulado Exceptionalism in geography: a methodological examination, publicado nos Annals, Association of American Geographers em 1953. [Idem, p. 74] VOLTAR
(27) Idem, p. 87 VOLTAR
(28) Idem, p. 88 VOLTAR
(29) Idem, p. 91 VOLTAR
(30) Idem, p. 95 VOLTAR
(31) Idem, p. 103 VOLTAR
(32) MORAES. Geografia... p.93 VOLTAR
(33) Idem. p.102 VOLTAR
(34) FERREIRA & SIMÕES., op. cit., p. 101 VOLTAR
(35) GOMES, P. C. da C. Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. ?: 279 VOLTAR
(36) Idem VOLTAR
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