Geografia & Poesia

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A universidade se burocratizou
Por Martha Neiva Moreira

Fonte: Jornal do Brasil, em 27/08/2000

Um dos mais respeitados pensadores do país, o geógrafo Milton Santos, 74 anos, é um crítico da globalização. Ao abordar as conseqüências desse processo para humanidade, ele põe em prática o que considera ser a função do intelectual: "Ser humilde frente à realidade, mas corajoso para criticá-la". Professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), com mais de 40 livros publicados, faz uma profunda reflexão sobre o Brasil e o mundo atual. Algumas de suas idéias, presentes em Por uma outra Globalização, editado pela Record, destacam os efeitos desta nova ordem para o desenvolvimento do debate intelectual brasileiro. Milton diz, por exemplo, que na universidade, local por excelência do livre pensar, a pluralidade de idéias vem sendo substituída pelo pensamento único. Na opinião do geógrafo, o contexto atual não favorece a liberdade de pensamento. "Nesta fase de globalização, onde as coisas mais importantes são precedidas por um discurso ideológico, as idéias são apresentadas de forma confusa. Fica difícil criticá-las", diz. Ao explicar as causas do "enfraquecimento da universidade", surpreende. "Uma das razões de hoje existir a tendência ao pensamento único, está dentro da própria instituição de ensino". Para ele, a crescente burocratização instaurada na universidade, que submete professores à regras, cria obstáculos a produção de novas ideologias. O resultado é a profusão de letrados - sujeitos que, ao contrário dos intelectuais, são incapazes de ampliar e aplicar os conhecimento que possuem. A globalização também contribui, segundo o professor, para o aumento da violência. Sua idéia parte do princípio de que as pessoas sejam competitivas. Ao aceitarem a competição, elas são, naturalmente, estimuladas a ter um comportamento violento. "A regra vigente é a regra do resultado. Não existe ética nesse contexto".

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- O senhor costuma dizer que os intelectuais, ao contrário dos letrados - definidos como aqueles que não são capazes de ampliar e aplicar o conhecimento apreendido -, estão cada vez mais raros. De que forma o sistema universitário estaria contribuindo para a profusão de letrados?

- A universidade é o lugar de intelectuais, o sujeito que dedica todo o tempo a busca da verdade, e também de letrados. Você pode ser um bom professor e um pesquisador. Tem espaço para os dois na universidade. Mas, é verdade também que, embora ela esteja formando intelectuais, ela tem produzido em maior número letrados. O espaço universitário se define por ser o lugar do livre pensar, de criar idéias e discutí-las. Esse é sentido real da vida universitária. No entanto, acho que o clima atual não favorece a liberdade de pensar.

- Por que?

- O sistema universitário, no qual deveria prevalecer a diversidade de idéias, tem sido vítima da doença da globalização, isto é, a tendência a um pensamento único. E a universidade não tem defesa completa contra essa doença. Nesta fase de globalização, onde a realização hegemônica e as coisas mais importantes que são feitas são precedidas por um discurso ideológico, o trabalho de análise e crítica fica muito mais difícil. O aparelho do estado decidiu adotar, sem críticas, o processo globalitário e busca aplicar os princípios dessa globalização perversa na universidade.

- Por que a universidade virou o alvo?

- Nesse processo as realizações dependem da fabricação de idéias. A universidade, a fábrica de idéias por excelência, torna-se, então, um lugar estratégico. Só que para a produção da globalização. Em países onde há cidadania, uma idéia de democracia social e onde a vida intelectual tem mais densidade, é mais fácil a universidade resistir a essa tendência. Em lugares onde a idéia de cidadania e a preocupação com o bem estar das maiorias nunca existiu, como aqui no Brasil, a universidade se enfraqueceu. A burocracia também contribuiu para enfraquecê-la.

- O senhor quer dizer que a universidade estaria se burocratizando?

- É isso. A forma como as universidades estão sendo geridas atualmente é burocrática, amarrada a regras. Em cada departamento, que deveriam gerir as coisas e não as pessoas, vigoram leis, às quais os professores devem se submeter, e prêmios, concedidos àqueles que cumprem as regras. A cooptação é feroz. O resultado disso é a redução da autonomia intelectual do corpo docente e da capacidade de se fazer uma autocrítica. Os professores estão imobilizados. Cada vez que um colega passa para o lado da burocracia é um caminho sem volta. Eu costumo dizer que o "buroprofessor" é pior do que o burocrata simples. Isso porque ele detém o conhecimento. A burocracia dentro da universidade tem a tendência de dar mais importância aos meios do que aos fins, de privilegiar o resultado ao invés do conjunto. Isso a universidade não suporta. Ela é a única instituição que não suporta ser institucionalizada.

- Ao se burocratizar, a universidade brasileira estaria deixando de cumprir sua principal missão, que é a de criticar o seu tempo e a ela própria?

- Ela não abandonou sua missão. O que ocorre é que, no atual contexto, ela apenas ficou menos capaz de cumpri-la.

- Embora reconheça que o debate intelectual brasileiro está enfraquecido, o senhor é otimista em relação ao futuro da universidade?

- Sei que não será nada fácil reverter o processo de burocratização. A universidade vive um debate que se refere ao outro, quando deveria se voltar para suas próprias questões. Embora esteja temeroso e preocupado, acredito que os movimentos de fundo da sociedade, que passavam despercebidos, estão explodindo na superfície e demandando mudanças de atitude. Isso é o resultado do processo social, que vai exigir que a universidade amplie seu universo de preocupações. Já existe em muitos grupos a esperança de mudança.

- O Ministério da Educação (MEC) prega a idéia de autonomia universitária, cuja principal proposta é a liberdade para gerar recursos, como sendo uma das principais soluções para o sucateamento do ensino superior. O senhor acredita nessa proposta?

- O discurso do MEC é hipócrita. O Ministério prega autonomia, mas faz ao contrário. A verdadeira autonomia só pode ser exercida se o professor for autônomo, mas hoje as próprias instituições de ensino se opõem à liberdade de cátedra. A autonomia pregada pelo MEC é financeira, quando teria que ser de pensamento. Se nós formos nos aprofundar neste debate vamos chegar a conclusão que uma das saídas para os problemas da universidade, hoje, é desenvolver a autocrítica. Somente voltando o olhar para dentro dos campi é que será possível restaurar o clima de liberdade, de criar e pensar.

- Algumas universidades do país já estão seguindo a tendência de se organizar em núcleos sobre os mais variados assuntos, envolvendo conhecimentos de vários departamentos. O senhor acredita que a implantação da interdisciplinaridade poderia ser a chance de se estimular a diversidade de pensamentos na universidade?

- Da forma como está sendo implantada, sem debate, a estrutura interdisciplinar só barateia o ensino. A interdisciplinaridade pressupõem investimento para se conhecer bem uma determinada área do conhecimento. Para se trabalhar de forma interdisciplinar é necessário que o professor conheça profundamente o seu domínio, do contrário não tem o que dizer aos outros. O que ocorre é que existe aqui uma tendência à pressa, à ligeireza, em detrimento da calma, da profundidade. Qualquer um pode dar aula sobre qualquer coisa. Isso é um risco.

- O senhor acha que as formas de acesso à universidade são segregadoras?

- O vestibular é um exame sócio-econômico, quem entra são alguns poucos favorecidos que freqüentaram boas escolas. Por outro lado, o aumento do número de vagas para a universidade não acompanha o aumento da população em idade universitária. Isso institui o nexo-sócio econômico. A universidade tem que ser para todos, quanto mais diversidade existir, mais rica é a produção do saber.

- O senhor diz que o processo de globalização é um convite à violência, principalmente nas metrópoles. Por que?

- O caldo de cultura que baliza a vida já é violento em si. A globalização exige de todos os atores, de todos os níveis e em todas as circunstâncias, que sejam competitivos. Esse processo exige que empresas, instituições, igrejas sejam competitivas. A competição estimula a violência porque a regra que vigora é a regra do resultado. Não existe ética. Quando, por exemplo, se privilegia, no ensino secundário, a formação técnica, sem nenhum conteúdo humanístico, está se criando mais um caldo de cultura que estimula atitudes violentas.

- Como isso acontece?

- Deixando de lado o conteúdo humanístico, não se vê o conjunto. Esse estilo fragmentador, que está presente em outros setores da vida, desmancha as pessoas, sem contruí-las depois. Mas, não é só isso. Existem outros aspectos que ajudam no entendimento da violência nas grandes cidades.

- Quais são eles?

- O desencanto com o resultado do esforço, depois que se descobre que os espertos são os vitoriosos. A desesperança de um trabalho regular, o incitamento ao consumo - que também é desagregador -, a falta de certeza na justiça social. Se vive hoje em um mundo de temores e incertezas que conduz a um estado de permanência.

- O senhor acha que a violência chegou a um estágio incontrolável?

- A violência dá impressão de ser incontrolável, mas não é irreversível. Hoje, nós temos um mundo, quero dizer com isso que ao mesmo tempo que a globalização incentiva a violência, ela favorece sua extinção. A facilidade de comunicação favorece a construção de um sentimento de solidariedade mundial. Essa é a contradição do processo de globalização. Nós temos que engrossar o lado positivo do processo globalitário, usar a idéia de civilização em benefício da humanidade. Isso não é impossível.

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