Geografia & Poesia

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PERFIL
Mestre de verdade
Por José Antonio Toledo *

Fonte: http://www.spbancarios.com.br/rb/index.htm

Revista dos Bancários – edição 69 – Agosto de 2001

Como seria bom se todos os acadêmicos e estudiosos brasileiros tivessem parte da dignidade e dos compromissos do professor Milton Santos. Mas, dá para entender, para chegar a ser como ele é preciso conhecer na pele seu povo

As idéias revolucionárias do geógrafo Milton Santos renderam-lhe, entre um punhado de láureas pela vida, o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud em 1993 – espécie de Nobel dessa ciência. O professor emérito da Universidade de São Paulo, USP, tinha como uma de suas convicções que os pobres, por conhecerem a "experiência da escassez", têm de ser necessariamente criativos para sobreviver. Por esse raciocínio, Milton Santos via nos excluídos os legítimos portadores da "visão do real e do futuro", pois sentem cotidianamente na pele as mazelas da globalização e do neoliberalismo. Identificava neles os protagonistas de uma grande virada nesse jogo e, no Brasil, país que ostenta uma das piores distribuições de renda do mundo, um palco privilegiado para a guinada. Não à toa, nutria grande simpatia por movimentos como o MST.

Quem transita pelo centro de uma metrópole brasileira entende porque o geógrafo rebatizou a globalização da economia de globalitarismo, neologismo que agrega ao termo o sentido de totalitarismo. Isso porque a situação atual obriga o cidadão a submeter-se às regras do tal mercado para sobreviver. Umas das caras visíveis do globalitarismo é a multidão de ambulantes no centro de São Paulo, na maioria retirantes nordestinos, vendendo a preço de banana produtos high-tech fabricados, muitas vezes, com mão-de-obra semiescrava no Sudeste Asiático.

Concomitantemente, escancaradas as portas do país aos produtos estrangeiros, a indústria nacional vai a pique, jogando mais desempregados nas ruas. Sobre esse ciclo cruel, e o que ele acabará suscitando, Milton Santos afirmou no programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido em 1998: "Há um turbilhão, uma efervescência, de baixo, que a gente não está podendo captar completamente ainda, mas que há e que vai, um dia ou outro, confluir com a produção de idéias para forçar um outro caminho". O momento político atual, no Brasil e no mundo, corrobora cada vez mais essa tese.

Biografia incomum.

Milton Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, em 1926. Os pais, professores primários, o alfabetizaram em casa. Aos 8 anos, já havia concluído o equivalente ao curso primário. Neto de escravos por parte de pai, foi incentivado a estudar sempre e muito. Dos 8 aos 10 anos, por exemplo, quando vivia em Alcobaça, aprendeu francês e boas maneiras, sempre em casa, enquanto aguardava o tempo para ingressar no ginasial. Os benefícios de sua aplicação nos estudos o país nunca poderá negar, mas o geógrafo confessava uma frustração: embora Alcobaça seja um pedaço de terra entre o Oceano Atlântico e um rio, Milton, sempre às voltas com livros, nunca aprendeu a nadar. Da mesma forma, nunca participou das peladas e jamais entrou num estádio de futebol.

Já em Salvador, custeava suas aulas no colégio lecionando Geografia na própria escola aos alunos do que seria atualmente o ensino médio. Depois, incentivado por um tio advogado, cursou Direito. Diplomado, não chegou a exercer a profissão; prestou concurso público para professor secundário e foi lecionar Geografia em Ilhéus. Iniciou, então, carreira repleta de desafios, não raro impostos pela sua condição de negro. Rodou o mundo, estudando e lecionando, numa trajetória impressionante. Aprendeu e ensinou na Europa, Américas e África. Fez trabalhar em seu favor o doloroso exílio que a ditadura militar lhe impôs por treze anos.

Xícaras de chá.

Em setembro de 2000 encontramos o geógrafo na USP para uma entrevista que a sua agenda, repleta de compromissos pelo Brasil afora, houvera adiado diversas vezes. Precisávamos, João Spósito, Patrícia Leite e eu, quartanistas de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, de mais um depoimento de Milton Santos para arrematarmos exaustivo trabalho sobre sua vida e obra. Fomos recebidos em sua modesta sala, no Departamento de Geografia. Ele cumprimentou-nos amavelmente e perguntou: "Quando eu me cansar, nós podemos parar?". Paramos três horas depois, mas ainda conversamos animadamente sobre algumas passagens da sua vida, em meio ao tilintar das xícaras de chá que tomamos juntos. Uma tarde inesquecível.

Que o Brasil também não se esqueça dele e de suas lições. Num embate que durou sete anos, a morte acabou levando a melhor contra o geógrafo, no último dia 24 de junho. Cedo ou tarde, ela vence, mas teve em Milton Santos um adversário incomum. Após o diagnóstico de um câncer, em 1994, ao contrário de esmorecer intensificou seu trabalho de intelectual, para a perplexidade dos que o acompanhavam de perto. Adepto da geografia humana, a que insere – e sublinha como principal objeto de estudo – o ser humano no mapa frio da matéria que aprendemos na escola, seus últimos anos de vida foram dedicados a dissecar a globalização da economia, enfatizando seu efeito devastador no Brasil, e propor saídas para que a população pobre não seja mais parte desse jogo apenas como vítima.

* José Antonio Toledo é bancário do BB e Jornalista. Fez um livro-reportagem na conclusão do curso sobre Milton Santos.

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