Bernardo Soares

Livro do Desassossego 1919

Textos não datados

O Rio da Posse

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, / ninguéns /.
Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem / que / age, se tantas vezes se / malquista / com o homem que age, como não se malquistará com / o homem que age e o homem que sonha no Outro./

Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós
Mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, (...) Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz (como não pensar é a parte melhor de ser rico).

Olha para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos / desavimos / antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha de mais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho com o de sentir a vida irreal).
Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras, pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com [?] quem pensamos nunca são aqueles em que pensamos.

O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que nem torna seu e não é ele. Amar é entregar-se. Quanto maior é a entrega, maior o amor.
Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia [...]

No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa, no terraço à beira do mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da lua com as águas.

O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico àquele de quem sou diferente.
O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.
Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras, com um rumor de deuses e o desconhecimento da / rota /
Como única via.

A pior astúcia comigo da minha / decadência / é o meu amor à saúde e à claridade. Achei sempre que um corpo belo e o ritmo feliz de um andar jovem tinham mais competência no mundo que todos os sonhos que há em mim. É com uma alegria da velhice pelo espírito que sigo às vezes – sem inveja nem desejo – os pares casuais que a tarde junta e caminham braço em braço para a consciência / inconsciente / da juventude. Gozo-os como gozo uma verdade, sem que pense sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere, juntando à dor da ferida a consciência de ter compreendido os deuses.

Sou o contrário dos espiritualistas / simbolistas / , para quem todo o ser, e todo o acontecimento é a sombra de
Uma realidade de que é a sombra apenas. Cada cousa, para mim, é , em vez de um ponto de chegada, um ponto
De partida. Para o ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo para mim.
Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jardim pequeno que lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a
Mim não lembra mais que o jardim maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser.
Cada cousa sugere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para que é o caminho.

O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo, nos séculos antes do descontentamento
Da alma.

 

 

Bernardo Soares

Livro do Desassossego 1919


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