Eram já quase onze horas
da noite, e a reunião havia chegado ao fim. Um fim em grande estilo pois,
após mais de três horas de conversação, o dono da casa mandou servir
cerveja, refrigerantes... e comida.
O silêncio compenetrado
da reunião transformou-se, abruptamente, em balbúrdia.
Um tanto deslocado, e já
com as pernas cansadas de tanto ficar de pé, procurei uma cadeira, onde
assentei-me, aproveitando para ultimar os detalhes técnicos da pauta
discutida.
Alguém ofereceu-me
cerveja, que recusei polidamente, solicitando, contudo, algum
refrigerante.
Com o passar do tempo, e
desapercebidamente, minha atenção foi desviada para um senhor, sentado
logo a minha frente.
Ele aparentava ter idade
entre 55 e 60 anos, e trajava roupas humildes. Calçava botinas rústicas
e usava um chapéu de maça, acinzentado, com uma tira bordada realçando
o entorno da copa. Tinha, sobre as pernas, uma camisa de cor indefinível,
um tanto esbranquiçada, de mangas compridas. Talvez - pensei - para
proteger-se do frio.
O dono da casa, passando
por ele, entregou-lhe um copo com cerveja, a qual ele sorveu avidamente,
quase que de um só gole, ficando com o copo, vazio, na mão.
Ele estava incomodamente
calado, eu percebera, desde que havia chegado. Seus olhos perdiam-se no
vazio, alheios à confusão reinante no local, e seus ouvidos pareciam
ignorar o barulho...
Mas o copo, vazio,
permanecia firme em sua mão.
Observando-o esqueci-me
dos afazeres, e aquele copo, vazio, em sua mão, começou a provocar-me
indignação, já que as outras pessoas presentes receberam, cada uma, uma
garrafa.
Ele recebera, apenas, um
copo!
Inesperadamente seu
mutismo foi quebrado, e eu me indignei mais ainda, quando passou por ele
um outro homem, ostentando uma garrafa de cerveja, cheinha, ignorando seu
copo, absurdamente vazio!
Aquele senhor, que até
então permanecera calado e imóvel, debaixo do seu chapéu
acinzentado de maça com uma tira bordada realçando o entorno da copa,
calçando botinas rústicas, estendeu o copo, vazio, para o homem que
passava com uma garrafa cheinha de cerveja, e pediu:
-- Põe um pouco prá
mim...
O homem, que passava com
a garrafa cheinha de cerveja, resmungou algo e afastou-se, ligeiro.
Aquele copo continuou
vazio, só não mais firme na mão daquele senhor, agora envergonhado,
retraído...
Mas eis que o dono da
casa - acredito que ele presenciara a mesma cena que eu - aproximou-se
trazendo-lhe uma garrafa, cheinha de cerveja!
Seu rosto iluminou-se num
sorriso infantil, como o de uma criança que acabara de ganhar o presente
que muito ansiara. Ele voltou-se para mim e ofereceu-me a garrafa de
cerveja... aquela cerveja que lhe custara tanto ganhar... antes mesmo de
encher o seu copo!
Me desconsertou!...
Recusei com um gesto e
fiquei a observa-lo saboreando sua cerveja, vagarosamente, ao contrário
do primeiro copo que fora bebido como se fosse água.
Ele bebeu toda a cerveja
da garrafa, sob minha atenta supervisão.
Alheio a tudo e a todos
aquele homem, humilde, devotou aquele seu tempo à cerveja que bebia.
Outra garrafa, cheinha de
cerveja, foi-lhe entregue quando o dono da casa acercou-se de mim,
servindo-me de refrigerante e assentando-se ao meu lado.
Puxando conversa comigo o dono da casa desviou minha atenção daquele
senhor idoso, que calçava botinas rústicas e usava um chapéu de maça,
acinzentado, com uma tira bordada realçando o entorno da copa, e que
tinha sobre as pernas uma camisa de cor indefinível, um tanto
esbranquiçada, de mangas compridas.
Me envolvi na conversa
com o dono da casa e quando voltei-me aquele senhor não estava mais em
minha frente.
Foi como se um alarme
disparasse em minha mente, pondo-me imediatamente em alerta, buscando-o
com os olhos por todos os lados.
Encontrei-o!
Ele estava sentado a uma
mesa, dividindo sua segunda garrafa de cerveja com aquele homem que antes
lhe negara um copo, um único copo, de cerveja.
E ele estava sorrindo...
alegremente descontraído!
Nezinho Costa
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Esta crônica foi escrita no dia seguinte ao do que o
fato, nela narrado, aconteceu.
Foi lida na Rádio Livre, no programa "Fragmentos de
Uma Existência" por duas vezes, a pedido de ouvintes. |