GRANDES MESTRES DA POESIA
ADÉLIA PRADO
Na foto, Adélia Prado com Lucilene Machado, que gentilmente enviou este material.
"Mas ninguém escapará à sedução da minha paciência", escreveu a poetisa mineira Adélia Prado.
Mineira de Divinópolis, mãe de cinco filhos, avó de seis netos e autora de 11 livros publicados, Adélia é repleta de espontaneidade, seja em seu jeito, suas palavras ou em sua poesia. A confissão religiosa que transparece no registro de toda a sua obra também está explícita em O Tom de Adélia Prado. Um CD na voz da poetisa, no desvelar de sua alma.
Composto por 56 poemas, divididos em seis partes, o disco também exprime a condição feminina e o erotismo pelos olhos de Adélia. "Depois das conquistas de natureza social, a mulher sofre pela ausência do exercício que lhe é próprio e pela perda de valores essenciais", afirma. "Já o erotismo é vitalidade e não tem nada mais vivo do que a poesia."
CORRIDINHO
O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.
CONFESSANDO PARA ADÉLIA
Maria de Fátima Barreto Michels*
Bom dia, Adélia!
Acabo de reler um poema teu, o "Parâmetro", que diz assim:
Deus é mais belo que eu. / E não é jovem. / Isto sim
é consolo.
Deixa eu te contar. Há uns 18 anos, por intermédio de Suzana,
amiga bancária
na mesma empresa em que trabalhava teu marido, fiquei conhecendo Os
Componentes da Banda. Depois vieram outros livros teus, comprados por mim
mesma e daí aconteceu uma coisa maravilhosa: descobri a poesia brasileira
feita por mulher e descobri que gostava muito, mas muito mesmo, demais da
conta, daquilo que escrevias! Desde então, paro na frente da tevê
se é
entrevista tua, paro na página da revista se é texto teu ou
a ti dedicado, e
ando pela internet te visitando pelos sítios...
Sabes, Adélia, na semana passada fui até Florianópolis,
a uma feira de
livros, para conhecer pessoalmente o escritor Luiz Carlos Amorim,
catarinense que possui espaço na Web, onde tens teu lugar, inclusive.
Lá na
feira o poeta Amorim lançava a obra Saudades de Quintana. Pois no estande,
estávamos justamente Suzana e eu, e te relembramos numa tentativa frustrada
de explicar poesia a um leitor. Recordei que certa vez, no programa "Sem
Censura", contavas em entrevista à Leda Nagle, que vestibulandos
ou
professores, não tenho certeza, teriam ligado para tua casa, querendo
saber
o que querias dizer com determinado poema, incluído na bibliografia
exigida
para o vestibular. Naquela oportunidade, a essas pessoas terias respondido
que se fosse preciso explicar tua arte... então, nada com ela.
Querida poeta Adélia Prado, quanto aprendo contigo, quanta surra levo
da tua
batuta, mestra e maestrina da palavra que em ti se orquestra! Quanto
orgulho, nós brasileiros, temos de ti, que te autodenominas "mulher
do povo,
mãe de filhos", que "faço comida e como", e és
capaz de "chorar, chorar,
chorar, requintada e esquisita como uma dama".
Hoje lembrei-me muito, muito mesmo, muito mais de ti! É que vamos fazer
um
evento lá na UNISUL, onde estudo e vamos impregnar o ambiente de linguagens
poéticas. Duas coisas se fazem presentes "almamente" em mim,
sabes? É um
sentimento feito moeda, assim, com duas faces: de um lado ameaças todas
as
pretensas poetas com tua envolvente e bela produção. Ao mesmo
tempo nos
encorajas com tua sedutora singeleza, sobretudo, poeta Adélia, abres
caminhos para a femeal-amorosa-escancarada e multifacetada brasileira
maneira de produzir e entregar nosso mel.
Ah, Adélia. Estou lembrando-me agora que vais fazer setenta anos em
dezembro. Puxa, quanto gostaria de ir te pedir a bênção!
Eu adoraria te
encontrar num abraço e dizer: uai, Adélia, sai dessa mineirice
e me conta
dos teus negócios com Deus. Sim, claro, porque és uma privilegiada,
te
aproximaste de Deus e a Ele te deste em praça pública! Uma escolhida
do pai
do céu, é o que de fato és! A quem todo o talento foi
dado. Escreves tal
qual uma Dona Doida, deixando nossas almas em júbilo com a tua poesia.
E
quanto bem fazes à minha alma!
Não posso negar - e te agradeço por isso - curvo-me diante de
ti, fico de
quatro, Adélia Luzia Prado de Freitas!
*Estudante de Historia da Arte
CASAMENTO
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira
vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
ENSINAMENTO
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
PEQUENA BIOGRAFIA PARA UMA GRANDE POETA
Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935, filha do ferroviário João do Prado Filho e de Ana Clotilde Corrêa. Leva uma vidinha pacata naquela cidade do interior: inicia seus estudos no Grupo Escolar Padre Matias Lobato e mora na rua Ceará.
No ano de 1950 falece sua mãe. Tal acontecimento faz com que a autora escreva seus primeiros versos.
Em 1958 casa-se, em Divinópolis, com José
Assunção de Freitas, funcionário do Banco do Brasil S.A.
Dessa união nasceriam cinco filhos:
Eugênio (em 1959), Rubem (1961), Sarah (1962), Jordano (1963) e Ana
Beatriz (1966).
Antes do nascimento da última filha, a escritora e o marido iniciam o curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis.
Em 1972 morre seu pai e, em 1973, forma-se em Filosofia. Nessa ocasião envia carta e originais de seus novos poemas ao poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant'Anna, que os submete à apreciação de Carlos Drummond de Andrade.
"Moça feita, li Drummond a primeira vez em prosa. Muitos anos mais tarde, Guimarães Rosa, Clarisse. Esta é a minha turma, pensei. Gostam do que eu gosto. Minha felicidade foi imensa. Continuava a escrever, mas enfadara-me do meu próprio tom, haurido de fontes que não a minha. Até que um dia, propriamente após a morte do meu pai, começo a escrever torrencialmente e percebo uma fala minha, diversa da dos autores que amava. É isto, é a minha fala."
"Bagagem, meu primeiro livro, foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. Descobri ainda que a experiência poética é sempre religiosa, quer nasça do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amoroso sobre você, ou de observar formigas trabalhando."
O livro é lançado no Rio, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel Jardim, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitscheck, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon e Alphonsus de Guimaraens Filho, entre outros.
O ano de 1978 marca o lançamento de O coração disparado que é agraciado com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.
Estréia em prosa no ano seguinte, com Soltem os cachorros. Com o sucesso de sua carreira de escritora vê-se obrigada a abandonar o magistério, após 24 anos de trabalho. Nesse período ensinou no Instituto Nossa Senhora do Sagrado Coração, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis, Fundação Geraldo Corrêa Hospital São João de Deus, Escola Estadual são Vicente e Escola Estadual Matias Cyprien, lecionando Educação Religiosa, Moral e Cívica, Filosofia da Educação, Relações Humanas e Introdução à Filosofia. Sua peça, O Clarão,um auto de natal escrito em parceria com Lázaro Barreto, é encenada em Divinópolis.
"O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta."
Em 1980, dirige o grupo teatral amador Cara e
Coragem na montagem de
O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. No ano seguinte, ainda sob sua
direção, o grupo encenaria A Invasão, de Dias Gomes.
Publica Cacos para um vitral. Lucy Ann Carter apresenta, no Departament of
Comparative Literature, da Princeton University, o primeiro de uma série
de estudos universitários sobre a obra de Adélia Prado.
Em 1981 lança Terra de Santa Cruz.
De 1983 a 1988 exerce as funções de Chefe da Divisão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e da Cultura de Divinópolis, a convite do prefeito Aristides Salgado dos Santos.
Os componentes da banda é publicado em 1984.
Participa, em 1985, em Portugal, de um programa de intercâmbio cultural entre autores brasileiros e portugueses, e em Havana, Cuba, do II Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América.
Fernanda Montenegro estréia, no Teatro Delfim - Rio de Janeiro, em 1987, o espetáculo Dona doida: um interlúdio, baseado em textos de livros da autora. A montagem, sob a direção de Naum Alves de Souza, fez grande sucesso, tendo sido apresentada em diversos estados brasileiros e, também, nos EUA, Itália e Portugal.
Apresenta-se, em 1988, em Nova York, na Semana
Brasileira de Poesia, evento promovido pelo Comitê Internacional pela
Poesia. É publicado
A faca no peito.
Participa, em Berlim, Alemanha, do Línea Colorada, um encontro entre escritores latino-americanos e alemães.
Em 1991 é publicada sua Poesia Reunida.
Volta, em 1993, à Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Divinópolis, integrando a equipe de orientação pedagógica na gestão da secretária Teresinha Costa Rabelo.
Em 1994, após anos de silêncio poético, sem nenhuma palavra, nenhum verso, ressurge Adélia Prado com o livro O homem da mão seca. Conta a autora que o livro foi iniciado em 1987, mas, depois de concluir o primeiro capítulo, foi acometida de uma crise de depressão, que a bloquearia literariamente por longo tempo. Disse que vê "a aridez como uma experiência necessária" e que "essa temporada no deserto" lhe fez bem. Nesse período, segundo afirmou, foi levada a procurar ajuda de um psiquiatra.
"O que se passou? Uma desolação, você quer, mas não pode. Contudo, a poesia é maior que a poeta, e quando ela vem, se você não a recebe, este segundo inferno é maior que o primeiro, o da aridez."
Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã.
"Tenho confissão de fé católica.
Minha experiência de fé carrega e inclui esta marca. Qual a importância
da religião? Dá sentido à minha vida, costura minha experiência,
me dá horizonte.
Acredito que personagens são alter-egos, está neles a digital
do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador
para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um
livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções."
Estréia, em 1996, no Teatro Sesiminas, em Belo Horizonte, a peça Duas horas da tarde no Brasil, texto adaptado da obra da autora por Kalluh Araujo e pela filha de Adélia, Ana Beatriz Prado.
São lançados Manuscritos de Felipa
e Oráculos de maio. Participa , em maio, da série "O escritor
por ele mesmo", no ISM-São Paulo. Em Belo Horizonte é apresentado,
sob a direção de Rui Moreira, O sempre amor,
espetáculo de dança de Teresa Ricco baseado em poemas da escritora.
Adélia costuma dizer que o cotidiano é a própria condição da literatura. Morando na pequena Divinópolis, cidade com aproximadamente 200.000 habitantes, estão em sua prosa e em sua poesia temas recorrentes da vida de província, a moça que arruma a cozinha, a missa, um certo cheiro do mato, vizinhos, a gente de lá.
"Alguns personagens de poemas são vazados de pessoas da minha cidade, mas espero estejam transvazados no poema, nimbados de realidade. É pretensioso? Mas a poesia não é a revelação do real? Eu só tenho o cotidiano e meu sentimento dele. Não sei de alguém que tenha mais. O cotidiano em Divinópolis é igual ao de Hong-Kong, só que vivido em português."
Em 2000, estréia o monólogo Dona da casa, em São Paulo, adaptação de José Rubens Siqueira para Manuscritos de Felipa. A direção é de Georgette Fadel e Élida Marques interpreta Felipa.
D O L O R E S
Adélia Prado
Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.
Uma tal esperança imploro a Deus.