GRANDES MESTRES

DA POESIA

LUÍS DELFINO

 

DELFINO, EXPOENTE DA LITERATURA CATARINENSE

Por Luiz Carlos Amorim

Quem foi Luiz Delfino? Não, ele não foi, como muitos pensam, apenas um político que virou nome de rua. Ele foi e é, isto sim, o segundo maior poeta catarinense. Ele até foi senador, por Santa Catarina, foi também médico, mas foi na literatura que se perpetuou, ficando atrás apenas de Cruz e Sousa.
Infelizmente, se fizemos uma enquete nas ruas de Florianópolis, sua cidade natal, pouquíssimos saberão dizer quem foi ele.
Delfino nasceu em 1834, na ainda Desterro. Morou na ilha até os 16 anos. Mudou-se, então, para o Rio de Janeiro, onde se formou em Medicina. Foi um dos mais importantes médicos da época. Casou-se com Maria Carolina Puga Garcia, com quem viveu até sua morte, em 1910.
Não publicou nenhum livro em vida, o que fez com que sua obra quase se perdesse no tempo. Sua poesia, de rima e métrica perfeitas, era publicada freqüentemente na maioria dos jornais e revistas da sua época, o que o fez conhecido e amado como poeta. Chegou a ser eleito, pelos próprios colegas escritores, em 1898, o "Príncipe dos Poetas Brasileiros". Foi chamado, também, de Victor Hugo brasileiro.
Sua obra é imensa - escreveu mais de cinco mil poemas - e foi publicada em 14 livros, por seu filho, Tomás Delfino, entre 1926 e 1943. A obra publicada, no entanto, soma apenas um mil e quatrocentos poemas. É que em 1968, foi leiloado tudo o que estava dentro de uma casa que pertenceu ao poeta, no Rio de Janeiro, casa esta que guardava boa parte dos seus originais. Quem comprou foi um americano, David T. Hoberly, que estuda literatura brasileira. A poesia inédita do poeta saiu do país e provavelmente nunca mais a veremos.

Sua poesia vai do romantismo ao parnasianismo, passando pelo simbolismo.
A perfeição na rima em métrica dá cadência e musicalidade à obra de Luiz Delfino.
O amor e a mulher eram seus temas preferidos. "Foi ele um verdadeiro obsessionado pelo mito da beleza, da sensualidade, da idealizada companhia feminina, cantando o amor com toda a sua força e com todas as suas formas de atração...", analisa Lauro Junkes.
E é justamente Lauro Junkes, que estuda a obra e a vida de Luiz Delfino há mais de vinte anos, que organiza e p
ublica dois volumes - "Poesia Completa - Sonetos" e "Poesia Completa - Poemas Longos", totalizando mais de mil e trezentas páginas, reunindo toda a poesia conhecida do poeta, resgatada dos livros que o filho de Delfino editou.
Os livros foram publicados através da Academia Catarinense de Letras, resgatando um legado riquíssimo deixado por este grande catarinense, marco das letras catarinenses.
Os dois livros foram distribuídos a todas as bibliotecas municipais e estaduais e escolas de segundo grau de Santa Catarina, para que o poeta tenha sua obra conhecida pelos leitores em formação e pelo público em geral e o seu valor reconhecido. Foram l.500 exemplares, segundo o organizador Lauro Junkes.

 

A OBRA DE LUIZ DELFINO

Por Lauro Junkes

Na abordagem da obra poética de Luís Delfino, quase que necessariamente temos que dividí-la em dois grandes conjuntos: o vastíssimo grupo de sonetos, de um lado, e os poemas longos, de outro.
No manejo do soneto, o poeta parece ter alcançado facilidade tamanha que, em poucos minutos e em qualquer lugar, era capaz de compor quatorze versos decassílabos perfeitos. Aliás, dentro do código parnasiano, seu soneto perfilava-se de acordo com o padrão clássico, preferentemente em decassílabos, com impecável distribuição da rima. Entretanto, arrogou-se a liberdade de variar sua estrutura. Assim, além do esquema fundamental de construir o soneto, compondo-o de dois quartetos, seguidos de dois tercetos, Luís Delfino inovou estruturas, quer invertendo a ordem, fazendo preceder os dois tercetos, ou então intercalando-os. Há, pois nele, três estruturas sonetísticas: dois quartetos completados por dois tercetos; dois tercetos acompanhados de dois quartetos; um quarteto, seguido por dois tercetos e completado por outro quarteto. Consta que de sua lavra incansável e inesgotável tenham nascido cerca de três mil sonetos, dos quais apenas estão publicados pouco mais de mil, que figuram nos volumes: "Alagas e musgos", "Íntimas e Aspásias", "Rosas Negras", "Arcos do Triunfo" e três volumes de "Imortalidades" (Livro de Helena).
Os poemas outros, que não seguem a estrutura do soneto, geralmente são longos, embora possam variar na extensão entre 20 e 2.120 versos, como é o caso de "Inania verba". Se o caráter lírico é apanágio dos sonetos, este também pode figurar nos outros poemas. Entretanto, grande parte desses últimos vem marcada pelo caráter épico e cívico, enquadrando-se na fase condoreira de Luís Delfino. Nos poemas longos, por vezes cansativamente descritivos, torna-se manifesta a prolixidade do peta, em sua habilidade de versejador.
Elementos da formação clássica e humanista do escritor emergem com assiduidade dos seus poemas. Referências à literatura clássica greco-latina e quinhentista percorrem toda a sua criação poética. Além de inúmeros títulos latinos de poemas, há constantes epígrafes ou alusões a Homero, aos mestres latinos Virgílio, Horácio e Ovídio, aos renascentistas italianos Dante e Petrarca, bem como a Shakespeare.
Os poemas longos de Luís Delfino estão reunidos nos livros: "Poemas", "Poesias Líricas", "A Angústia do Infinito", "Atlante Esmagado", "Esboço de uma Epopéia Americana", "Posse Absoluta" e "Cristo e a Adúltera".
Três grandes linhas temáticas perpassam a criação poética do cantor de Imortalidades: a poesia mais social, de caráter cívico-patriótico, de tonalidade fortemente condoreira; a poesia filosófica, envolta em nebulosas dúvidas, ansiedades e angústias metafísicas; e o lirismo amoroso, desdobrando formas várias de amor e faces diversas da mulher, embora revestindo-se de fundamental e permanente caráter platônico.
Embora Luís Delfino tenha sido acusado de haver incorporado pouca função social a sua poesia, tal restrição ajusta-se melhor a sua produção sonetística, que se apóia quase incondicionalmente na mulher idealizada e no amor platõnico. Raríssimos são os sonetos de abrangência social. Pelo menos dois volumes de poemas longos, no entanto - "Poemas" e "Angústia do Infinito" - incluem uma série de textos de linha cívico-patriótica, nos quais é manifesto o caráter social. Assumindo decisivo posicionamento abolicionista, Luís Delfino adiantou-se mesmo a Castro Alves, com seu canto de lamento e glorificação da mulher escrava, em "A Ilha d'África", datado de 1862. O protesto vigoroso à exploração do escravo e canto da abolição, valorizando o negro e sua condição humana, retornam em vários poemas, como "Á Nação", "Às Armas", "Fiat Libertas", o soneto "A preta da cabana" ou "O Pai João", saudosa lembrança de "um pretinho velho e bom escravo", que passou a vida fazendo o bem, mas sem deixar rasto.

"POEMAS"


O caráter épico e cívico marcam todo o livro "Poemas". São textos em estilo grandiloqüente, centrados na celebração da heroicidade e do patriotismo, bem como na defesa irrestrita do ideal de liberdade contra qualquer tirania. Na intensa vibração do sentimento cívico, chega a ser obsessionante o tom de vigorosa revolta contra a tirania e entusiástica apologia da liberdade.
Bastante freqüente na poesia de Luís Delfino é a tendência reflexiva, o caráter filosófico, externando as inquietações, vacilações, incertezas, dúvidas e ansiedades do poeta em questões metafísicas. A maior parte dos poemas de "Esboço de uma Epopéia Americana" está impregnada de tais perplexidades, desde a "Simples interrogação" até a infindável verborragia de "Inania verba". Nesse poema, a busca incansãvel pelo universo todo para encontrar a "planta que cura todos os males" representa, sem dúvida, metáfora polivalente ou extensa alegoria que se refere à inquietação metafísica, à procura de um sentido satisfatório para a vida, uma vez que emerge constante o problema de Deus, cercado de dúvidas em meio à matéria, à sensualidade e à mitologia.
Também nas extensas 404 estrofes do poema "Ziguezagues", de "Cristo e a Adúltera", transparecem obsessivamente as mesmas perplexidades físico-metafísicas. Indaga-se o poeta angustiadamente sobre o problema de Deus: como pode ser Ele o criador? Criador deste mundo mau? Criador da fera humana e da dor? Por que não fez Ele os homens felizes em vez de desgraçados? E questiona-se: "há quem Deus possa entender?" Como entendê-lo racionalmente, se em meio a tanta dor e mis´ria "este Deus fica mudo"? Desconcertado, clama: "Pai, onde está teu amor?" A cosmovisão decorrente vem marcada pelo pessimismo, pela deprimência e pela desilusão: "com toda sua grandeza / é o homem tão infeliz". E o poeta, na sua natural bondade e no seu espírito conciliador, acaba por dar sua receita de Deus:
"E o que Deus de bom faria
Era não fazer a dor
E em tudo pôr a alegria
E em tudo espalhar o amor".

SONETOS


Nos sonetos, essa angústia metafísica retorna com certa freqüência. Um sopro de profunda descrença e um ceticismo perante a religião e a metafísica acompanham a desilusão existencial do poeta. "Nuvens e raios", última seção do livro "Algas e Musgos", é constituída por poemas marcadamente filosóficos, em que tornam a aflorar as preocupações existenciais, a confusa visão interior, os ímpetos de descrença, a incapacidade de conciliar o sofrimento humano com um Deus onipotente, o desespero e até mesmo o desafio lançado a Deus. Também em "Rosas Negras" o pessimismo é freqüente, inclusive em relação ao amor, quando esse se torna altivo e traidor. E o final do livro, sugestivamente intitulado "Sombras e relâmpagos", volta-se para temas religiosos e metafísicos, externando as dúvidas existenciais, os mistérios da vida e as hipóteses sobre Deus.
Ainda nos três volumes de "Imortalidades", embora o amor e a mulher constituam a tônica essencial, infiltram-se com certa constância sonetos de ordem filosófica, envolvendo as mesmas incertezas: qual o sentido da vida? Como será o destino do homem após a morte? Quais as relações entre Deus, o homem e o mundo? Como aceitar a existência de Deus onipotente e amoroso, se no mundo e entre os homens reinam o sofrimento, a ganância, a dor, a injustiça? A concepção teológica e metafísica pouco sólida e consistente do poeta denuncia-se na reescritura da "Lenda do Éden", no terceiro volume de "Imortalidades", quando retoma as páginas iniciais do "Gênesis". Na interpretação do episõdio bíblico todo, Deus resulta num ser caprichoso, enclausurado, "Só, incógnito e tristonho" nas alturas, vulnerável pela ação de suas criaturas e que acaba sendo derrotado e até mesmo desprezado pelos primeiros homens. Adão, quando descobriu os encantos da mulher e a infinita compensação do amor, não mais os trocaria pela volta ao Paraíso. Portanto, o homem criou algo melhor do que Deus, e contra a vontade de Deus: o amor!

A MULHER E O AMOR

Entramos no grande tema da poética delfiniana: a mulher e o amor. Por certo dois terços, no mínimo, da sua poesia centralizam-se nessa temática. Foi ele um verdadeiro obsessionado pelo mito da beleza, da sensualidade, da idealizada companhia feminina, cantando o amor com toda a sua força e com todas as suas formas de atração, menos a da direita e explícita carnalidade física.
A concepção fundamental da mulher, na poesia de Luís Delfino, é aquela oriunda do Romantismo: a mulher idealizada, sublime e sublimada, santa, perfeita, divina, rainha e anjo, símbolo da beleza e da bondade, virgem pura e inocente. Enfim, a mulher é a companheira imprescindível e ideal. E o que o poeta a busca junto a ela é essencialmente nessa relação de intimidade, nesse convívio meigo e sensual, nesse lirismo a dois - o poeta dirigindo-se ou referindo-se a ela nessa esfera restrita.
No poema título do livro "Posse Absoluta", embora o poeta inicie declarando: "Contigo vivo, durmo, sonho, acordo: / Estou cheio de ti, mulher divina" e repita sempre: "Tenho-te, és minha" ou "És minha ou viva ou morta" ou "Queiras ou não, ou por vontade ou força, / agora és minha, eu te possuo, és minha", depreende-se claramente que a mulher continua intocada no seu pedestal angélico e a "posse absoluta" se dá unicamente através da poesia, do verso.
Assim, também nos livros de sonetos, o poeta continua a cantar o esplendor da mulher idealizada e divina, sintetizando nela todo o sentido do existente - "sem ti, nem céu, nem Deus o espaço encerra". A mulher assume proporções crescentes de "deusa onipotente", de "lirial princesa" nos seus "ares de deusa", revestida do supremo encanto. Principalmente nos volumes "Imortalidades", Helena é a mulher ideal, a deusa única: nela nada há de imperfeito - ela é a "deusa em ninho esplendoroso", ela representa "a criatura dos meus sonhos caros", aquela "cuja imagem luminosa e casta / ver, só, e amar, para viver me basta". Essa Helena-mulher-deusa representa "o modelo sem par de formosura" e é conduzida à apoteose na reescritura da "Lenda do Éden", quando Eva, encarnando a complementação indispensável do homem Adão, assume para esse um valor superior ao da divindade - "Com teu prodígio e amor o Éden não fina", pois "Eva, és maior que a própria Divindade". Enfim, Helena é valor supremo:
"És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto:
É de ti, que, em mim só, todo um céu desce.
A ti meus olhos, como a um céu, levanto..."

A mulher divina merece do poeta constante exaltação. Ela constitui a fonte maior e permanente de inspiração. Essa mulher, sempre buscada, é a responsável pela sede indessedentável do poeta nos versos dramáticos de "Tântalo"; é a obra de arte com a qual "Prometeu" desafiou os deuses, sendo por eles condenado a ser roído pelo abutre do amor; é a montanha inacessível por cuja encosta de penhascos "Sísifo" rola seu trágico sonho de amor, nos poemas vigorosos de "Esboço de uma Epopéia Americana"; como essa mulher sintetiza a "Angústia do Infinito", enfocada no poema-título de outro livro.
E em "Imortalidade-III", ainda é Eva-mulher, no seu amor-sensualidade, que faz a cabeça do Adão-homem, a ponto de este mudar os rumos da História, e o poeta propor toda uma nova interpretação do episódio bíblico. Aprecia muito o poeta a descrição da mulher nua, quando se reveste de todo seu esplendor, ou a discreta intromissão em sua alcova, para contemplá-la em seu leito. Reveste-se a mulher, assim, de indisfarçável força erótica, transformando-se em chama abrasadora, em objeto de tentação.

 

A AMBIGÜIDADE DA MULHER


E já estamos penetrando nas faces mais negativas da figura feminina. A mulher, na lírica delfiniana, revela-se carregada de ambigüidade, a ponto de o poeta marcá-la explicitamente, em "Atlante Esmagado", com o signo da contradição:
"Eu tenho em mim o inferno e o paraíso:
um é o teu tédio, o outro o teu sorriso."

Os sonetos da segunda parte de "Íntimas e Aspásias" focalizam a face da mulher que preserva o "encanto da sereia", mas no seu orgulho superior, atrai e deprava. Ela é serpente que enlaça e sufoca para a morte; como aranha vil, "ela envolve nas malhas". Mulher falsa, prostituída, pérfida e... "formosa... Ela era o anjo do cinismo". No seu ofício tão antigo como a humanidade, a mulher aqui se degrada e deprava o homem. Vários poemas de "Atlante Esmagado" retratam o mesmo ar superior e altivo da mulher, insinuado nos próprios títulos: "Triunfadora", "A domadora de feras" ou "Patas de tigre".
Essa face escura e negativa da mulher atinge seu ponto máximo quando o poeta a retrata como indecifrável, como esfinge, como monstro. A mulher passa representar o mistério, a beleza ilusória, o céu e o inferno, a febre que faz arder. Alguns versos do poema-prólogo de "Imortalidades" - "A Helena" - bem sintetizam essa paradoxalidade da mulher que desorienta totalmente os sentimentos do poeta:
"Monstro, esfinge, colosso informe enfim que odeio
E que amo, e cujo casto e monstruoso seio
Tanto me faz querer como fugir, e cujo
Atrativo é maior, quanto mais dele fujo."

 

"IMORTALIDADES"


Os três volume de "Imortalidades" inscrevem-se sob a epígrafe de Shakespeare na folha de rosto: "Love is my sin..." Realmente, o amor foi o grande pecado, a grande paixão, o móvel irremovível da poesia lírica do poeta-médico. A maioria absoluta de seus sonetos centralliza-se na temática amorosa. Entretanto, não são poucos os poemas longos que também enfocam o mesmo tema. "Poesias Líricas", por exemplo, são poemas predominantemente românticos, nos quais o subjetivismo, o exagero e a sentimentalidade orientam a expressão lírica do eu a extravasar-se. O êxtase de amor, o arrebatamento amoroso e o envolvimento do amor em sonho são traços românticos que embasam a maior parte desses poemas.
Mas é nos sonetos que essa temática sobressai avantajadoramente. E formas diversas do amor emergem dessa expressão poética. De passagem e ocasionalmente, o poeta canta o amor materno e o amor fraternal. Sua obsessão, porém, volta-se para o sentimento amoroso, para com a mulher, companheira buscada incansavelmente.
Esse amor-sentimento dirigido à mulher pode revestir-se das tonalidades mais variadas: ora é ingênuo e embriagador, arrebatando o poeta, que se entrega totalmente ao seu poder atrativo; ora dilui-se o amor no sonho absoluto, na irrealidade alienante; ora o amor se reveste intensamente de elementos cósmicos e telúricos, numa vivência abrangente do êxtase idealizado; outras vezes apresenta-se ele desiludido, frustrado, na irrealilzação de quem não encontrou correspondência; vezes há em que o amor se torna fetichista, fixando-se em lugares ou objetos de uso ou em partes do corpo da amada; com muita freqüência o amor se embebe de sensualidade, transpirando erotismo, no lânguido comprazer-se com a nudez feminina; por vezes o amor tende sensivelmente para aspectos mórbidos e mesmo macabros, na atração pela mulher morta; raramente a vivência amorosa implica envolvimento físico e carnal concreto; na sua predominância absoluta, o amor permanece ao nível dos sentimentos abstratos, na pura atmosfera de intimidade, implicando sempre aquele distanciamento próprio do amor platônico.
Sem com isso diminuir os demais livros, certo é que a expressão do amor está mais concentrada em "Íntimas e Aspásias" e nos três volumes de "Imortalidades".

 

AMOR PLATÔNICO


O amor na intimidade, no estreito círculo a dois, ou mesmo na atmosfera estritamente pessoal do poeta, sendo a mulher apenas aspiração idealilzada de sonho, constitui a temática fundamental de "Íntimas...". Na primeira parte desse livro, quer vista na sua sensualidade "nua, bela e deslumbrante", quer assumida como "alma gentil e luminosa", a mulher é sempre tão superior, situa-se num lano tão elevado, que ao poeta não é dada outra forma de amor, a não ser aquele distanciado - ou fetichista, ou platônico, ou de pura contemplação visual, ou ainda o amor pela morta, atingindo as raias da morbidez na necrofilia.
O distanciamento da mulher inatingível evidencia-se desde logo pela recorrência constante à imagística sideral. Duas palavras sintetizam esse aspecto: a mulher é "céu e luz". A mulhler é céu, quer como lugar de felicidade plena, quer como indicativo dos elementos do firmamento. A mulher torna-se luz que ilumina e a fonte de vida do poeta. Nas metáforas "céu" e "Luz", relacionadas com a mulher, cria-se distinção de planos e distanciamento acentuado entre ela e o poeta amante.
Nos sonetos de "Imortalidades", o amor é permanentemente platônico. A mulher não chega a assumir figura concreta e carnal e o amor não transpõe a esfera do puro sentimento, sempre num plano harmonioso, idílico, distante. O poeta experimenta a necessidade premente de dirigir-se diretamente a sua Helena, de apelar para ela, de invocá-la. Por isso, a pessoa gramatical predominante é a segunda, sendo inevitáveis os pronomes: tu, te, ti, teu, contigo. A incontida irrupção da afetividade confere aos poemas um arraigado tom intimista. Com Helena, a mulher idealizada, torna-se "o amor infinito". Além dela, nada adquire valor: "Não vale a glória um dia em teu regaço". Com o amor da mulher, "séculos vivo em ti num só momento". Esse amor, arrebata. Com tal força irresistível, que o poeta confessa: "a amar-te, amor, a sorte me condena". E ele também não teme afirmar que "o homem só é forte, e grande, quando / nasceu, viveu, sofreu, morreu amando".
Também esse amor ilimitado e platônico para com Helena se reveste freqüentemente de caráter fetichista. Principalmente o cheiro, esse "cheiro preferido" que dela se exala e permanece nos lugares por onde andou e nos objetos que tocou inebria o poeta. A "traição do cheiro" dela sempre o arrebata:
"Helena, o odor que me enche a vida inteira
Que anda comigo e levo a toda parte
É teu corpo, que em mim palpita e cheira".

 

MITOLOGIA


Recorrendo à mitologia, irmana sempre de novo a beleza de Helena com a de Vênus, a mais cobiçada das deusas. A dramaturgia de Shakespeare forneceu-lhe Ofélia, que se projeta como a metáfora fundamental do amor, identificando-se com Helena; o casal amoroso Romeu e Julieta, símbolo da paixão incondicional; e mesmo a pitada de ciúme de Otelo e Desdêmona.
Em "Imortalidades-III", Luís Delfino reescreve capítulos iniciais do primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, para glorificar a mulher e o amor: "O nascimento de Eva" destaca a excepcional presença da mulher no mundo:
"Deus quis mostrar-se excepcional obreiro,
E fez, então, o que houve de mais lindo,
Fez a mulher, primor, que ele exibindo,
Pôs, mudado em seu eixo, o mundo inteiro".

 

APOTEOSE


Ante a beleza de Eva, Adão deslumbrou-se e a sentiu indispensável. O próprio Deus começa a preocupar-se com a perfeição que criou: o amor entre o homem e a mulher. E vem a cobra, com sua sutileza, infiltrando-se junto à mulher, até lograr fazê-la comer do fruto. Mas, mesmo após a queda, expulsos do Éden, reflete o poeta que ainda lhes resta o amor. Se Adão sente ter perdido muito, ainda tem Eva, o 'gozo infinito'. E Eva, mesmo sentindo tudo hostil, "junto a si Adão inda tem". Aqui o poeta coloca a valorização máxima da força do amor, pois nesse momento, se Deus tentasse esquecer e apagar a queda desobediente, para fazê-los retornar ao Éden, Adão diria "Não". Não voltaria, pois a mulher para ele é tudo: "com teu prodígio e amor o Éden não finda". E ele, "em frente à catástrofe", afirma: "Eva, és maior que a própria Divindade". É a apoteose da mulher e do amor! Assim, conferindo ao episódio bíblico interpretação divergente da tradicional exegese cristã, pretendeu o poeta glorificar o amor, conferindo-lhe a sublimidade máxima, para torná-lo o atributo feminino capaz de compensar a pior diversidade. Luís Delfino foi realmente um obcecado pelo amor.
Essa síntese pretende pretende retomar os aspectos fundamentais da poesia desse grande expoente das letras vernáculas, tão injustiçado pela crítica e pela história literária nacional. Sua obra poderia merecer verticais estudos monográficos em relação a traços e aspectos como: a imaginação exuberante, criadora de todo um universo pessoal; o sensualismo sem limites, o envolvimento de todos os sentidos, de todas as sensações - tácteis, olfativas, visuais, auditivas - na criação de atmosferas líricas, intimistas, eróticas; a comunhão telúrico-cósmica, com a criação de toda uma imagística sideral, para assim encontrar condições de realizar seu amor e seus desejos; as formas e gradações do amor e as faces da mulher; as inquietações filosóficas e o ceticismo metafísico. São perspectivas abertas. Urgente se torna voltar a ler e a analisar a poesia de Luís Delfino.

 

ALGUNS SONETOS

 

O AMOR

O amor!... Um sonho, um nome, uma quimera,
Uma sombra, um perfume, uma cintila,
Que pendura universos na pupila,
E eterniza numa alma a primavera;

Que faz o ninho e dá meiguice à fera,
E humaniza o rochedo, e o bronze, e a argila,
Sem o afago do qual Deus se aniquila
Dentro da própria luminosa esfera.

A música dos sóis, o ardor do verme,
O beijo louco da semente inerme,
Vulcão, que o vento arrasta em tênue pós:

Curvas suaves, deslumbrantes seios
De vida e formas variegadas cheios.
É o amor em nós, e o amor fora de nós.

 

GAIVOTAS

Do crespo mar azul brancas gaivotas
Voam - de leite e neve o céu manchando,
E vão abrindo às regiões remotas
As asas, em silêncio, à tarde, e em bando.

Depois se perdem pelo espaço ignotas,
O ninho das estrelas procurando:
Cerras os cílios, com teu dedo notas
Que elas vêm outra vez o azul furando.

Uma na vaga buliçosa dorme,
Uma revoa em cima, outra mais baixo...
E ronca o abismo do oceano enorme...

Cai o sol, como já queimado facho...
Do lado oposto espia a noite informe...
]Tu me perguntas se isto é belo?... e eu acho...

 

A DEUSA

 

O seu pescoço esplêndido e robusto

Implantado às espáduas fortemente,

Presta-lhe um ar olímpico e imponente;

De Vênus dá-lhe gesto altivo e augusto;

 

E sustém-lhe a cabeça bela: é justo,

Porque dos deuses vem; e se presente

No andar, na voz, no riso negligente:

Mete em tudo, que a cerca, estranho susto:

 

Tão grande e superior ela parece,

Que não é muito a admiração e o espanto:

Segue-se ao espanto o amor, ao amor a prece.

 

És tu, Helena, a deusa, o enleio, o encanto:

É de ti, que em mim só, todo um céu desce:

A ti meus olhos, como a um céu, levanto...

 

A LUÍS DE CAMÕES

Devias ter colhido estrelas luminosas
Para fazer o fogo enorme e criador,
E o bronze preparar das formas grandiosas
Da estátua do feroz e horrendo Adamastor.

Devias ter bebido às curvas graciosas
Do céu o leite doce e cheio de vigor,
Que sai dos seios nus das cintilantes rosas,
Para pintar Inês - a pérola do amor.

Devias ter sorvido as lágrimas da aurora,
Para a Vênus gentil pintar, quando ela chora
Perturbando no Olimpo os deuses imortais.

Mas para encher de sóis teu canto imorredouro
Devias ter roubado ao Deus a pena d'oiro,
Com que ele pinta o azul a traços colossais.

 

QUEIXA

Mulher, confias muito em tua eternidade:
Pensas que hás-de prender nas mãos a primavera,
Que as rosas da manhã durarão, que não há-de
Ter para ti o tempo o rugido da fera,

Que entre as garras mutila a carne sem piedade,
E os lírios brancos do rosto gentil lacera:
Entre um beijo e um sorriso aí ruge a mortandade
Dos sonhos d'oiro, que cria em nós a quimera!...

Hão-de fugir de ti, como ao inverno que chega,
Em longas cordas vão fugindo as andorinhas:
Cobrirão lençóis d'água o cadáver da veiga...

E então te lembrarás das lindas canções minhas,
Cheias daquele meigo olhar da noite meiga,
E para as quais o teu olhar de sol não tinhas.

 

O BELO FEMININO

És tu, beleza, a cortesã primeira,
És tu quem desce sobre o corpo dela
No dia em que era esplendia donzela,
E que a fizeste tua prisioneira.

Tu, não ela, tu és a verdadeira
Prostituída e vil: és tu quem gela
E mata d'alma a candidez singela,
Tu, beleza funesta e traiçoeira.

Por que não vestes só as almas castas?
Por que não deixas tu as almas mortas?
Por que não vais às regiões mais vastas?

Por que não foges para os céus? Suportas
Esses anjos sem luz, e não afastas
Quem vai bater ao céu de suas portas!...

 

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