GRANDES MESTRES
DA POESIA
FERNANDO PESSOA
MUITAS PESSOAS EM PESSOA
No dia 30 de novembro deste ano de 2001, fez 66 anos da morte
de Fernando Pessoa. Ao desaparecer, com 47 anos - ele nasceu em Lisboa, em 13
de junho de 1888 - deixava um rico espólio, em prosa e verso.
Para erguer seu insólito e complexo universo poético, Fernando
Pessoa parte do fingimento e da íntima associação entre
o pensar e o sentir, exprimindo-os em versos logo tornados verdadeiros emblemas:
"O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega
a fingir que é dor / A dor que deveras sente."
Decorrência imediata desses postulados e outros dispersos por sua vasta
obra poética e em prosa, constituindo um autêntico programa estético,
é a criação dos heterônimos. Distinguindo-se dos
pseudônimos, os heterônimos designam outras personalidades, arquitetadas
e/ou descobertas pelo poeta dentro do seu eu, ou, nas suas próprias palavras,
várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que
atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus
sentimentos e idéias, os escreveria. Ainda os chamou de "drama em
gente', com isso desejando indicar o fundo teatral, ou dramático, dessa
multiplicação em outros poetas, pondo gente em lugar de atos ou
cena.
Parece que o fenômeno da despersonalização ou simulação
em heterônimos ganha em ser interpretado à luz da teoria do conhecimento:
cada um deles corresponderia a uma visão de mundo, bastando para tal
que o eu do poeta mudasse o ângulo a partir do qual divisava a realidade.
Como se acionado opor múltiplas e simultâneas perspectivas, Pessoa
geraria outros poetas em número indeterminado. Mas, após certo
momento, a superposição de perspectivas, no todo ou em parte,
tornar-se-ia inevitável e mesmo previsível. Eis porque Fernando
Pessoa se desdobrou em três heterônimos - Alberto Caieiro, Álvaro
de Campos e Ricardo Reis, uma espécie de trinômio mágico
ou de cosmovisão básicas - e uma legião de semi-heterônimos,
como Bernardo soares, Antônio Mora, Vicente Guedes, etc.
O TRINÔMIO
Alberto Caieiro, o mestre desse drama em gente - drama no qual
se inclui o Fernando \pessoa ele mesmo, como se auto-intitulava, para se diferenciar
dos outros -, viveu quase toda sua vida no campo, foi o único poeta da
Natureza, apenas fez o curso primário, é poeta e nada mais, alma
simples, para quem há metafísica bastante em não pensar
em nada. Álvaro de Campos, engenheiro naval, é o vate moderno,
futurista, revoltado, expondo em largas odes a síntese de sua visão
das coisas e, por certo, de toda a produção de Pessoa, como se
este, por meio do heterônimo, revelasse o cerne de sua identidade perdida
ou jamais construída. Ricardo Reis, médico de profissão,
é o neoclássico, pagão da decadência, nostálgico
da harmonia universal, autor de odes epigramáticas.
A poesia que nasce desse jogo permanente de espelhos paralelos é da mais
alta qualidade estética e filosófica, a par com a de Camões
no espaço do Idioma, tornando o seu criador uma das mais sonoras vozes
poéticas desta centúria. Poesia de acentos épicos, fascina
pelo que diz das transformações culturais de nossos tempos e pela
beleza sutil que irradia: fala por nós, fala de nós e fala de
mundos que nossa ânsia de conhecimento não esgota, projetando-se
num futuro ainda mais longe de chegar. Se, para os navegadores antigos como
lembra Pessoa, navegar é preciso; viver não é preciso,
ler a sua poesia é preciso. Agora e sempre. (Massaud Moisés)
CORAÇÃO DE NINGUÉM
Repetidas vezes ao longo de sua obra, Pessoa afirmou ser ninguém.
Sinto que sou ninguém salvo uma sombra... Uma sombra no plural - dirá,
por outras palavras, noutros textos.
A sucessão das metáforas que constitui os poemas Impressões
do Crepúsculo e Hora Absurda visa a realizar o projeto sensacionista:
apresentar não as coisas, mas as nossas sensações das coisas.
A arte moderna é arte de sonho, declara Pessoa num escrito dessa época.
E tira daí conclusões: O poeta de sonho é geralmente um
visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente.
O interseccionismo impõe-nos a adaptação da afirmação
anterior: todo o estado de alma é não apenas uma paisagem, mas
a intersecção de duas paisagens.
O Sensacionismo a duas dimensões, chamado Interseccionismo, foi longamente
exercitado na série de poemas que constitui CHUVA OBLÍQUA, em
que o poeta tenta traduzir a complexidade da sensação pela sobreposição
de duas imagens - como duas fotografias tiradas com a mesma película.
Tentava Pessoa, com essas experiências, realizar uma poesia simultaneamente
objetiva e subjetiva e, por isso, superior à do Simbolismo, que era só
subjetiva, mas com a qual conservava inevitáveis traços de família.
Numa série de artigos publicados, em que proclamava a grandeza da Nova
Poesia Portuguesa - assim a chamou - Pessoa apontava como principal característica
de tal poesia a imagina;cão, isto é, a sua capacidade de pensar
e sentir por imagens.
É nestas duas primeiras etapas da viagem sensacionista que sente a tentativa
de metaforizar e mesmo alegorizar os estados de alma, quando não a própria
alma, a presença da cor (ausente na posterior poesia de Pessoa) e, sobretudo,
a presença de um tu feminino, mero suporte, no caso de Pessoa, do exercício
poético de plasticizar o impalpável.
Depois de abandonado o projeto interseccionista e esse programa da Nova Poesia
Portuguesa de sentir por imagens, a paisagem do plano oculto perde a forma e
a cor. Toda a presença passará a ser sinal duma ausência
ilocalizável, não suscetível de ser pensada por imagens.
A metáfora e a alegoria vão ceder lugar ao símbolo (que
para os gregos queria dizer parte visível dum todo ausente). Símbolos..
Tudo símbolos...
O Sensacionismo a três dimensões, também chamado de integral,
é a revelação do poeta dramático, que aspira a ver-se
em todas as dimensões, na presença verdadeiramente independente
de outras personagens. A obra de Pessoa apresentada como exemplo desse Sensacionismo
integral é o poema "O Marinheiro", composto em 1913. Mas em
breve e seguindo a divisa do Sensacionismo: sentir tudo de todas as maneiras
ou, por outras palavras, sê plural como o Universo!, o poeta vai projetar-se
noutros seres que se tornarão, segundo afirma, mais reais que ele próprio.
PLURAL
Ao longo de sua obra (ou de sua vida, o que para ele significava
o mesmo), Pessoa repetiu, de variadas maneiras, a afirmação já
citada: Sinto que sou ninguém...
E pela pena de Bernardo Soares, semi-heterônimo prosador, por cuja interposta
pessoa escreveu, ao longo da vida, o diário que e seu próprio
nome não manteve. Para se arrancar à atração do
abismo, no fundo qual se sente Ser (obsessivamente repete: eu, verdadeiramente
eu sou...), para ter um corpo com que possa sentir, pensar, querer - esca[a-se,
na vertical, para fora, voa outro, expressão que usa para explicar o
desdobramente heteronímio.
Multipliquei-me para me sentir, afirma, desta vez, pela voz de Campos.
Os outros, através dos quais se multiplica e se projeta para fora, são
as paredes desse poço sem muros que confessa ser. Alberto Caieiro e Ricardo
Reios dão-se mesmo as mãos para formar uma espécie de parapeito
de proteção.
A criação dos heterônimos veio funcionar como uma saída
do poço, no sentido contrário ao dessa atração do
abismo, desse centro do abismo que, fora do espaço e do tempo, se sente
Ser. Mas essa voz abissal que repete, como quem procura, eu, verdadeiramente
eu... continua a ressoar, à procura de quem verdadeiramente é,
por mais que Reis e Caieiro, na sua função de protetores, a tentem
fazer calar.
A multiplicação por três (número da criação,
da unidade, escreveu Pessoa) anulava, de certa maneira a permanente divisão
do ser em dois (número da vida, da desunião, como também
indicou).
De fato, os heterônimos verdadeiramente acabados, a quem seu autor reconhece
existência própria, foram três: Alberto Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos. Os outros não chegaram a separar-se inteiramente
do seu criador como seres independentes.
Só me encontro quando de mim fujo, escreveu Pessoa. Mas esse fugir de
si próprio, esse voar outro é para se procurar e encontrar afinal
em seres cadas vez mais afastados do ser proscrito, exilado, encarcerado no
que chama a prisão da personalidade.
ÁLVARO DE CAMPOS
O que há mais perto do ser um sofrimento que Pessoa em
seu próprio nome confessa ser é Álvaro de campos. Até
fisicamente é o retrato (melhorado) de Pessoa, se atendermos às
indicações dadas por este na célebre carta a A. C. Monteiro:
tipo de judeu português, alto (mais dois centímetros do que eu)
e tendente a curvar-se. Como Pessoa, viveu no estrangeiro, fez viagens de longo
curso (em Opiário, Passagem das Horas, Ode Marítima). É
dele que se serve para fingir a dor que deveras sente (utilizando a expressão
de Pessoa no poema AUTOPSICOGRAFIA). Como Pessoa, sofre a tortura de se sentir
agrilhoado ao seu eterno outro, isto é: de ser sempre simultaneamente
dois. E, como ele, tenta a libertação de se desdobrar em vários.
A qualidade verdadeiramente dramática dos monólogos de Campos
vem de que ele põe em cena essa difícil relação
do ser partido em dois. "TABACARIA" e "ODE MARÍTIMA"
são, diferentemente, dois bons exemplos desse jogo dramático:
do eu que inventa e invoca o seu que põe a representar no palco dum poema,
no aqui e agora duma situação. Como os que invocam espíritos
invoco / a mim mesmo e não encontro nada - confessa esse eterno outro
no poema TABACARIA. Neste poema, esses outros, na pele de quem ele se quer evadir
da condenação ao degredo que diz sentir pesar-lhe em cima, não
se manifestam. Mas o poema não é, por isto, menos dramático:
faz-nos assistir ao defasamento do eterno outro que, de fora, assiste ao comportamento
desse que se vê ser e o comenta: ser perplexo, dividido entre a lealdade
que deve / À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora
/ E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real
por dentro.
Na ODE MARÍTIMA três personagens diferentes acorrem sucessivamente
à invocação feita pelo eterno outro que, quando a linguagem
se torna gesto e grito, consegue fazer corpo com essa personagem - ator (de
que é médium - encenador). A primeira personagem a produzir-se
nesse palco em que se tornou foi o Grande Pirata que encarna a violência
do estar, levada às suas últimas conseqüências, mas
que em breve concede o lugar a uma presença que é o contrário,
vinda de além da aparência das coisas. O grito eterno e noturno,
o sopro fundo e confuso da VOZ ABSOLUTA, a Voz sem Boca. Uma terceira personagem
virá, finalmente, produzir-se nesse palco: a do homem comum que dorme
sono, come comida, bebe bebida, e por isso tem alegria. E é o eterno
outro que fecha melancolicamente o espetáculo, mostrando o palco vazio
donde as ficções desapareceram - a hora real e nua como um cais
já sem navios.
Campos se multiplica, como Pessoa, precisamente para anular a permanente divisão
do ser: Quanto mais eu sinta como várias pessoas, / Quanto mais personalidade
eu tiver, / Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, Mas análogo
serei a Deus, seja ele quem for.
RICARDO REIS
Para fugir de fato a si próprio - e poder assim encontrar-se
- Pessoa concebeu Caeiro e Reis, dois seres que não pertencem ao universo
espiritual do Cristianismo e de todas as culturas que dele decorrem, dois seres
pagãos tentando a serenidade de simplesmente estar e de, como os deuses,
ser apenas o seu exterior - ou, por outras palavras, isto é, por outros
versos, não terem corpo e alma mas só corpo. Sendo por isso, perfeitos.
Segundo Reis, os deuses são superiores porque não tentam descortinar
o que existe para além da aparência das coisas, não tentam
ver em cada coisa sinal dum além, isto é, um símbolo (parte
sensível dum todo oculto).
Para os deuses as coisas são mais coisas, diz Ricardo Reis. E acrescenta:
Não mais longe eles vêem, mas mais claro
Na certa Natureza
E a contornada vida...
(...)
Aprende, pois, tu, das cristàs angústias,
Ó traidor da multíplice presença
Dos deuses, a não teres
Véus nos olhos nem na alma.
Ricardo Reis aparece como um coadjuvante do Mestre Caeiro, o
que exprime com simplicidade infantil, numa linguagem oral, esses preceitos
a que Reis dará a forma disciplinada, tensa, duma ode clássica.
Ajuda Caeiro na difícil tarefa de curar os discípulos, animais
doentes como todos os homens, mas enquanto que o Mestre comunica a sua natural
sabedoria com maternal naturalidade de regaço, Reis funciona, por assim
dizer, como uma presença paternal: rígida, normativa, disciplinadora.
Trata-se, aliás, duma auto-disciplina: é o seu próprio
medo, afinal, de viver e de morrer que Reis tenta dominar.
Reis confessa pressentir que acima de sua cabeça agem outras presenças,
da mesma forma que reconhece que há outros eus a quererem manifestar-se
nesse lugar que se sente ser.
Vivem em nós inúmero.
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Mas, ao contrário de todos esses outros das cristãs angústias que quer ajudar a tratar, reivindica a sua superioridade, a sua unidade, fazendo-os calar:
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.
ALBERTO CAEIRO
Segundo Álvaro de Campos, Caeiro é mais do que
pagão: é o próprio paganismo. É o único que
nunca se desdobra, que se mantém uno, conseguindo assim realizar o preceito
exposto no poema citado para eliminar o eterno outro e manter-se isolado, sereno
e forte. Por isso é o Mestre. Cirurgião lhe chamaram também
os seus discípulos, porque os quer operar a todos do apêndice da
alma - para serem, como os deuses, apenas corpo, tendo a divindade da própria
carne divina. Por isso a receita é tão simples: Não pensar,
porque pensar é estar doente dos olhos; ver, apenas ver.
Caeiro ocupa o degrau mais alto da despersonalização, o que está
mais perto da inocência cósmica. Por isso representa para uma infância
e uma libertação. Também lhe chamaram bálsamo. Pretende
ser, como a Ceifeira (do poema ELA CANTA, POBRE CEIFEIRA), uma presença
de serena alegria, de alegre inconsciência.
Caeiro foi criado para encarnar a saúde do mais perfeito dos animais,
a ingenuidade dos meninos e o regaço imenso da Mãe Terra, preservadora
da vida em vários mitos contra as humanas iras dos deuses machos seus
esposos.
Caeiro vive no alto dum monte e apascenta, metaforicamente, sensações.
É um caminho a subir, no sentido inverso dessa atração
do poço de negro lume em que Pessoa (em seu próprio nome) confessa
afundar-se para Deus. Caeiro representa uma chamada à superfície
do claro dia exterior.
Quando é que eu serei da tua cor
Do teu plácido e azul encanto
Ó claro dia exterior?
Caeiro é dessa cor e desse encanto. É o único a quem o seu criador atribui cor aos olhos: azuis, precisamente.
QUATRO POETAS EM FERNANDO PESSOA
É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes
poetas em um dia. Foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março
de 1914. Fernando Antonio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana
e algo lúgubre a 13 de junho de 1888.
O exército, o serviço público e a música figuravam
no passado da família. Já em janeiro de 1894, após a morte
do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar "heterônimos"
- "personas" imaginárias para povoar um "Teatro íntimo
do eu". O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício.
Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban,
África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search,
invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o
horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia
e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca
de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley
e Keats, de Carlyle, Tennyson e Browning.
Em 1905, o jovem empresário de "eus" retornou a Lisboa. Logo
abandonou a universidade tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa
escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu
como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas
em inglês e francês. De vez em quando, traduzia uma antologia literária.
Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres
da modernidade urbana, como James Joyce, Ítalo Svevo (Trieste e Lisboa
partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Franz Kafka.
Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês,
à exceção de seis sonetos portugueses. O ano de 1912 marcou
uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos,
conventículos e publicações efêmeras de cunho lítero-estético-político-moral
que surgiram da crescente crise social portuguesa. (77 mil habitantes emigraram
só naquele ano). A vida íntima de Pessoa - a alternância
entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical - encontrou
expressão num secreto "Livro do Desassossego" e no primeiro
rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência
quadri-partida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje
ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da história
da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935), Pessoa fala de um "êxtase
cuja natureza não consegui definir (...) aparecera em mim o meu mestre".
Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram,
"imediatamente e totalmente", seis poemas de Fernando Pessoa ele só.
Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado
de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: "De
repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me
impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina
de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a "Ode Triunfal"
de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então uma "coterie" inexistente. Fixei aquilo tudo em
moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi,
dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios,
e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve.
Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda
se passa".
Pseudônimos, "noms de plume", anonimato e toda forma de máscara
retórica são tão velhos quanto a literatura. Os motivos
são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina
à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios
distúrbios de personalidade. O "companheiro secreto" (íntimo
de Conrad), o "duplo" prestativo ou ameaçador, é um
motivo recorrente - veja-se Dostoievski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim
também é o tema - antigo como a rapsódia homérica
- da poesia "tomada sob ditado", sob o assalto literal e imediato
das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados.
Nesse sentido de "inspiração", de "ser escrito
em vez de escrever", as técnicas de escrita automática antecedem
em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente
contra si próprios, contra sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto
de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em
legião, pode ser festiva, como em Whitman, ou sombriamente auto-irônica,
como em Kierkegaard.
Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa
jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou
sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada,
o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos
os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim
porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar
sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação
da modernidade, "Eu é um outro".
Entretanto o caso de Pessoa permenece sui generis. Ele não tem nenhum
paralelo próximo, não apenas por causa de sua estrutura quadri-partida,
mas também por diferenças marcantes entre suas quatro vozes. Cada
uma tem sua própria biografia e físico detalhados. Caeiro é
loiro, pálido e de olhos azuis; Reis é de um vago moreno mate;
e "Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português,
cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo",
como nos diz Pessoa. Caeiro quase não dispôs de educação
e vive de pequenos rendimentos. Reis, educado num colégio de jesuítas,
é um médico auto-exilado no Brasil desde 1919, por convicções
monárquicas. Campos é engenheiro naval e latinista.
O inter-relacionamento dos três, seja na atitude ou no estilo literário,
é de uma densidade e sutileza amesianas, a exemplo de seus vários
laços de parentesco com o próprio Pessoa. O Caeiro em Pessoa faz
poesia por pura e inesperada inspiração. A obra de Ricardo Reis
é fruto de uma deliberação abstrata, quase analítica.
As afinidades com Campos são as mais nebulosas e intrincadas. "É
um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é,
não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela.
Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade".
A língua de Campos é bastante parecida à de Pessoa; Caeiro
escreve um português descuidado, por vezes com lapsos; Reis é um
purista cujo linguajar Pessoa considera exagerado.
O labirinto é explorado na introdução de Octávio
Paz a "A Centenary Pessoa" ("Um Pessoa Centenário"),
uma antologia com bela produção editada por Eugênio Lisboa
e L. C. Taylor. Paz vê Caeiro, Reis e Campos como "os protagonistas
de um romance que Pessoa jamais escreveu". Pessoa não é,
entretanto, "um inventor de poetas-personagens, mas um criador de obras
de poetas", argumenta Paz. "A diferença é crucial".
As biografias imaginárias, as anedotas, o "realismo mágico"
do contexto histórico-político-social em que cada máscara
se desenvolve são um acompanhamento, uma elucidação para
os textos. O enigma da autonomia de Reis e Campos é tal que, vez por
outra, eles chegam a tratar Pessoa com ironia ou condescendência. Caeiro,
por usa vez, é, como vimos, o mestre cuja brusca autoridade e salto para
a vida generativa desencadeiam todo o projeto dramático. Paz distingue
com acurácia estes fantasmas animados.
Caeiro é umagnóstico que deseja anular a morte por negar a consciência.
Sua postura é de um paganismo existencial. Há em seus textos e
sua "persona" retoques de quietude e sagacidade orientais. Sua fraqueza,
sugere Paz, é a qualidade esfumada da experiência que alega encarnar.
Ele morre jovem. Como Caeiro, Campos pratica versos livres e lida de modo irreverente
com o português clássico ou castiço. Ambos são pessimistas,
apaixonados pela realidade concreta. Mas Caeiro é um ingênuo que
cultiva a abstinência e o retraimento filosóficos, ao passo que
Campos e um dândi peregrino.
De novo, é Paz quem formula de modo incisivo: "Caeiro pergunta-se:
o que sou? Campos: quem sou?". Para Campos, essa questão é
quase abafada pelo clamor da máquina, pelo bramido da nova tecnologia
na fábrica e nas ruas da metrópole moderna. Partindo da premissa
de que a única realidade é a sensação, Campos acabará
por se perguntar se ele próprio é real (uma modulação
irônica, em vista de seu primeiro e mais celebrado poema, a "Ode
Triunfal").
Ricardo Reis é o mais complexo destes disfarces. Anacoreta, ele privilegia
os gêneros neoclássicos altamente elaborados, como o epigrama,
a elegia e a ode.
Raríssima mescla de esteta estóico, a perfeição
técnica de seus poemas curtos busca a tranqüila resignação
ao destino. Pessoa chama atenção para as obras não publicadas
de Reis; elas incluem "Um Debate Estético entre Ricardo Reis e Álvaro
de Campos" e notas críticas sobre Caeiro e Campos, qualificadas
por Pessoa como "modelos de precisão verbal e equívoco estético".
(Tão encantadoramente tortuosos são o dédalo e quarto de
espelho de Pessoa que mesmo um Borges ou um Paz, ambos mestres em labirintos,
parecem simples em comparação). E a respeito do titereiro ele
próprio (apesar dessa comparação grosseira)?
Paz o imagina como essencialmente ausente: "Ele nunca aparecerá:
não há um ouro. O que aparece insinua a si próprio sua
alteridade, que não tem nome, que não é dito e nossas pobres
palavras invocam. Isto é poesia? Não: poesia é o que resta
e nos consola, a consciência das ausências. E, mais uma vez, quase
imperceptivelmente, um rumor de algo. Pessoa ou a iminência do desconhecido".
A silhueta que Paz traça de Pessoa, sendo palavras de despedida tão
sutis, correm o risco de obscurecer um fato básico. Do jogo espectral
dos heterônimos emerge uma poesia com força de primeira grandeza.
Pessoa é com justiça arrolado entre as 26 figuras centrais do
sugestivo, embora um tanto pueril, "Cânone Ocidental" (de Harold
Bloom).
O português é um língua resistente. Suas guturais o fazem
como que o membro eslavo da família das línguas românticas.
Na ausência, Ademias, de uma tradução adequada para o inglês,
dos Lusíadas, de Camões, essa grande epopéia de um império
trágico e conquistador, para a maioria de nós a literatura portuguesa
(que inclui, naturalmente, a do Brasil) permanece estranha.
Somos por isso gratos às traduções e seleções
de nosso quarteto a cargo de Keith Bosley. Primeiro, a voz de Pessoa: "Não
sei quem me sonho...; "Ditosos a quem acena / Um lenço de despedida!";
"Dá a surpresa de ser". Ou o característico "O
mais do que isto ; "É Jesus Cristo, / Que não sabia nada
de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca..." Há este
registro irônico e incerto, com seu constante apelo ao mar, a um Portugal
quase liberto de suas amarras européias:
"O mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!
/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão
rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó
mar" / Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena.
/ Quem quer passar além do Bojador /Tem que passar além da dor.
/ Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu".
Ouvimos a seguir a seguir a sensualidade filosófica de Caeiro: "Não
me importo com as rimas. Raras vezes / Há duas árvores iguais,
uma ao lado da outra. / Penso e escrevo com as flores têm cor / Mas com
menos perfeição no meu modo de exprimir-me / Porque me falta a
simplicidade divina / De ser todo só o meu exterior".
Há laconismos inesquecíveis (uma distante melodia de Emily
Dickinson): "Li hoje quase duas páginas / Do livro dum poeta místico,
/ E ri como quem tem chorado muito". Caeiro saúda o transitório.
Para ele a "recordação é uma traição
à natureza", já que ela muda constantemente. Ele ordena aos
pássaros em vôo que lhe ensinem a arte de passar sem deixar rastro.
A busca da individualidade, de verdades absolutas - o modelo platônico
tão peremptório na poesia ocidental - é meramente "uma
doença das nossas idéias". Suas reflexões sobre a
morte e a posteridade são dotadas de um orgulho agridoce pois ele foi
"gentil como o sol e a água" e por fim, veio-lhe o "sono
como a qualquer criança".
Absolutamente diverso é Ricardo Reis: rato de biblioteca, entendido em
mitologia antiga, perito em formas métricas elaboradas e estilo mandarim.
De certo modo, uma versão mais austera de Swinburne e Gautier, de ouvidos
atentos e imitando "O ritmo antigo que há em pés descalços,
/ Esse ritmo das ninfas repetido". Um esteta "fin de siéce"
que prefere rosas à pátria e vê em Cristo não "mais
que um deus a mais no eterno". Todavia um poeta lírico capaz desta
rara mordacidade epigramática que conhecemos também de Walter
Savage Landor (talvez o verdadeiro modelo de Reis):
"Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele,
Preservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa -
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes'.
Campos é o retórico loquaz, o bardo à maneira clássica.
É capaz de ridicularizar-se com ousada satisfação. Sua
"Ode Triunfal" pode ser equiparada a "A Ponte", de Hart
Crane, como um dos textos-chave das paisagens industriais da modernidade. Como
o ranzinza e fantasmagórico Pessoa deve ter refugido da robusta democracia
de Campos! Como Reis, o alusivo helenista vitoriano, deve ter-se esquivado!
"Ah, e a gente ordinária e suja,
que parece sempre a mesma,
que emprega palavrões
como palavras usuais,
cujos filhos roubam às portas das mercearias
e cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o!
masturbam homens de aspecto
decente nos vãos da escada."
"Tabacaria" conta entre os mais prestigiados poemas da língua.
Não é cinismo, mas antes uma espécie de revigorante desalento
que ordena à pequena garota "comer chocolates", pois "que
não há mais metafísica no mundo senão chocolates",
após o que o poeta deita o papel laminado "para o chão, como
tenho deitado a vida". E já que "toda gente sabe como as grandes
constipações / Alteram todo o sistema do universo / Zangam-nos
contra a vida, / E fazem espirrar até à metafísica",
o poeta receita um único remédio: "Preciso de verdade e da
aspirina". Hazlit fala com reverência de uma sensibilidade capaz
de imaginar e dar articulação a um lago e a uma Cordélia.
A simples amplitude de vozes e temperamentos alternados de Pessoa dificilmente
é menos admirável. Essa homenagem centenária elegantemente
ilustrada oferece passagens representativas da prosa de Pessoa acrescidas de
críticas, perfis e documentos. Omitido porém foi o leviatânico
drama filosófico Fausto".
Pessoa começou a trabalhar nesta suma em 1908 e - em analogia a Goethe
- continuou a elaborá-lo até 1933. Há críticos,
notadamente na França, que o tomam por uma obra-chave, um arquipélago
ainda a ser descoberto. Os editores incluíram duas imaginárias
entrevistas póstumas, mas o supra-sumo nessa veia parece que lhes passou
despercebido: "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago,
está ente os melhores romances da recente literatura européia.
O livro fala do regresso de Ricardo Reis de seu exílio no Brasil, de
Eros e fascismo em Lisboa e do encontro entre Reis e seu genitor morto. Nada
mais perceptivo foi escrito sobre Pessoa e suas sombras contrastantes. Nas palavras
de Fernando Pessoa:
"Se as coisas são estilhaços
do saber do universo,
seja eu os meus pedaços,
impreciso e diverso.
Eles foram e não foram."
(Do artigo "Fernando Pessoa e seus heterônimos", de Geoge Steiner,
publicado no Caderno Mais, Folha de São Paulo)
A MÚSICA EM PESSOA
Por Luiz Carlos Amorim
Garimpando pelos meus guardados, mais exatamente meus aposentados
discos de vinil - não há lugar em apartamentos para se guardar
qualquer coisa - achei mais uma relíquia. Primeiro foi "O Menino
Poeta", vocês se lembram? Poesia de grandes poetas cantada e declamada
para crianças desde a mais tenra idade.
Agora foi a vez um LP (que coisa antiga, não é?) com músicas
cujas letras são poemas de Fernando Pessoa e seus heterônimos.
O disco tem o título de "A música em Pessoa" e traz
quatorze poemas musicados por Tom Jobim, Sueli Costa, Francis Hime, Ritchie,
Milton Nascimento, Edu Lobo, Olívia Byington, Arrigo Barnabé,
Dori Caymmi e Nando Carneiro.
Os poemas do grande poeta português são "O rio da minha aldeia",
assinado por Alberto Caieiro, "Segue o seu destino", assinado por
Ricardo Reis, "Glosa", "Meantime", "Emissário
de um rei desconhecido", "Meus pensamentos de mágoa",
"Saudade dada", "Na ribeira deste rio", "Cavaleiro
Monge", "O menino de sua mãe", "Quem bate a minha
porta", assinados por Fernando Pessoa, "Passagem das horas",
"Cruzou por mim, veio ter comigo numa rua baixa", assinados Álvaro
de Campos, "Livro do desassossego", assinado por Bernardo Soares e
interpretados por Tom Jobim, Nana Caymmy, Francis e Olívia Hime, Ritchie,
Eugênia Melo e Castro, Marco Nanini, Edu Lobo, Olívia Byington,
Arrigo Barnabé, Dori Caymmi, Vânia Bastos e Jô Soares.
É poesia cantada e declamada, uma seleção de grandes poemas
do grande Fernando Pessoa e interpretações deliciosas de grandes
cantores da Música Popular Brasileira e grandes atores, também.
Um disco eterno, para se ouvir e sentir. Sempre. Poder-se-ia dizer que é
um livro sonoro, que nos possibilita apreciar a poesia universal de Pessoa e
ao mesmo tempo a boa música de bons compositores. Um casamento perfeito.
Uma obra prima.
O disco é de 1985, e deve existir em CD.
Pessoa:à mesa com o poeta fingidor
Em seus versos, o poeta Fernando Pessoa se refere a arroz-doce,
bifes, bolos e costeletas de porco.
Era um sujeito alto e franzino, tinha pernas longas e o tórax pouco desenvolvido,
embora praticasse ginástica sueca. Possuía o rosto comprido e
as mãos delgadas. Caminhava em passos rápidos e desconjuntados.
Vestia ternos cinzentos, pretos ou azuis. Usava chapéu inclinado para
o lado direito. Os óculos eram redondos, com lentes grossas, que corrigiam
a miopia e escondiam um pouco os inexpressivos olhos castanhos. Fumava demais,
cerca de 80 cigarros por dia, e adquirira o característico pigarrear
dos tabagistas. Tomava diariamente vários cafés e diversos tragos
de bagaço, nome popular da bagaceira, aguardente feita com o bagaço
da uva que acabou de ser usada para o vinho.
Colecionava postais e selos, conseguindo reunir certas relíquias. Detestava
tirar fotografias, abominava falar ao telefone e se apavorava com trovões
- nas tempestades, chegava a se refugiar debaixo da mesa. Tinha comportamento
esquisito e enfrentou crises de depressão, uma delas quando a mãe,
viúva de seu pai, casou pela segunda vez. Apesar de tímido e introspectivo,
possuía bons amigos. Ria pouco, embora revelasse certo humor e fina ironia.
Nunca deixou de ser supersticioso. Sentia-se atraído pelo oculto, mantinha
com a vida uma relação metafísica. Sonhador incansável,
alimentava grandes projetos, apesar de contar com pouco dinheiro, pois trabalhava
como tradutor e correspondente em escritórios comerciais, trocando um
salário apertado pelo outro. Que se saiba, teve uma única namorada,
aos 31 anos, de quem recebeu a primeira carta de amor, e morreu solteiro.
Assim os biógrafos traçam o perfil de Fernando Antônio Nogueira
Pessoa (1888-1935), um dos mais brilhantes poetas portugueses e uma das maiores
figuras da literatura universal. Nascido e falecido em Lisboa, sempre morou
na cidade natal, exceto os nove anos de infância e adolescência
passados em Durban, na África do Sul, em companhia da mãe, do
padrasto e dos quatro meio-imãos. Não chegou a desfrutar amplamente
a merecida fama, porque só publicou dois livros: 35 Sonnets, em inglês,
sua segunda língua, e os versos de Mensagem, obviamente em português,
editados por insistência dos colegas.
Sabia que lançava uma estética poética inovadora. Assegurava
não haver público para seus versos. Estava certo.
Na condição de figura central da revista Orfeu, Fernando Pessoa
ajudou a introduzir o futurismo em Portugal. A crítica especializada
recebeu o primeiro número da publicação, em 1915, com uma
saraivada de pedras. Também lançou as idéias do "interseccionismo",
o "sensacionismo" e o "paulismo". Só após
a edição póstuma de suas Obras Completas, iniciada na década
de 40, é que o grande púbico descobriu o talento extraordinário
de Fernando Pessoa.
Hoje, estes versos de sua autoria são de domínio público:
"O poeta é um fingidor. Finge tão completamente/ Que chega
a fingir que é dor/ A dor que deveras sente".
O escritor português Luís Machado, no livro À Mesa Com Fernando
Pessoa (Pandora Edições, Lisboa 2001), reconstituiu a peregrinação
cotidiana do "poeta fingidor" pelos cafés e restaurantes da
Baixa - o fervilhante coração de Lisboa, construído depois
do terremoto de 1755 - onde ficavam os cafés e restaurantes que ele freqüentava.
Seus balcões e mesas se prestavam a múltiplas funções.
Serviam para beber ou comer, para trocar idéias estéticas ou escrever
poemas. Era bastante assíduo ao Café Restaurante Martinho da Arcada.
Utilizava o local como uma espécie de escritório de fim de tarde.
Chegava ali por volta das 7 da tarde, com uma pasta debaixo do braço.
"Sentava-se à mesa (quase sempre a mesma) onde espalhava vários
maços de papéis", conta Luís Machado. Pedia o primeiro
café, o bagaço inicial e começava a escrever. Outras vezes
parecia entrar em transe, fixando um ponto indeterminado no teto do salão,
alheio ao que sucedia em volta. A família Mourão, dona da casa,
jantava numa mesa próxima. Ao vê-lo entornar tantos cafés
e bagaços, sem comer nada, convidava-o para acompanhá-la. Quando
Fernando Pessoa aceitava, tomava uma sopa juliana e saboreava bacalhau e uns
ovos estrelados com queijo que velho Mourão, seu admirador, inventou
para ele.
Os heterônimos - personagens imaginários, dotados de estilos diferentes,
através dos quais o "poeta fingidor" passou a se expressar
literariamente - podem ter nascido na Cervejaria Jansen. Na mesma casa e época,
Fernando Pessoa concebeu a revista Orfeu, em parceria com Mário de Sá-Carneiro,
outro poeta português. Ambas as criações teriam nascido
entre garfadas do famoso bife da casa, que toda Lisboa comentava. Aqui vale
fazer um parênteses.
Fernando Pessoa escreveu em seu nome e no dos heterônimos Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Criou ainda um grupo de semi-heterônimos.
O sentido dessas despersonalizações provoca debates. Em todo o
caso, era um fingimento prodigioso. No exemplar verbete que a Enciclopédia
Mirador Internacional dedica a Fernando Pessoa, Caeiro é apresentado
como "poeta das sensações puras, naturalista e cético,
hostil às regras métricas"; Reis, como "pagão
e estóico, neoclássico que escreve odes horacianas e construção
elíptica (...), sustenta a convicção de que o único
caminho a se tomar na vida é o de afrontar a sorte com o silêncio";
Campos "cultiva a audácia e a energia, mas contraditoriamente faz
a apologia do anti-heroísmo".
A comida e a bebida não mereceram de Fernando Pessoa o mesmo tratamento
voluptuoso dado pelo romancista português Eça de Queirós
(1845-1900). Mas Luiz Machado encontrou nos seus versos eloqüentes referências
ao arroz-doce, bifes, bolos, chocolate, costeletas de porco, dobrada (dobradinha),
figos, laranjas, melão, nozes, ovos, queijos, saladas e sardinhas, entre
outros alimentos. "Se Fernando Pessoa não faz muitas alusões
gastronômicas na sua obra é, decerto, mais por uma questão
de pudor do que por indiferença", conclui o escritor.
No seu tempo, os cafés e restaurantes de Lisboa, que atraíam a
nata da intelectualidade, eram centros de sabedoria, libação e
comilança. Nossa fonte continua a ser Luís Machado. No Leão
de Ouro, Fernando Pessoa tomava sopa de camarão e saboreava linguado
frito. Nos Irmãos Unidos, melão com presunto, ovos mexidos com
chouriço e lombo de porco à galega. No La Gare e na Brasileira
do Chiado - cuja calçada ao lado exibe a famosa estátua do poeta
sentado junto a uma mesinha e uma cadeira vazia para o turista sentar e ser
fotografado em sua companhia -, bifes e ovos. No Hotel Alliance, galo estufado
com ervilha e pratos de inspiração francesa. E aí por diante.
Quando morou em Durban, Fernando Pessoa apurou o paladar. Seu padrasto era cônsul
de Portugal e, em função do cargo, recebia personalidades à
mesa. Ali conheceu especialidades diferentes, entre as quais o caril, a deliciosa
combinação de temperos indianos que os ingleses difundiram no
mundo.
Encantou-se com os efeitos de seu emprego. Ao voltar para Lisboa, aos 17 anos,
decepcionou-se com o caril oferecido pelos restaurantes da cidade, criticando
o fraco sabor picante. Na capital portuguesa, enquanto viveu com a mãe,
tomou sopa de camarão, vichyssoise, bolinhos de bacalhau, carne recheada,
arroz-doce e leite creme. Um dos pratos amados: costeletas de porco à
lisboense, com azeitonas pretas e pimentões em conserva.
No ramo das bebidas, Fernando Pessoa sempre abusou do bagaço. Enquanto
conviveu com Sá-Carneiro - que se suicidou em Paris, interrompendo sólida
amizade - experimentou o absinto. Houve um período em que preferiu o
uísque.
Apreciava os vinhos Moscatel e do Porto, bem como alguns brancos e tintos de
mesa. No primeiro caso, destacavam-se o Bucelas e o Gaeiras; no segundo, o áspero
e tânico Colares, no qual se iniciou por influência do irmão
do padrasto, um general que o introduziu, ainda adolescente, nas noites da boemia
lisboeta. Não importa se, no final da vida, bebeu cada vez mais e morreu
de complicações hepáticas aos 47 anos. A obra genial do
"poeta fingidor" apagou as fraquezas do homem.
FERNANDO PESSOA - CRONOLOGIA
13 de junho de 1888. Nasce Fernando Antônio
Nogueira Pessoa, no quarto andar, esquerdo do Largo de São Carlos, número
4, às 3 horas da tarde.
1889. Data do suposto nascimento de Alberto Caeiro.
Janeiro de 1893. Nasce Jorge, irmão de Fernando Pessoa.
13 de julho de 1893. Falece Joaquim de Seabra Pessoa, pai de Fernando
Pessoa, com 43 anos.
2 de janeiro de 1892. Falece o irmão Jorge. Conhecem-se D.Maria
Madalena Pinheiro Nogueira Pessoa, mãe do poeta, e o comandante João
Miguel Rosa, futuro padrasto deste. Fernando Pessoa cria o seu primeiro heterônimo
- O Chevalier de Pas.
Junho de 1895. João Miguel Rosa é nomeado cônsul
interino em Durban(África do Sul), para onde parte no mês seguinte.
26 de julho de 1895. Escreve Fernando Pessoa a sua primeira poesia, a
quadra "A minha querida mamã".
30 de dezembro de 1895. Casam-se, por procuração, a mãe
do poeta e o comandante João Miguel Rosa, na igreja de São Mamede.
Substitui o noivo o seu irmão, o general Henrique Rosa.
6 de janeiro de 1896. Acompanhados do Tio Cunha, partem para África
D.Maria Madalena e o filho Fernando Antônio. Fernando Pessoa, vai freqüentar
o convento de West Street, em Durban, onde aprende as primeiras noções
de inglês e faz a primeira comunhão.
27 de novembro de 1896. Nasce Henriqueta Madalena, primeira filha do
segundo casamento de D. Maria Madalena.
22 de outubro de 1898. Nasce Madalena Henriqueta, Segunda filha do casal
Miguel Rosa.
11 de janeiro de 1900. Nasce Luís Miguel Rosa, terceiro filho
do casal.
25 de junho de 1901. Falece Madalena Henriqueta. Escreve poesias em inglês,
em agosto deste; vai em visita a Portugal. O padrasto entra em gozo de licença
de 1 ano. Acompanham-no sua mulher, o enteado, a filha Henriquta Madalena e
o filho Luís Miguel. No mesmo barco transportam o corpo da filha falecida.
17 de janeiro de 1902. Nasce João, o quarto filho do casal Miguel
Rosa.
20 de fevereiro de 1904. Data do ofício em que lhe é comunicado
que ganhou o prêmio Rainha Vitória, concedido ao seu ensaio em
inglês, prova do exame de admissão à Universidade do Cabo
da Boa Esperança, realizado no ano anterior.
16 de agosto de 1904. Nasce outra filha do casal Miguel Rosa, Maria Clara.
Agosto de 1905. Parte sozinho para Lisboa, a bordo do navio alemão
Herzog, confiado aos cuidados de um oficial de bordo, a fim de matricular-se
no curso superior de letras, indo viver com a avó Dionísia e as
duas tias, na rua da Bela Vista, 17. Lê autores ingleses, especialmente
Milton. Conhece Baudeleire, Cesário Verde e sente influência de
"subpoetas portugueses" lidos na infância. Continua a escrever
poesia e prosa em inglês.
Setembro de 1906. Partem para Portugal em gozo de férias o comandante
João Miguel Rosa e a família. Chegam em outubro e instalam-se
na Calçada da Estrela, 100 para onde o poeta se muda. Em outubro, matricula-se
no curso superior de letras de Lisboa. No dia 11 de dezembro. Falece em Lisboa,
Maria Clara, irmã do poeta.
17 de maio de 1907. É neste ano, por altura da greve de estudantes,
provocada por uma medida de João Franco, que o poeta abandona o curso
superior de letras. Em agosto, vai a Portoalegre comprar matéria para
instalar em Lisboa uma tipografia. Monta uma tipografia na Rua da Conceição
da Glória, 38 - quarto andar, que dá o nome de "Empresa Íbis
- Tipografia Editora - Oficinas a Vapor", que mal chega a funcionar.
1911. Estabelece-se em Lisboa o inglês Killoge, que organiza uma
antologia de autores universais, em tradução portuguesa. Fernando
Pessoa é encarregado de traduzir os poetas.
Janeiro de 1912. É fundada a Renascença Portuguesa, no
Porto. Em abril, Fernando Pessoa publica em A Águia, órgão
da Renascença Portuguesa, o seu primeiro artigo, "A Nova Poesia
Portuguesa Sociologicamente Considerada". Em maio, publica na mesma revista,
o seu segundo artigo, "Rescindindo". Nasce Ricardo Reis na mente do
poeta. Em setembro. Carta-réplica ao Dr. Adolfo Coelho, publicada no
jornal República. Em novembro, publica em A Águia, em três
fascículos seguidos, o seu estudo "A Nova Poesia Portuguesa em seu
Aspecto Psicológico". Depois de Ter vivido algum tempo num rés-de-chão
da rua da Glória, 4, muda-se para a rua do Carmo, 18 - primeiro andar,
e daí para a casa de sua tia, D. Ana Luísa Nogueira de Freitas,
na rua de Passos Manuel, 24 - terceiro andar.
Janeiro de 1913. Projeta publicar um livro de versos intitulado Gládio.
Primeiro de março, Fernando Pessoa publica na revista Teatro um artigo
de crítica ao livro de Afonso Lopes Vieira Bartolomeu Marinheiro, intitulado
"Naufrágio de Bartolomeu". 8 de março, anuncia a Álvaro
Pinto, secretário de A Águia, que Boavida Portugal vai publicar
o seu Inquérito Literário, inicialmente promovido na República,
e que ele, Fernando Pessoa, prepara um panfleto de defesa da Renascença
Portuguesa. Pensa em publicar um folheto sobre a autoria da obra de Shakespeare.
29 de março, escreve a poesia "Pauis": em abril, Feranando
Pessoa publica, em A Águia, o artigo "As Caricaturas de Almada Negreiros"
e trava conhecimento com o artista. Em maio, Mário de Sá- Carneiro
envia a Pessoa as poesias para o livro Dispersão. Fernando Pessoa escreve,
em inglês, o poema "Ephitalamium". 23 de janeiro, Sá-Carneiro
chega a Lisboa. Em agosto, Fernando Pessoa publica em A Águia, "Na
Floresta do Alheamento", 12 de outubro, escreve O Marinheiro. Drama Estático.
Fevereiro de 1914. Publica na revista A Renascença, de Lisboa, número
único, "Impressões do Crepúsculo"(as poesias
"O Sino da Minha Aldeia" e "Pauis"). O "Paulismo"
está em franco desenvolvimento. Coleciona e traduz para o inglês,
a convite de um editor de Londres. 300 provérbios portugueses. No dia
13 de julho. Em carta a Sá-Carneiro, de novo em Paris, declara Ter atingido
o período completo de sua maturidade literária.
Janeiro de 1915. A tia Anica parte para a Suíça, e Fernando
Pessoa vive algum tempo na Leiteria Alentejana, à rua Almirante Barroso,
12. Fernando Pessoa escreve em inglês, o poema "Antinous".
Janeiro de 1916. Pensa em estabelecer-se com astrólogo, em Lisboa.
Em março, aparecem em Fernando Pessoa fenômenos de mediunidade.
1918. Publica, em 2 plaquettes, Antinous e 35 sonetos. Em 19 de setembro,
o suplemento literário do Times de Londres, e o Glasgow Herald referem-se,
em notas críticas, aos poemas ingleses de Fernando Pessoa.
12 de abril de 1919. Embora tenha dado por morto Alberto Caeiro, escreve,
nesta data, uma série de poemas em nome deste seu heterônimo. Ricardo
Reis parta para o Brasil.
1921. Editado pela Olisipo, Organização Editora Sua. Fernando
Pessoa publica os seus English Poems I, II e III.
Janeiro de 1923. O número 7 da Contemporânea insere "Trois
Chansons Mortes", de Fernando Pessoa.
1924. falece o general Henrique Rosa. Aparece o primeiro número
da revista Atena, dirigida por Fernando Pessoa e Ry Vaz. Inicia-se na França
o movimento Surrealista.
1925. publica-se o número 5 da Atena, o último da revista
em 17 de março, falece, na Quinta dos Marechais, na Buraca, D.Maria Madalena,
mãe de Fernando Pessoa.
1926. Fernando Pessoa requere patente da invenção de um
Anuário Indicador Sintético, por Nomes ou Outras Quaisquer Classificações,
consutável em qualquer idioma.
10 de março de 1927. Publica-se em Coimbra o primeiro número
da "Folha de Arte e Crítica" - Presença. Em abril, José
Régio publica no número 3 da Presença o artigo "Da
Geração Modernista". Primeira referência crítica
da nova geração à obra do "mestre" Fernando Pessoa.
1929. Começa a publicar, na Solução Editora, uma
Antologia de Portugueses Modernos. Publica-se no livro temas, de João
Gaspar Simões, o primeiro estudo crítico sobre a personalidade
do poeta.
1930. Entra em correspondência com Aleister Crowley. Em 2 de setembro,
chega a Lisboa, em visita a Fernando Pessoa, o mago inglês Aleister Crowley.
Em 25 de setembro, desaparece, em circunstâncias "misteriosas"
,o famoso Aleister Crowley. Em 5 de outubro. O Notícias Ilustradas publica
depoimento de Fernando Pessoa sobre o "misterioso" desaparecimento
de Crowley.
16 de setembro de 1932. Requere em concurso documental, o lugar, de "Conservador-bibliográfico"
do Museu-Biblioteca do Conde de Guimarães, em Cascais, no qual não
é provido.
Dezembro de 1934. Aparece A Mensagem(N.A: seu único livro publicado
em vida). Em 31 de dezembro, lhe é atribuído o prêmio da
"Segunda Categoria" do secretariado de Propaganda Nacional, intitulado
"Antero Quental", cujo prêmio de "Primeira Categoria"
é atribuído ao livro Romaria, de Vasco Reis. Em 29 de novembro,
é internado, com uma cólica hepática no Hospital de São
Luís.
30 de novembro de 1935, falece Fernando Pessoa no mesmo hospital.
A POESIA EM PESSOA
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira a entrer a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração
Impressões do Crepúsculo
O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minh'alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeria pancada
Tem um som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo triste e errante,
És para mim como um sonho-
Soas-me sempre distante...
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto
Ela canta, pobre ceifeira
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão !
O que em mim sente 'stá pensando.
Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando !
Ah, poder ser tu, sendo eu !
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso ! Ó céu !
Ó campo ! Ó canção ! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve !
Entrai por mim dentro ! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve !
Depois, levando-me, passai !
Lisbon revisited (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à
praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia
sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infãncia pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto
De meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem
é
(E se soubessem quem é, o que saberiam ?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossívelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, euma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À tabacaria do outro lada da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real
por dentro
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei-de pensar ?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou ?
Ser o que penso ? Mas penso ser tanta coisa !
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos
!
Génio ? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe ?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas !
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo ?
Não, em mim...
Em quantas mansaradas e não-mansaradas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando ?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas-,
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas-,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente ?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarada,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede
sem porta,
E cantou a cantiga do infinito numa capoiera,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim ? Não, nem em nada.
Derrama-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrealas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira.
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o indefinido.
(Come chocalates, pequena;
Come chocolates !
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Como, pequena suja, come !
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes !
Mas eu penso, e ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida deste versos.
Pórtico partido para o impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o descurso das coisas,
E fico sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossívelmente nobre e nefasta.
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida.
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê-,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire !
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, Vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, Como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não
ser eu.
Olho a cada um dos andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é impossível fazer a realidade de tudo isso sem fazer
nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do rabo remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando tirei e vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não
tinha tirado
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar qeu sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-ententendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isso se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo das coisas
como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério
da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria(para comprar tabaco ?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência
de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Seu eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria(metendo troco na algibeira das calças ?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves ! e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.