Eram 10:12 h do dia dois de maio de
1960: após 9 minutos de sofrimento, trancado em uma câmara
de gás, Caryl Chessman, com 38 anos de idade, doze dos
quais no Corredor da Morte, encerrava sua agonia, iniciada em
23/1/48, dia em que, após uma perseguição
pelas ruas de Los Angeles, foi preso por policiais, sob a acusação
de ser o já então famoso "Bandido da Luz Vermelha"
(the red light bandit), responsável por roubos e
estupros a casais nas colinas que rodeavam Hollywood.
Chessman correspondia à descrição
do criminoso, o que, aliado ao seu passado fértil em transgressões
à lei, foi suficiente para, em meio à comoção
causada pelos crimes de que foi acusado, ser condenado por um
Tribunal do Júri em que, dos doze jurados, onze eram mulheres.
Negando qualquer responsabilidade
pelos crimes que lhe foram imputados, Chessman foi recolhido à
cela nº 2455, da Penitenciária de San Quentin, de
onde iniciou uma prolongada cruzada na tentativa de sensibilizar
autoridades e a opinião pública quanto à
sua inocência, única forma encontrada para evitar
a execução da pena capital a que fora condenado.
Interpôs dezenas de recursos
e petições a tribunais da Califórnia e à
Corte Suprema dos EUA, logrando adiar, por 7 vezes, a data marcada
para sua execução.
A sua obstinada luta pela vida espalhou-se
por todo o mundo, vindo ecoar no Brasil, onde inúmeras
personalidades se empenharam na tentativa de salvar Chessman do
gás letal.
Um dos mais ferrenhos defensores dessa
causa foi NELSON HUNGRIA, então Ministro do Supremo Tribunal
Federal. Através de correspondências ao Governador
da Califórnia, entrevistas a jornais e periódicos,
palestras etc, HUNGRIA empenhou toda sua inteligência e
prestígio de criminalista de escol à fileira dos
que clamavam pela preservação da vida de Chessman.
Memorável a conferência
do saudoso penalista, pronunciada no Centro Acadêmico XI
de Agosto, em maio de 1959, quando disse:
- "... Apontado como o bandido da luz
vermelha, sob imputação de rapto e brutalização
de duas raparigas (não se sabe bem se para fim de furto
ou de libidinagem), condenou-o o tribunal de Los Angeles a respirar
um gás mortífero, que é o meio de se matar
legalmente na Califórnia.
- (...)Obteve que lhe fossem proporcionados,
às pilhas, livros da biblioteca de Sacramento. Livros de
jurisprudência ou de doutrina jurídica, livros de
sociologia, de criminologia, de filosofia, de história,
de cultura geral. Só de obras de direito, leu-as em número
superior a 2.000. Lia até que os olhos se congestionassem
e seu cérebro exausto se negasse a continuar funcionando.
- (...)Aquele Chessman de 27 anos que o júri
de L.A. condenou à morte é tão diferente
do Chessman atual como um carvão difere de um diamante.
O que era agressividade feroz, o que era hostilidade afrontosa
aos mais elementares princípios da boa convivência
civil tornou-se um precioso valor humano, um espírito compreensivo
e pacífico, uma vida útil, uma consciência
integrada na solidariedade social.
- (...)Para erradicar o mal, não é
preciso erradicar o homem. O que cumpre fazer não é
matar o homem criminoso, mas o criminoso no homem. A criminalidade
não se extingue ou declina com a pena de morte. Ao invés
de irrogar-se arbitrariamente o direito de matar, ao Estado incumbe
promover a remodelação da própria sociedade,
para que se apresentem melhores condições políticas,
econômicas e éticas, eliminadoras das causas etiológicas
do crime...."
De fato, foi incomum a peregrinação
de Chessman. Portador apenas de curso primário, os milhares
de livros lidos lhe renderam um conhecimento profundo da criminologia
e do sistema penitenciário americano. Tornou-se poliglota
(aprendeu a língua portuguesa em poucos meses), e, mesmo
com punições disciplinares partidas da direção
do presídio, que via suas feridas expostas ao mundo, publicou
4 livros, um dos quais ("2455 - Cela da Morte") tornou-se
best seller no Brasil.
Nada, porém, se compara ao
seu derradeiro escrito, "um documento para a posteridade"
na expressão de RENÉ ARIEL DOTTI ("Chessman:
crônica de uma morte anunciada" in Revista Brasileira
de Ciências Criminais", RT, nº 20 - out/dez/97,
de onde se extraíram as informações para
este texto) a carta manuscrita por Chessman horas antes de sua
morte e endereçada a um repórter do jornal San
Francisco Examiner. Publicada na edição do dia
seguinte à execução de Chessman, a carta-testamento
se firmou como um dos mais vigorosos libelos contra a pena de
morte.
Ei-la:
- "Caro Sr. Stevens:
- "Como deve saber, os carrascos, na
Califórnia obedecem a horário de bancos. Nunca executam
alguém antes das dez da manhã e nunca depois das
quatro da tarde. Quando ler esta carta, já eles me terão
executado. Terei trocado o esquecimento por um incrível
pesadelo que durou 12 anos. E o senhor terá presenciado
o ato final ritualístico. Espero e confio em que o senhor
será capaz de transmitir a seus leitores que morri com
dignidade, sem medo animal e sem bravatas. Devo isto a mim mesmo,
mas devo mais a muitos outros. A hora da morte chegará
a mim dentro de poucos minutos. Resta-me de vida, segundo suponho,
menos de dezoito horas. Passarei estas horas numa das celas, a
alguns passos da câmara de gás".
- "... Eu desejava continuar vivendo.
Acreditei apaixonadamente que poderia oferecer uma contribuição
com meus livros, não só à literatura, como
à minha sociedade. Eu estava determinado a retribuir, assim,
às milhares de pessoas de tantas nações que
me defenderam e acreditaram em Caryl Chessman como ser humano.
Eu teria tido grande satisfação e um sentimento
de nobres objetivos se tivesse sobrevivido, para justificar seu
compreensivo julgamento. Mas um severo destino, revestido de roupagens
jurídicas, decretou minha morte numa pequena sala octogonal,
pintada de verde".(...)
- "Chegou a hora, em suma, de morrer.
Então assim acreditam muitos funcionários da
Califórnia o Estado estará vingado e vingado estará
seu sistema de Justiça retributiva. O Estado terá
acalmado seu espírito de vingança. Mas, vingança
contra o quê? Câmaras de gás podem matar gente
e não contrafações de sinistros e arrependidos
criminosos lendários, "monstros mitológicos".
- "Face a face com a morte repito enfaticamente
e sem hesitação: jamais fui o famoso "bandido
da luz vermelha". O Estado da Califórnia condenou
o homem errado, teimosamente recusou-se a admitir a possibilidade
de seu erro, e muito menos, a corrigi-lo. O mundo terá
em tempo provas deste monstruoso e selvagem erro. Não se
orgulhará desses fatos. Mas, ponhamos aqui de lado a questão
de culpa ou inocência. O que me impele a escrever esta carta
é minha firme convicção de que neste drama
está envolvido algo mais que a morte de um homem.
- "(...) Vou morrer com conhecimento
de que deixo atrás de mim outros homens vivendo seus últimos
dias no corredor da morte. Declaro aqui que a prática de
matar ritualmente e premeditadamente outros homens
envergonha e macula nossa civilização,
sem nada resolver contra aqueles que se lançam violentamente
contra a sociedade e eles próprios.
- "Assim, poderemos encontrar solução
racional e humana para o problema que a sociedade deve fazer com
tais seres humanos. Este problema não deve jamais ser enterrado
juntamente com o homem executado e suas vítimas. Ele não
será enterrado junto comigo. Escolhi meu próprio
caminho para chamar a atenção mundial para os corredores
da morte e câmaras de gás. Não encaro a mim
mesmo como um herói ou mártir. Pelo contrário,
sou ou louco confesso, profundamente consciente da natureza e
qualidade dos loucos erros cometidos em meus anos de rebelde juventude.
Não espero parecer grandiloqüente e didático.
Mas, estas são crenças que ardem dentro de mim mais
luminosamente que a minha esperança de sobreviver. Morrendo,
devo reafirmar esta crença e exprimir minha última
esperança de que estes que saíram em minha defesa
continuem lutando contra as câmaras de gás, contra
os carrascos e contra a justiça vingativa. Certamente mereceremos
algo melhor. Extingue-se meu tempo. Devo encerrar aqui minha carta.
Sinceramente, Caryl Chessman".
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