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Em: 13-MAI-1999

A bomba que caiu no sítio errado

Refugiados na missão dos padres Josephinos foram vítimas das forças presidenciais nos derradeiros instantes do regime
Luís Naves Leonardo Negrão em Bissau


DN-Leonardo Negrão
LIBERDADE. Os "aguentas" esperam o momento em que a Junta os deixe abandonar a base aérea

O incidente mais grave do conflito da Guiné-Bissau ocorreu poucas horas antes de tudo estar acabado. Foi um massacre horrível e talvez seja também o último crime da guerra. Três bombas caíram na missão dos padres Josephinos, em cheio na escola de formação profissional CIFAP, sobre um numeroso grupo de pessoas, quase só mulheres e crianças.

Eram 7 e 35 de sexta-feira. Os tiros foram disparados das instalações da Marinha. É fácil de ver: o invólucro da munição ainda está meio enterrado num pequeno buraco do solo, o que permite calcular a direcção do disparo. O pequeno tubo está ao lado da casa devastada, parede totalmente desfeita, uma bocarra de janela irreconhecível.

Ali morreram, pelo menos, 53 pessoas, mas foram mais; os padres não tiveram novas notícias de mortos no hospital para onde levaram os 80 feridos graves. Mais de metade dos que morreram durante os derradeiros confrontos, e todos civis. Uma criança foi projectada para o tecto da casa em frente e encontrada, uma hora mais tarde, com o crânio esmagado; um bebé nasceu na terrível amálgama de corpos que juncavam o solo, a mãe tinha o ventre totalmente aberto. O bebé também não sobreviveria muito tempo.

O padre Giovanni Martelli mostra as fotografias da cena: rostos contorcidos pelo terror, pernas esfaceladas, corpos estendidos, adivinham-se os gritos. "Aqui estavam os carros", explica Martelli, apontando para um espaço vazio perto do local das deflagrações. "Nenhum carro foi atingido, só pessoas, que estavam aqui em grande número, não podia cair uma pedra no chão." Mas caiu uma bomba: as pessoas foram projectadas, os sobreviventes fugiram para as valetas, em pânico total.

Agostinho Kumbanhaga, o porteiro da missão, apanhou com um pedaço de corpo humano no rosto e tombou. Depois, fugiu sem saber o que fazer, estava perto do ponto exacto onde caiu a bomba mais mortal, a poucos metros, ficou ileso, assim como os seus cinco filhos. Duas mulheres nas proximidades, a um ou dois metros, levaram com estilhaços e morreram; uma estava grávida. Kumbanhaga teve muita sorte: o sopro da explosão lançou-o na direcção inversa.

Dois cães, também sobreviventes, espreguiçam-se na sombra, alheios a esta terrível memória, ainda perto do alvo. Não havia na missão qualquer objectivo militar, nem passou por ali qualquer força da Junta, na manhã do último ataque a Bissau. "Não temos abrigos para tanta gente", reconhece o padre Martelli, "estavam aqui dez mil pessoas, sabíamos que não era seguro, mas confiava na presença de Deus." Não havia qualquer justificação para o ataque e o padre atribui o massacre ao desespero das forças leais a Nino Vieira, nos derradeiros instantes do regime.

O religioso mostra o local da explosão, recorda os corpos irreconhecíveis, muitos carbonizados, talvez pelo sopro da explosão ou do incêndio dos colchões em que estavam deitados. Muitos morreram com a compressão do ar, sem apanharem estilhaços. Martelli levanta os olhos do chão liso onde viu tanta morte. "Isto não pode ficar esquecido", diz, com ligeira indignação na voz. A vida continua. Perto da missão, no mercado de Bandim, as explosões são de cor e barafunda. Bissau regressou. Sobre um saco no chão, alguém vende livros escolares, canetas, lápis e cadernos. E uma útil História e Geografia de Portugal; a estação de serviço da Elf vende gasóleo sob a guarda de um homem da Junta.

Entre a multidão que se passeia pelo mercado, vejo um casalinho de mãos dadas, ele fardado, ela de cor-de-rosa; uma banca de perfumes e produtos de higiene ao lado do som fornecido pela cassete pirata; chaves, comida, sapatos, lubrificantes de travão, sabão e rádios a pilhas. Um senegalês vende relógios evitando falar francês; os guineenses, ao lado, riem do embaraço. Na Bissau que renasce, o massacre na missão dos Josephinos é história esquecida, e ainda só passaram seis dias. Na base aérea, também passado próximo, os prisioneiros do ataque de sexta-feira estão ainda a sofrer no calor de uma casa onde não cabem.

As forças da Junta identificam os presos e deixam-nos passar a barreira. Os "aguentas" - jovens recrutas recolhidos nas últimas semanas da guerra - fazem a fila para a identificação. Serão libertados nos próximos dias, mas, até lá, esperam, sentados, pernas e braços fora das grades, num calor insuportável, o chão juncado de caroços de mangas. O responsável da Junta pelo tratamento dos prisioneiros de guerra, major Samba Djaló, foi cruelmente torturado nas primeiras semanas da guerra. Entre os homens capturados, encontrou o seu torturador. Pergunto-lhe se o tratou bem. "Tratei-o bem, ainda hoje estive com ele, somos todos guineenses." O mundo tem destes acasos, pessoas no sítio errado na altura errada, bombas e torturadores que acertaram nos alvos.

Bissau fecha fronteiras para evitar fugas

As fronteiras terrestres da Guiné-Bissau foram encerradas para evitar a fuga de elementos armados leais a Nino Vieira, os chamados "aguentas". A medida foi anunciada pelo general Ansumane Mané através da estação de rádio usada pela Junta.

Alegadamente, a medida tem o objectivo de restaurar a segurança interna. Um responsável da polícia em Bissau, conforme cita a France-Presse, disse que as populações estão atemorizadas com os homens armados, que roubaram muitas viaturas e tentam passar pelas fronteiras da Guiné Bissau com o Senegal e a Guiné-Conacri. A mesma fonte policial da capital guineense refere que os "aguentas" são jovens soldados recrutados pelo ex-presidente Nino Vieira na sua etnia, os papéis.

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Guiné-Bissau, o Conflito no «site» Terràvista

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