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Em: 25-MAI-1999

Portugal com vista para as barricadas

A guerra teve testemunhas portuguesas. José Vidigueira ficou perto da frente, Constantino Ramos teve de fugir de Bissau

Luís Naves em Bissau


DN-Leonardo Negrão
RESISTÊNCIA. Constantino Ramos ficou ainda onze dias em Bissau, sob bombardeamentos cada vez mais fortes

José Lopes Vidigueira, de 57 anos, é o português que melhor conhece a Junta Militar vencedora do conflito na Guiné-Bissau. Ao longo de quase onze meses de guerra aberta ou impasse entre os dois exércitos, Vidigueira permaneceu na sua casa, junto à linha da frente, perto da rádio Bombalom. Por sorte, nenhuma bomba caiu em cheio na propriedade e apenas um empregado sofreu ferimentos ligeiros. Ali perto, houve combates ferozes e, nas redondezas, morreu muita gente.

A história deste empresário, que diz ter perdido 50 ou 60 mil contos durante a guerra, é semelhante em muitos pormenores à de outros portugueses radicados na Guiné, mas difere num ponto: José Vidigueira é amigo pessoal de vários líderes da Junta. "São pessoas dignas e cultas", diz, falando sobre os militares triunfantes. "Julgo que têm as melhores intenções, o que explica que isto tenha corrido como nenhuma outra guerra em África.

Os militares fizeram uma revolta e quem beneficia são os políticos e o povo." Na opinião deste português, a Junta pretende ficar fora da política e o mesmo se pode dizer do novo líder guineense, brigadeiro Ansumane Mané. "Ele é formidável. Para além de ter princípios humanos muito bons, consegue não se exceder em coisas que estão além da sua capacidade." Em relação a Nino Vieira, o presidente deposto, refugiado na embaixada portuguesa, José Vidigueira teme que este organize uma guerrilha, no caso de sair do país beneficiando do asilo político concedido por Portugal. "Não será facil, mas é possível."

Dezenas de portugueses assistiram de perto aos episódios mais sangrentos da guerra. Alguns chegaram a ser as únicas testemunhas exteriores ao conflito. Vidigueira é uma dessas pessoas. No início, em Junho do ano passado, quando a Junta não tinha mais de 250 a 300 homens, houve muitos dias em que o combate pareceu desesperado e até perdido. "Tivemos sempre debaixo de bombardeamento", recorda José Vidigueira. "Um dia, cheguei a pensar que atacavam o aeroporto. Vi o perigo de envolvimento das linhas da frente." Esse ataque fracassou, devido à táctica deficiente e falta de experiência dos senegaleses, dos quais terão morrido um mínimo de mil a 1500 soldados.

"Faltou um bom comandante de operações do lado senegalês. Os efectivos chegaram a ser de um para dez", afirma Vidigueira. Outro português viu a guerra do ponto de vista do alvo de artilharia. Constantino de Oliveira Ramos, dez anos de Guiné e dono do restaurante Colete Encarnado - decoração inspirada na tourada ribatejana - ficou em Bissau durante os primeiros 11 dias. O restaurante funcionou até ao momento em que a Junta bombardeou o estádio que se encontra em frente.

Até esse dia, Constantino Ramos refugiava-se com os familiares numa vala junto à sua casa e, nos intervalos da luta, fazia umas 20 refeições diárias. Foram as bombas no estádio que acabaram de vez com a resistência, ou talvez o episódio do velhote que se levantou, por sorte, da cadeira onde passava os dias sentado. A cadeira vazia foi destruída num segundo pelo estilhaço de uma bomba que caiu perto. Constantino Ramos percebeu que um alvo não dura sempre, que a morte atinge as pessoas que estavam, ainda há pouco, ali mesmo ao lado.

Daí a fuga precipitada, na loucura da noite. "Áquela hora, os senegaleses "limpavam" um tipo", recorda. "Fomos direitos ao porto, estava o Carlos Narciso [jornalista da SIC] sentado, a comer sandes, começou a cair um bombardeamento." A fuga levou os refugiados - Constantino e família - até um barco francês que só levava franceses. "Fiz de conta que não percebi os "gajos", pus-me na bicha e apanhei um "porreiro", que nos deixou passar." Lá dentro, ficaram à conta de um soldado filho de emigrantes portugueses, que não deixou a solidariedade por mãos alheias e, certamente, será bem-vindo ao Colete Encarnado.

Constantino Ramos e José Vidigueira são semelhantes a muitos portugueses anónimos que assistiram ao conflito. Podiam ser referidos outros nomes desconhecidos, quase todos pequenos empresários, cada um deles herói à sua maneira. Nunca foram convidados para cocktails de embaixada, não tinham negócios chorudos com a gente de Nino Vieira e não serão ouvidos pelo País onde nasceram. Perderam quase tudo o que possuíam, mas querem continuar a viver e trabalhar na terra africana em que estão viciados.

Um país e uma cidade em caos absoluto

Na fértil Guiné, 88 % da população vive com menos de um dólar por dia. É a percentagem mais alta do mundo. Para um milhão de pessoas, os gastos de uma existência diária não podem ultrapassar 180 escudos. Bissau é uma cidade caótica, cortada do mundo, sem telefones nem aeroporto internacionais, com o abastecimento eléctrico periclitante, o stock hospitalar esgotado e o lixo acumulado, ao lado das muitas habitações bombardeadas. As ruas estão crivadas de buracos, produzidos pela negligência de décadas ou por morteiros 120. Nestas condições, não é fácil trabalhar como jornalista. Por isso, o DN não pode deixar de agradecer publicamente a inexcedível camaradagem de Adalberto Rosa, delegado de Lusa em Bissau; de Tiago Petinga, repórter fotográfico da Agência Lusa; de João Morais, jornalista da TSF; e de António Soares, correspondente do Público em Bissau.

Jornal Diário de Notícias: E-mail: dnot@mail.telepac.pt

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Guiné-Bissau, o Conflito no «site» Geocities

Guiné-Bissau, o Conflito no «site» Terràvista

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