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Em: 26-JUL-1999

Guiné poderia ser estado federado

Patrício diz que seria "solução bastante feliz" e se devia ter corrido o risco, mesmo que "contagiasse" Angola e Moçambique

José Manuel Barroso

Rui Patrício, o último ministro dos Negócios Estrangeiros do Estado Novo, revela, nesta entrevista ao DN, os objectivos das conversações com o PAIGC, para fazer a paz na Guiné. E, ainda, o edifício que o Governo de Marcelo Caetano desenhava, para tentar resolver o problema ultramarino. Que passava pelo regresso à ideia da federação de Estados, a Guiné incluída.

Em 1974, poucas semanas antes de ser derrubado o regime, o Governo inicia contactos formais secretos com o PAIGC, em Londres - era o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros. Que tipo de entendimento com o PAIGC se buscava, a fim de ser encontrada uma solução para a guerra na Guiné?

O diálogo estava tão no início, tão no início, que qualquer avaliação que eu faça é um pouco virtual. À partida, estava excluída qualquer solução que nos fosse imposta, que fosse contra todos os nossos princípios. O que não estava excluído, era tentar ver, pela primeira vez, em que medida seria possível articular qualquer coisa diferente em relação à Guiné. Qualquer coisa diferente do que se passaria nos outros dois territórios onde havia guerra, e diferente também em relação a Cabo Verde. Não havia qualquer razão para englobar a Guiné e Cabo Verde numa mesma negociação.

Aceitaríamos, por exemplo, a declaração unilateral de independência, feita de resto só em relação à Guiné, pelo PAIGC?

Não iríamos negociar para aceitar algo que nos seria imposto.

E aceitariam a Guiné como, por exemplo, um Estado federado?

Porque não? Isso teria sido uma solução porventura bastante feliz. Imagine que tínhamos conseguido fazer da Guiné um Estado federado, cooperando connosco. Teria sido um êxito espantoso! Isso iria apressar a constituição de Estados federados, em Angola e em Moçambique. Talvez apressasse, mas isso também teria de ser ponderado. Em minha opinião, teria valido a pena correr esse risco.

Uma hipótese que pode hoje ser aventada é a de que o Governo de Marcelo Caetano - devido à pressão de factores negativos, a Guiné e a inquietação dos oficiais do Exército, e a factores favoráveis, a boa situação militar em Angola e mesmo a de Moçambique - faz uma tentativa para criar uma nova dinâmica, em relação à questão ultramarina a partir de meados de 1973. É exacto?

Essa tendência já vinha de antes. Mas foi muito tímida a revisão constitucional de 1971. Muito tímida e muito frouxa, mas inspirada por um pensamento evolutivo, ainda que mal aplicado. A nossa prioridade política era assegurar as condições de autonomia das nossas decisões. O que implicava, evidentemente, a defesa militar, enquanto fosse possível e viável e não comprometesse tudo o resto.

Voltando à questão da Guiné. Porque se recusa o diálogo com o PAIGC em 1972, como desejava Spínola... ...

O Presidente Américo Tomás excluiu essa hipótese.

Mas a ideia corrente, que resulta dos escritos do próprio Marcelo Caetano, é que este também não quereria esse diálogo.

Não afirmei que ele o queria ou não o queria. Disse que o assunto estava excluído, foi a própria decisão do Presidente da República.

Porque regressam, então, à ideia de ir para o diálogo, em 1974?

Precisamente por isso, porque não havia unanimidade - e a função de quem dirige a política externa é a de procurar todas as formas de resolver um problema. Aceito que uma das coisas de que pudemos ser acusados é a de não ter havido diálogo suficiente.

O grande obstáculo, para um encontro de posições entre os sectores evolucionistas do Governo e os generais Spínola e Costa Gomes, foi o facto de o Presidente Tomás se opor a soluções mais flexíveis?

Não desejo formular qualquer crítica. Mas toda a gente sabe haver um núcleo que, estando ligado a uma orientação de política externa, vinda do anterior, estava ligado ao Chefe do Estado.

E que condicionou toda a evolução posterior.

Não se pode atribuir toda a responsabilidade a esse facto. Mas influenciou muito.

Baltasar Rebelo de Sousa e Silva Cunha estão de acordo em afirmar que a reeleição de Américo Tomás, em 1972, foi um dos maiores erros de Marcelo Caetano. Está de acordo?

Acho que sim, que foi um erro, sem querer condenar uma pessoa que eu muito respeitava. Foi um erro político terrível.

Como comenta o facto de, sobretudo a partir dos finais de 1973, os principais elementos militares, críticos de uma política ultramarina continuísta, como Costa Gomes, Spínola, Viana de Lemos, estarem colocados no topo da pirâmide político-militar? Era uma opção de Caetano, em termos de alianças no interior do regime?

Não posso dizer isso com tanta clareza, porque havia o propósito de escolher os mais competentes, sem olhar ao seu passado político. Mas o facto de Marcelo Caetano se não deixar influenciar por essas circunstâncias políticas já é uma orientação política.

DEVIA-SE TER DIALOGADO COM OS MOVIMENTOS No início de 1974, havia alguma manobra em curso, no sentido de tentar uma divisão interna do PAIGC, isto é, de fazer inclinar um grande grupo de guerrilheiros para o lado português?

Sempre se pensou que se devia tentar isso.

Mas havia alguma manobra nesse sentido?

Os aspectos concretos já não sei. Isso passava mais pelos ministérios do Ultramar e da Defesa. Mas havia muitos argumentos para tentar essa divisão. Um dos antigos altos funcionários da DGS disse-me que estava em curso uma tentativa de aproximação ao próprio Nino Vieira. Havia movimentos com quem existiram contactos e que teriam porventura até podido apoiar isso. Mas tudo falhou.

A DGS tinha autonomia para iniciar contactos, não apenas em relação à Guiné, como aos outros territórios - através das suas antenas externas ou de serviços de informações estrangeiros amigos?

Sim, havia muita gente competente para fazer isso.

E o Governo sabia se eles o estavam a tentar fazer, ou dava instruções nesse sentido?

Instruções só eram dadas em relação a cada caso específico. A orientação geral era, evidentemente, a de aproveitar todas as oportunidades, não lhe posso estar a referir casos concretos.

Mas, por exemplo, os contactos que estavam a ser tentados em direcção ao PAIGC, pela DGS, esses eram do seu conhecimento?

Sim, embora não da minha direcção. O papel do meu ministério era, se necessário, facilitar.

Os homens da DGS, nesses casos, tinham fundamentalmente o papel de batedores?

Exactamente.

Sem ser através da DGS, na área política e diplomática, houve tentativas de contacto com gente dos movimentos independentistas, em Angola? Com o MPLA, que estava dividido e muito frágil?

Esses contactos eram internos, até porque não queríamos internacionalizar essa movimentação. Fugíamos o mais possível à internacionalização do conflito, porque era contra os interesses portugueses. Claro que deveria ter havido muitos mais contactos internos do que houve, fazia parte da política global e não foi feito com suficiente intensidade.

A que chama dialogar no plano interno?

Falar com os movimentos, com toda a gente.

Encontrar uma via de diálogo não dependente de terceiros.

Claro, é isso que deveria ter sido feito. O que não quer dizer que não discutíssemos o problema com representantes de outros Estados.

Tinha conhecimento de que um dos membros do governo de Angola, no tempo do governador Santos e Castro, era um homem perseguido em Portugal pela PIDE, por ser próximo do MPLA? Era uma tentativa de abertura, em relação a esse lado?

O mal foi ter-se sido tão tímido nessas coisas. O último governador de Angola era um homem arrojado, tinha esse dinamismo. Pena não ter podido fazê-lo mais.

E em Moçambique? Houve as tentativas de Jorge Jardim.

Devia ter havido um diálogo no campo interno. Aí, falhámos completamente.

"O LIVRO DE SPÍNOLA FOI UM DESASTRE" A partir do final de 1973, quando se começam a dar as grandes movimentações dos quadros militares intermédios, qual é a sua apreciação política da situação? Tem a percepção que os militares estavam a colocar seriamente o regime em questão?

A partir de Agosto de 1973, é evidente que as questões militares introduziram um factor enorme de instabilidade. As desastrosas decisões que foram tomadas em relação a esse movimento militar, e não posso deixar de usar esta expressão, a maneira desastrosa como tudo foi orientado... - é evidente que quem tivesse lucidez poderia perceber o caminho que as coisas estavam a tomar. Embora isso não influenciasse a aminha posição pessoal e as minhas atitudes.

Quando o livro do general António de Spínola aparece - o Portugal e o Futuro - que juízo político faz da situação?

Quer saber o que penso? Um desastre!

Ficou convencido que os generais do topo da hierarquia, Costa Gomes e Spínola, estavam a preparar-se para, de uma forma directa ou indirecta, derrubar ou deixar derrubar o Governo?

Eu não estive envolvido, de um lado ou do outro, nas teias da movimentação. Alguns dos meus colegas de Governo estavam mais informados, como se sabe. Eu estava demasiado ocupado com as minhas funções, mas isso não impediu de sentir haver uma grande instabilidade. Mas, a partir do momento em que as pessoas começam a ficar divididas no topo, as coisas não podem correr muito bem.

O que explica tão grande inacção do Governo em relação ao movimento dos oficiais?

Foi uma grande insensibilidade e incompetência política não se ter, de início, procurado resolver o problema, no âmbito em que ele se punha, o profissional.

Teve conhecimento de alguns contactos directos, pouco tempo antes do 25 de Abril, entre o presidente do Conselho e elementos do movimento dos capitães, no sentido de encontrar uma solução consensual, que impedisse qualquer solução de força?

Directamente não sei, mas que ele procurou isso, acho que sim.

O professor Marcelo Caetano nunca trocou impressões sobre esse tema consigo?

Não, nunca. É natural que tivesse falado sobre isso com o ministro da Defesa, comigo não.

Acha hoje que teria sido importante um entendimento, atempado, com o general Spínola?

Eu acho que o livro dele foi um desastre e a posição que ele tomou, a partir daí, tornou esse entendimento muito difícil. Anteriormente, é evidente que ele estava a fazer a política do Governo.

Mas, antes disso, ele fez várias tentativas, desde as eleições presidenciais, ao diálogo com o PAIGC...

Teria isso permitido qualquer outra evolução? Tenho as minhas dúvidas.

Jornal Diário de Notícias: E-mail: dnot@mail.telepac.pt

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Guiné-Bissau, o Conflito no «site» Geocities

Guiné-Bissau, o Conflito no «site» Terràvista

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