ENTREVISTA A EDGAR RODRIGUES, pesquisador do movimento operario
(*) Jorge E. Silva
Quando chegou ao Brasil em 1951, trazia na bagagem o original de seus
primeiros livros: Na Inquisicao de Salazar e Fome em Portugal. No entanto,
deixava o seu pais menos pela fome do que pelo oposicao a ditadura de
Salazar. Filho de um militante anarco-sindicalista, Edgar Rodrigues teve de
visitar varias vezes seu pai na prisao e tinha a certeza que se continuasse
no pais tambem ele acabaria preso. No Rio de Janeiro, alem de recomecar a sua
vida, tratou de publicar os livros contra a ditadura portuguesa, que logo
entraram no index do regime autoritario, embora Edgar Rodrigues nao tenha
deixado de os fazer entrar clandestinamente no pais. Por tudo isso so voltou
a visitar Portugal vinte anos mais tarde, apos a derrubada do fascismo em
1974.
Amigo de Oiticica, Leuenroth e tantos militantes e jornalistas
libertarios, logo comecou a colaborar na imprensa. A pedido de jornais do
Uruguai, comecou a pesquisar a historia do movimento operario e sindical no
Brasil. Aos poucos, correndo o Brasil, levantando informacoes com velhos
militantes, recolhendo documentos raros, criou um importante acervo de
historia social, que lhe permitiu escreveu alguns livros fundamentais:
Socialismo e Sindicalismo no Brasil (1969), Nacionalismo e Cultura Social
(1972) e Novos Rumos (1972), Alvorada Operaria (1979) e Anarquistas:
Trabalhadores Italianos no Brasil (1989).
Quando poucos pesquisadores se interessavam pela historia do movimento
operario e, menos ainda, pela periodo em que nasceu o sindicalismo, Edgar
Rodrigues documentou-a em suas obras exaustivamente. Fornecendo um manancial
de informacoes sobre as origens do sindicalismo e das ideias socialistas no
Brasil, que hoje sao preciosas para pesquisadores e historiadores.
Esse trabalho silencioso nunca mereceu o reconhecimento aberto dos setores
academicos embora varias teses academicas e curtas metragens foram produzidas
com material e informacoes fornecidas por ele ja que feito por um autor
autodidata e independente, que nao se submetia aos canones e regras dos
manuais universitarios. Como escreveu Antonio Arnoni Prado "Os intelectuais
com honrosas excecoes, mantem uma atitude ambigua face a obra de Edgar
Rodrigues. Torcem o nariz, por um lado, reclamando maior rigor teorico;
invejam, por outro lado, a riqueza documental de seus livros, quase
insuperavel, o que o torna passagem obrigatoria, para quem se aventura no
tema."
Para quem, como Edgar Rodrigues, sempre viveu de seu trabalho e pesquisou
e escreveu nas horas vagas seus 1.500 artigos e 36 livros, o reconhecimento
de pesquisadores como Helio Silva, Foot Hardman e Arnoni Prado e suficiente.
Aos 76 anos, Edgar continua um espectador atento da sua realidade social e
mantem a disposicao de continuar pesquisando e publicando. Na fila, esta a
continuidade da obra Companheiros, com biografias de militantes sindicais e
libertarios, uma coletanea Livre Pensamento e uma longa lista de trabalhos. A
Pequena Historia da Imprensa Social, que a editora Insular de Florianopolis
esta publicando e outra dessas suas obras que esteve parada durante anos na
estante, esperando um tratamento mais definitivo.
Considerando que nao tem mais tempo, nem condicoes para esperar, Edgar
Rodrigues, faz da forma que sempre fez: publica, esperando que seus subsidios
e documentos ajudem e inspirem novos pesquisadores, mais jovens, mas nao
menos independentes e combativos do que ele.
Discreto, esta e a sua segunda entrevista a um jornal, a primeira foi
feita em 1984 pela Folha de Sao Paulo, por Arnoni Prado e Foot Hardman.
1- Embora desconhecida do grande publico a sua obra de pesquisa social e
sobre a historia do movimento operario e uma fonte inestimavel para qualquer
historiador. Como comecou essa sua atividade de pesquisador autodidata ?
Ainda adolescente ouvi falar em anarco-sindicalismo e anarquismo em casa
de meus pais, em Portugal. No comeco da ditadura escutava as reunioes
clandestinas que se realizavam em nossa casa, comecando, entao, a entender as
ideias que meu pai e seus companheiros debatiam. Logo me iniciei na leitura
de manifestos, jornais e documentos historicos. Pouco depois juntei uns
tostoes e comprei meus primeiros livros: A Velhice do Padre Eterno do poeta
Guerra Junqueiro e Conquista do Pao de Pedro Kropotkin. Quando nao conseguia
comprar esses livros, copiava-os a mao, coisa que hoje deve ser motivo de
espanto para aqueles que embora tenham dinheiro, nao sabem o que e ler um
livro.
O editor do meu livro Na Inquisicao de Salazar disse na apresentacao que
eu era um pesquisador instintivo, acho que tinha razao. E ele nao sabia,
ainda, da mala cheia de papeis que trouxe no porao do navio de Portugal. No
Rio de Janeiro continuei com a mesma vontade da juventude e logo que pude
escrevi a velhos militantes sindicalistas e libertarios de fora e dentro do
Brasil pedindo documentos e publicacoes antigas. mais tarde percorri varios
estados, para entrevistar esses sindicalistas que me davam informacoes e me
ofereciam seus velhos arquivos. Em alguns casos convenci parentes de velhos
militantes a me venderem acervos que se estavam perdendo. Esta busca dura ate
hoje e ja la vao 65 anos...
2- Alguns autores academicos o costumam o criticar argumentando com a falta
de metodo e de rigor cientifico, como voce avalia essas criticas ?
Para mim escrever livros foi uma consequencia da pesquisa e coleta de
informacoes. A minha formacao e autodidata, os metodos de pesquisa, se assim
os posso chamar, sao os que fui experimentando e melhorando ao longo desse
meu trabalho. Minha principal preocupacao tem sido nao deixar perder
documentos que ia descobrindo e divulgar uma historia que vinha sendo
ocultada e deturpada do movimento social no Brasil. Nunca tive a pretensao de
entrar na academia ou me tornar famoso. Eu nao chego a partilhar totalmente
da opiniao do Barao de Itarare que escreveu: "Os diplomas nao encurtam as
orelhas de ninguem", mas que muita gente ate pode voar com elas isso nao
tenho duvida. Nao existem pesquisas irretocaveis, mas se fosse perfeccionista
e escutasse todas as criticas nao escreveria 46 livros, nem publicaria 36,
ficaria em um ou dois e olhe la... Assim consegui tornar publicos centenas ou
milhares de documentos sobre o sindicalismo e movimento operario no Brasil
que ai estao para quem quiser polir e dar a cera que eu nao pude.
3 - Como ve o papel dos intelectuais e da universidade numa sociedade como a
Brasileira ?
A universidade deveria dar uma formacao integral e humanista aos
estudantes e trabalhar para encontrar solucoes ajudando a resolver os
problemas da sociedade que a sustenta. O que acontece e o contraria as
academias pouco fazem para dar essa formacao ou socializar o saber, perdidas
num conhecimento cada vez mais especializado, hermetico, que pode ate ser
profundo, mas com aquela profundidade das brocas que nao pegam a luz do sol.
Falta-lhes a vida e o contato com a realidade. Esta especializacao vertical e
incapaz de entender e se sensibilizar com a realidade, com os homens de carne
e osso.
Seus livros e suas ideias podem estar "bem vestidas", usar os melhores
"alfaiates graficos", mas raramente se distinguem pela qualidade do conteudo
ou por seu sentido critico. Sao mais frias que uma natureza morta... Talvez
por isso nao seja de admirar que as nossas elites politicas e economicas
tenham saido dessas universidades !
4 - Os movimentos sociais contemporaneos estao longe daqueles que voce estuda
e com os quais se identifica. Qual a sua avaliacao sobre esse movimentos
contemporaneos, em particular o sindicalismo ?
Os assalariados de hoje vivem ainda sujeitos a exploracao ou a exclusao
social como os operarios e trabalhadores do passado. Tambem os movimentos
sociais e o sindicalismo enfrenta muitos dos problemas do passado, por isso
acredito que muitos dos metodos e da teoria do sindicalismo autonomo do
passado continuam sendo validas. Esse sindicalismo, em que acredito, poderia
ser a base da producao, da distribuicao e da propria autogestao social. O
suporte de uma nova sociedade.
Agora o sindicalismo que ai esta perdeu-se no corporativismo, politicagem
e corrupcao pelega, mesmo o que se apresenta pintado de esquerda. Por outro
lado, as modificacoes sofridas pelo capitalismo, o papel que os meios de
comunicacao e da propria educacao na sustentacao do sistema, com a
colaboracao de toda uma casta de intelectuais, criou condicoes para este tipo
de sindicalismo. O movimento social perdeu sua autonomia que levava no
passado a sustentar seus proprios jornais, manter uma cultura alternativa,
com escolas, bibliotecas, teatro e centros de cultura social, alimentando um
projeto revolucionario de mudanca social. Hoje aceita a enganacao politica,
perde-se no consumismo e a sua "cultura" e a das novelas da televisao !
No entanto, me parece que esse ciclo esta chegando ao fim, as contradicoes
existentes na sociedade, cada vez mais evidentes, vao exigir, mais dia menos
dia, que se volte a pensar uma solucao global para a nossa sociedade e nesse
momento muito do que foi pensado e proposto pelo sindicalismo revolucionario
e pelos libertarios vai voltar a se colocar.
5 - A derrocada do sistema que vigorava no Leste europeu tem servido a muitos
intelectuais para decretar a morte da utopia e das ideias socialistas. Qual a
sua opiniao ?
A revolucao popular russa de fevereiro de 1917 foi a esperanca de milhoes
de pessoas em todo o mundo, incluindo na America Latina, so que, logo depois,
o golpe dos comunistas em outubro e a aplicacao do projeto estatizante e
autoritario criou o sistema tudo para o estado ( e suas burocracias) nada
para o povo. O resultado esta ai a vista passados 80 anos. Uma historia de:
repressao monstruosa, corrupcao, crimes, exploracao, falta de liberdade,
liquidando toda uma esperanca e expetativa criada para os pobres e explorados
de todo o mundo e gerando sociedades que hoje entraram em colapso.
A obsessao do poder cegou de tal forma essas burocracias que nem os deixou
ver que a piramide, em que estavam sentadas, estavam ruindo. Afinal o gigante
tinha pes de barro... Mas isto nao foi o fim da utopia. Esta so morrera com o
homem. Uma sociedade realmente socialista e libertaria teria de se apoiar em
tres pontos principais: No homem como ser livre e capaz de se melhorar e
aperfeicoar; numa educacao racionalista e humanista que contribuisse para
capacitar tecnica e socialmente os membros da sociedade e criar uma etica e
uma cultura que reforca-se os lacos comunitarios e de solidariedade ; na
liberdade plena, com igualdade efetiva de direitos e deveres. So assim uma
sociedade autogestionaria poderia desenvolver suas raizes.
Utopia ? O tempo dira se o ser humano nao pode revelar todo o seu
potencial societario positivo que segundo Kropotkin e a base da cooperacao e
entre-ajuda na sociedade. Otimisticamente os libertarios acham que sim.
6 - Os libertarios partilham de uma visao que aponta a auto-organizacao
social e economica, a descentralizacao e o federalismo como solucao para a
presenca opressiva e autoritaria do estado. Qual a viabilidade de uma
proposta dessas no mundo contemporaneo e no Brasil em particular ?
Ja nao tenho idade para ser ingenuo e pensar que vai acontecer a curto
prazo mudancas profundas nas sociedades que conheco. Os obstaculos a vencer
sao tais que certamente exigem, entre outras coisas, tempo, agravamento da
crise e dos problemas e o renascimento de novos movimentos sociais mais
capazes, mais preparados, mais cooperativos e mais fortes para enfrentar esse
desafio de criar uma sociedade realmente humana. So que para la do poder e da
alienacao com que temos de nos confrontar, cada um de nos carrega em si
atavismos milenares e deformacoes culturais e psicologicas, que tornam uma
mudanca social profunda (que e tambem necessariamente uma mudanca pessoal) um
parto dificil.
O anarquismo, como qualquer outra filosofia social nao se baseia em
milagres (mesmo que muitos acreditem neles). Nao se propoe curar todas as
enfermidades com um remedio desconhecido, menos ainda somos magicos. Pelo
contrario, o anarquista e um atleta, um corredor de fundo, precisa de ter
folego para aguentar os desafios que enfrenta. Quem nao for capaz disso, de
resistir, de aguentar, nao e certamente um libertario. Tera de pensar em ser
comerciante ou conseguir um cargo politico e se acomodar. Outra solucao e
criar uma igreja e conseguir muitos crentes, prometendo uma vida melhor na
eternidade, dessa forma consolam-se os tolos e fica rico o padre ou pastor!
A proposta de uma sociedade libertaria, baseada na descentralizacao,
federalismo e autogestao social penso ser a mais moderna e atual entre todas
que comecaram a ser formuladas nos seculos XVIII-XIX. Dessa forma ela
corresponde ao que o mundo e, no nosso caso o Brasil, precisa para resolver
grande parte dos problemas sociais, economicos e ecologicos que se colocam
hoje, criando uma sociedade capaz de se autogerir e auto-controlar. O que e
um passo decisivo em direcao a realizacao e felicidade humana nesta nossa
existencia transitoria, a grande questao que se coloca aos seres humanos
desde os seus primordios.
(*) Assessor do Centro de Estudos Cultura e Cidadania de Florianopolis -CECCA
               (
geocities.com/capitolhill/senate)                   (
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