"Podemos afirmar definitivamente, com base em investigações
estreitamente empíricas, que a pura e simples inversão de
nossa ênfase analítica do universo, separando componetes constituintes
como peças, para proceder de maneira inversa, unindo o que foi cortado
em pedaços - seja na realidade ou tão só em nossa
mente -, não pode explicar por si só o comportamento sequer
do mais elementar sistema vivo".
Paul Weiss
Talvez a melhor maneira de se compreender as diferenças
fundamentais entre as duas atuais visões de mundo - a do paradigma
da ciência cartesiana (hoje dominante) e da concepção
chamada holística, ou ecológica (em sua acepção
mais profunda, cuja palavra talvez seja preferível à holismo),
hoje emergente - possa ser adquirida através do estudo de como estas
diferentes formas de entender e perceber, de se posicionar
ante o que julgamos ser a realidade, explicam o porquê da
existência - ou da origem e finalidade - de um dado fenômeno,
ou a sua ocorrência. Assim, partindo deste princípio, resolvi
tomar como ilustração das diferenças entre o Holismo
- mais precisamente a Teoria Sist&p;eciirc;mica da Vida - e o
Reducionismo
Mecanicista a maneira como cada uma destas difentes concepções
teórico-filosóficas entendem, percebem e/ou explicam o
que é a vida, quais suas características, objetivos e
finalidade.
Como vemos a vida
Apesar do discurso ideológico, em grande parte calcada
no sucesso tecnológico e no conseqüente poder político
e econômico daí resultante, a ciência ocidental - muitíssimo
bem sucedida em várias áreas de atuação - é
uma espécie de saber especializado e aceito como válido por
uma civilização mas, de modo bem mais amplo, constitui-se
em uma modalidade de saber entre tantas outras tão válidas
e coerentes quanto ela mesma, e que são próprias das atualmente
violentadas e moribundas (situação esta causada pela dominante
civilização ocidental) civilizações, culturas
ou tradições não industriais...
Como bem esclarece o pofessor Renato Machado, "a
ciência não é um objeto natural, um objeto dado; é
uma produção cultural, um objeto construído, produzido.
(...) A ciência é essencialmente discurso, um conjunto de
proposições articuladas sistematicamente. Mas, além
disso, é um tipo específico de discurso: é um discurso
que tem a pretensão de verdade" (MACHADO, Ciência e Saber,
A Trajetória Arqueológica de Foucault, p. 20, edições
Graal, Rio de Janeiro, 1988). Um pouco mais além, o mesmo autor
afirma que "a questão da verdade significa a dos critérios
do conhecimento dito verdadeiro, que dependem da própria ciência
enquanto processo de produção do conhecimento ou daquilo
que Canguilhem chama veridicidade: 'A veridicidade ou o dizer-o-verdadeiro
da ciência não consiste em uma reprodução fiel
de alguma verdade inscrita desde sempre nas coisas ou no intelecto. O verdadeiro
é o dito do dizer científico'. A ciência não
reproduz uma verdade; cada ciência produz sua verdade. Não
existem critérios universais ou exteriores para julgar da verdade
de uma ciência"(MACHADO, op. cit., p. 21). Em um uma nota, o autor
ainda cita Fraçois Jacob, que diz: "Como as outras ciências,
a biologia perdeu hoje muitas de suas ilusões. Ela não procura
mais a verdade. Ela constrói a sua".
A biologia moderna, como de resto todas as outras
ciências, não escapou ao triunfo olímpico do modelo
newtoniano de mundo e de sua Física. Mais que isso, ela abraçou
ardorosamente a filosofia subjacente a tal modelo, elaborada por René
Descartes e que estabelecia o universo e todos os seres vivos como sendo
máquinas semelhantes em sua constituição às
máquinas construídas pelos homens, cabendo, portanto, apenas
desmontar estas e analisar suas peças e a forma como elas se relacionam
na estrutura para entender seu funcionamento.
O físico Fritjof Capra, com bastante clareza,
cita que:
Empolgados pelos êxitos do método
reducionista (analítico), com especial destaque, recentemente, no
campo da engenharia genética, eles tendem a acreditar que este é
o único enfoque válido, e organizaram a pesquisa biológica
de acordo com ele. Os estudantes não são encorajados a desenvolver
conceitos integrativos, relacionais, e as instituições de
pesquisa dirigem suas verbas quase exclusivamente para a solução
de problemas formulados no âmbito dos conceitos cartesianos. Os fenômenos
biológicos que não podem ser explicados em termos reducionistas
são considerados indignos de investigação científica.
Por conseguinte, os biólogos desenvolveram métodos muito
curiosos para lidar com os organismo vivos. Como sublinhou o eminente biólogo
e ecologista René Dubos, eles usualmente sentem-se muito à
vontade quando a coisa que estão estudando já não
vive" (CAPRA, 1986, p. 96)
Dentre os principais problemas não explicados
pelo método analítico reducionista estão os mais encantadores
fenômenos biológicos, em especial a regeneração
celular de feridas, a integração mente/corpo, o desenvolvimento
e diferenciação embrional, a integração harmônica
do sistema nervoso e seu permamente contato integrativo interrelacional
com o meio, que afinal sustenta o organismo. E só em nosso século
a Ecologia começou a ser aceita - ainda que como inimiga para o
sistema Industrial, em especial o que se calca na exploração
e poluição do meio-ambiente. De qualquer modo, a biologia,
adotando um determinado modelo mecanicista da vida, está dando retorno
a um segmento social que a financia e espera, de qualquer modo, algo em
troca, se possível algo que dê lucro. Desta forma, fazendo
dos organismos vivos "máquinas", não é preciso ter
uma ética "humanista" de pleno respeito a estes organismos, que
podem ser plenamente explorados comercialmente. Da mesma forma, a indústria
faramacêutica, visando mais o lucro que a ajuda humanitária,
pouco se importa se quem pode comprar seus produtos constitua apenas um
setor mínimo da população. A educação
médica, sendo prioritariamente interventiva que preventiva, faz
parte desta estrutura mercadológica, já que a industria não
só contribui para a manutenção de cursos de medicina,
como também está o tempo todo, às custas de uma extraordinária
máquina de propaganda, impondo referenciais de tratamento aos médicos.
É interessante notar o modo como o discurso
científico é um discurso cultural. Basta olha a história
de uma ciência para perceber isso... Toda a forma de saber e toda
a ciência, por ser uma aproximação e por ser uma construção,
é coerente com o contexto político e econômico onde
se situa e triunfa. Conceitos superados e conceitos sancionados estão
mais ligadas à ideologia de uma sociedade do que se pensa, o que
não significa que o que foi rejeitado num dia não possa ser
ressuscitado, totalmente ou reformado, em outro. Canguilhem explicita isso
em seu conceito de "ideologia cienífica", que é
um discurso que, por ser aceito e apoiado por um conjunto de pessoas socialmente
reconhecidas como especialistas, tem a presunção de verdade
- mesmo que seja de uma verdade tempor&aaacute;ria. Por ter a ambição
de cientificidade, este discurso imita os procedimentos de ciências
tecnologicamente e teoricamente mais bem sucedidas, em especial a Fìsica.
Adotando critérios análogos, entra a perspectica de poder
que é utilizada com ambição à totalidade explicativa.
No caso, o modelo de máquina abarcaria todas as áreas da
biologia.
Há pouco mais de cem anos, seguindo uma análise
feita pelo físico Paul Davies, com a publicação dos
trabalhos de Darwin e Wallace, o tema da origem e da evolução
dos sistemas vivos tornou-se o mais visível ponto de colisão
e conflito entre entre a ciência e a religião, ou, mais precimanete,
entre duas formas diferentes de se entender a natureza. Antes, era lugar
comum que a vida era, ou pareceia ser, a manifestação mais
óbvia da sabedoria e do poder da Divindade, sendo que a vida humana
era considerada o ápice do plano universal de Deus. Todas as formas
vivas pareciam fazer sentido como a resultante visível dos desígnios
da Suprema Mente de um Grande Arquiteto, cabendo ao homem usufruir de uma
localização privilegiada na hierarquia dos seres vivos. Hoje
em dia, a vida continua a ser um fenômeno espantoso, mas a autoria
de tal milagre foi transferida, pela ciência, de Deus para um complexo
jogo de forças determinísticas e, em última análise,
cegas, regidas pelo acaso, que, combinando elementos "casualmente" apropriados
em ambientes igualmente propícios, teriam, de modo absolutamente
aleatório e através dos milênios, possibilitado a eclosão
da imensa e rica variedade de formas vivas que nos cercam e encantam. É
interessante observar uma certa ingenuidade reducionista de tal concepção.
Dificilmente uma enciclopéida seria feita a partir da explosão
de um saco de jornais, mas é mais ou menos assim que a ciência
diz que se formou o universo. As conseqüências de tal mudança
de "crenças", é claro, resultaram em um profundo abalo na
mentalidade humana: a ciência mudou a perspectiva que o homem tinha
de si mesmo e do universo, e de sua relação para com este.
Como tudo o mais no mundo, esta revolução de crenças
trouxe coisas boas e outras nem tanto, e, de igual forma, mostrou um certo
limite de aplicabilidade e de exatidão: embora, em linhas gerais,
a evolução seja um fato inquestionável,
o prédio especulativo mecanicista que se construiu ao redor e à
pretexto dela tem demonstrado um lado negro e, em última instância,
nocivo à própria sobrevivência da vida no planeta,
como veremos adiante.
Para a ciência oficial, especialmente para
as disciplinas científicas mais atreladas ao modelo científico
advindo da Física Clássica, as duas facetas básicas
que distinguem e caracterizam os sistemas vivos dos não-vivos são
a Organização e a Complexidade (Davies). Ora,
mesmo um "primitivo" organismo unicelular, como uma ameba, por exemplo,
por mais simples que seja apresenta uma intrincada estrutura biológica
(Complexidade) que nunca se encontrará em qualquer que seja o produto
do engenho humano. Qualquer modificação sintética
numa estrutura desse tipo sempre partirá da matéria prima
básica que o homem irá utilizar, ou seja, o próprio
organismo uniceluar já existente. Este mesmo organismo uniceluar,
em seu funcionamento interno, apresenta-se como uma grande cidade muito
bem organizada. Ela é formada por organelas muito especializadas
que trabalham de forma altamente sincronizada para que o ser unicelular
possa sobreviver, auto-renovar-se, locomover-se, alimentar-se, atacar,
fugir e se reproduzir. As estruturas químicas que dirigem e controlam
toda esta "cidade" minúscula encontram-se codificadas em moléculas
localizadas no interior do núcleo da célula: o DNA.
O mais incrível é que os componentes elementares básicos
de um sistema biológico qualquer é formado por átomos
perfeitamente comuns, encontrados em toda a parte. Qualquer que seja o
átomo que se encontre dentro da célula viva - quer seja um
átomo de carbono, de hidrogênio ou de qualquer outro elemento
- não apresentará ele difeeerença alguma de qualquer
dos átomos do mesmo elemento que se encontrem no meio inanimado
externo. Aliás, há uma corrente ininterrupta de trocas de
componentes internos da célula com o meio externo e, apesar disso,
a célula continua a ser e a se desenvolver como um organismo independente,
de onde se deduz que a vida não pode ser reduzida a uma propriedade
de mera junção ou união das suas partes constituintes.
Estas partes constituintes estão em constante transformação.
Seus átomos estão sempre sendo trocados, mas o padrão
do conjunto se mantém. É este padrão, não
a estrutura, que é responsável pela existência do conjunto.
A vida não é um fenômeno cumulativo. Se o fosse, um
biólogo poderia muito bem formar uma célula viva a partir
da junção de todos os seus componentes. O máximo que
ele conseguirá é um saquinho gelatinoso muito parecido com
uma célula morta.
Na biologia acadêmica, de modo geral, a concepção
mecanicista dos organismos vivos como máquinas, consituídas
de partes definidas e, fundamentalmente, passívies de separação
e análise - como peças de um relógio -, ainda é
a base conceitual dominante. Empolgados e estimulados pelo êxitos
inquestionáveis
do método analítico, cartesiano, ou científico,
eles tendem a conceber que esse método é o que possibilita
o único enfoque válido para a compreensão dos fenômenos
biológicos, e organizam todas as pesquisas de acordo com ele. Os
fenômenos biológicos que não podem ser coerentemente
explicados dentro dos termos reducionistas, como, por exemplo, o processo
de cura de ferimentos, a concentração da atenção,
são considerados indignos de investigação científica,
ou como fatos sujeitos à explicação futura, dentro
dos moldes reducionistas.
Muito embora o conceito simplista de seres vivos
como máquinas próximas a de um relógio fosse, na prática,
superado na biologia, a essência conceitual da idéia, porém,
permaneceu, já que a obsessão na pesquisa está em
se reduzir todos os aspectos ao processo de reação de constituintes
moleculares nas células. Quanto à parte da fisiologia e da
anatomia, a aproximação ao ideal mecanicista cartesiano ainda
é dominante. O tratado de La Mettrie, escrito no século XVIII
e intitulado "O Homem-Máquina" deu o ponta pé inicial de
toda a abordagem mecanicista em fisiologia por mais de dois séculos:
"Será preciso mais (...) para provar
que o Homem nada mais é que um Animal, ou uma montagem de molas
que se engatam umas nas outras de tal modo que não é possível
dizer em que ponto do círculo humano a Natureza começou?...
Na verdade. não estou equivocado; o corpo humano é um relógio,
mas imenso e construído com tanto engenho e habilidade que, se a
roda denteada, cuja função é marcar os segundos, pára,
a dos minutos continua girando em seu curso" (cit. in CAPRA, 1986, p. 101).
Muitos importantes biólogos ainda defendiam esta
forma de "entendimento" da vida em pleno século XX.
Ora, o interessante é que a ênfase na
pesquisa científica, em geral, e, muito particularmente, em biologia
está em se isolar e classificar sempre mais e mais os chamados constituíntes
fundamentais dos sitemas vivos, ou seja, em se decobrir quais as moléculas
- e sua composição - respoonsáveis pela manutenção
e/ou ação dos processos biológicos. Pretende-se com
isso ter uma visão compreensiva e mais aprofundada do que seja a
vida. No final das contas, o que descobrimos é que enquanto aprofundamos
mais e mais o conhecimento das estruturas microscópicas que constituem
a base biofísica e bioquímica das células, perdemos
a visão de relação ou a visão do conjunto da
vida em si em em suas manifestações dinâmicas. Cria-se,
assim, a ilusão de que a superespecialização linear
aumenta o conjunto geral do conhecimento. Na verdade, aumenta-se o conjunto
de conhecimento sobre os detalhes de um determinado aspecto da vida.
Pouco se faz para se ter uma idéia de relação
funcional das partes com o todo. O erro fundamental reside no fato de a
ciência não levar realmente em conta que um conjunto pode
muito bem apresentar propriedades que não se encontram nos seus
componentes individuais. Um exemplo clássico para demonstrar tal
fato é o da fotografia de jornal que é constituída
por inúmeros pontinhos. Ora, nenhum desses pontinhos, quando isolados,
revela o que quer que seja sobre a figura que o conjunto representa. Só
quando nos afastamos do nível dos componentes individuais e ascendemos
ao todo, é que temos idéia da informação,
da mensagem, da figura que surge da fotografia de jornal. Ou seja, a figura
não é a resultante das propriedas dos pontinhos, mas sim
a resultante do padrão do todo formado tanto pelos
pontinhos, quanto pelo espaço entre eles.
Da mesma forma, o erro básico do paradigma
científico atual subjacente ao modelo biomédico reside na
fato de que se confunde a vida com os seus elementos contituintes. Não
é nos átomos, enquanto conetúdo, que reside o segredo
da vida ou suas moléculas constituintes per si, mas no padrão,
na informação que emerge de sua associação.
É a informação contida no DNA que possibilita que
alguém tenha olhos claros ou escuros, e não que uma coleção
de um átomo específico possa estabeler que a pessoa tenha
olhos dessa ou daquela cor. É a informação, expressa
na síntese protéica, que utilizará os mesmos átomos
presentes em todos os seres vivos para estabelecer características
fenotípicas diversas.
Em nosso século, a genética tornou-se
a área mais ativa, mais sedutora e mais poderosa na pesquisa biológica,
médica e farmacêutica. Os sucessos na descrição
e entendimento da estrutra do DNA proporcionou um forte reforço
à abordagem mecanicista dos organimos vivos. Ao ficar claro que
o material hereditário estava contido nos cromossomos, em posicões
especiais ao longo dos filamentos que os constituem, os geneticistas acreditavam
ter fixados os "átomos da hereditariedade", e passaram
a explicar as características biológicas em termos de suas
"unidades elementares": os genes, sendo, de início, considerado
que cada gene corresponderia a um traço hereditário específico,
em causação lienar. Porém, logo se descobriu que esta
linearidade não era perfeita pois pesquisas mostraram que um único
gene pode afetar vários traços e que, inversamente, muitos
genes separados combinam-se frequentemente para produzir um só
traço. Obviamente, o estudo da cooperação e da atividade
integrativa, holística, dos genes separados se apresentou
como sendo de profunda importância, mas a estrutura conceitual cartesiana-mecanicista
tornou difícil lidar com estas questões. Como diz Fritijof
Capra, "quando os cientistas reduzem um todo a seus constituintes
fundamentais - sejam eles células, genes ou partículas elementares
- e tentam explicar todos os fenômmmenos em função desses
elementos, eles perdem a capacidade de entender as atividades coordenadoras
do sistema como um todo" (Capra, 1986, pág. 107).
Ainda segundo Capra, "uma outra falácia da abordagem reducionistas
em genética é a crença de que os traços de
caráter de um organismo são determinados unicamente por sua
composição genética ( ou são mais profundamente
determinados por eles). Esse 'determinismo genético' é uma
conseqüência direta do fato de se considerar os organismos vivos
como máquinas controladas por cadeias lineares de causa e efeito.
Ele ignora o fato de que os organismos são sistemas de múltiplos
níveis, estando os genes implatados nos cromossomos, estes funcionando
dentro dos núcleos de suas células, estas embutidas nos tecidos,
e assim por diante. Todos esses níveis estão envolvidos
em interações mútuas que influenciam o desenvolvimento
do organismo e resultam em amplas variações da 'cópia
genética' ".
Ainda mais recentemente, o fascínio do determinismo
genético deu origem a uma teoria que reabilitaria o próprio
Joseph Mengele frente à comunidade científica: a sociobiologia,
na qual todo o comportamento social é entendido como predeterminado,
ou mesmo totalmente determinado pela estrutura genética. Vários
críticos apontaram para o perigo que esta teoria representa, inclusive
por dar uma base pseudo-científica para o racismo. Esta teoria também
é conhecida como o neodarwinismo social.
Duas visões de mundo
A distinção fundamental entre uma perspectiva
reducionista e uma outra de conjunto, ou sistêmica, é representada
por duas abordagens paradigmáticas amplamente distintas: a abordagem
mecanicista (reducionista) e a abordagem holísitca (do grego holos,
totalidade). A ênfase básica e característica da ciência
acadêmica oficial, nos últimos três séculos e
meio, tem sido mecanicista-reducionista. Na verdade, o tão caro
vocábulo científico análise bem ilustra
o hábito, ou melhor, a crença, de que o único
processo válido de pesquisa científica é o da dissecação
de um problema, separando seus componentes, para o resolver. Só
que, hoje em dia, a análise leva sempre a mais análise, e,
frequentemente, o problema original fica sem solução. Se
pegarmos o exemplo do quebra-cabeças, poderemos chegar à
conclusão de que existem problemas que só se solucionam
quando temos uma visão de conjunto, casos esses em que o todo
possui característcas bem mais específicas que as suas partes
constituintes.
O aspecto mecanicista-reducionista que se apresenta
na ciência atual se consolidou definitivamente com os extraordinários
sucessos da física clássica dos séculos XVIII e XIX,
e ficou ainda mais forte com o desenvolvimento da teoria atômica
da matéria. Com o exemplo dado pela física, e o grande reconhecimento
que esta ciência obteve nos meios intelectuais, não é
de se surpreender que a biologia e, ainda mais, a medicina tenham enveredado
pelo mesmo caminho, obtendo sucessos estrondosos em deslindar as bases
moleculares da vida, tendo como um dos pontos altos a descoberta dos componentes
e da estrutura, por exemplo, do DNA. Todo esse sucesso condicionou a pesquisa
e a escolha de tópicos de estudo que se retroalimentaram, exigindo
novos experimentos a análises reducionistas e encorajando, ad
infinitum, a replicação do processo e a adoção
do mesmo sistema em quase todas as outras áreas da investigação
humana resultando em verdadeiras enxurradas de trabalhos cientificistas,
em chuvas de aberrações de explicações causais
para todo tipo de fenômeno, incluindo os psicológicos e sociais.
Tanto exagero na crença de que o método
reducionista é o único válido acabou por provocar
reações enérgicas de muitos críticos inteligentes,
mas que foram ridicularizadas, minimizadas ou abafadas pelo status quo
da ciência normal padrão. Só que o próprio procedimento
científico começou a se mostrar impotente para solucionar
inúmeros problemas importantes, o que abriu um espaço para
que estas críticas pudessem, finalmente, ser ouvidas e aceitas.
Arthur Koestler, por exemplo, deixou muito claro uma das principais mazelas
desta abordagem: "Ao se negar um lugar para os valores, um sentido e um
objetivo para a tão decantada interação casual de
forças cegas, a atitude reducionista acabou por lançar a
sombra de sua influência para além dos confins da ciência,
afetando
todo o nosso clima cultural e político". Ou seja, as tentativas
para explicar a nossa existência e a de todos os organismos vivos
como se nada mais se tratassem a não ser de aglomerados atômicos
casualmente formados levou a um processo de desvalorização
moral e de uma supervalorização mercantil, egoísta
e hedonista da vida, linearizando a própria existência como
uma coisa fútil, acidental e sem sentido.
O neurobiofisiologista britânico Donald MacKey
chama esta atitude reducionista em biologia de "nada mais que".
Ele tenta exemplificar o atual estado de coisas na abordagem biomédica
usando como exemplo um letreiro luminoso. Neste instrumento, um conjunto
de lâmpadas acendem e apagam alternadamente com o propósito
de transmitir uma mensagem. Qualquer engenheiro elétrico poderia
descrever exatamente o modo como funciona o letreiro em termos da teoria
dos circuitos elétricos. Mas ele seria ridículo se afirmasse
que a função desta máquina é apenas o de acender
e pagar lâmpadas devido a pulsações elétricas
num circuito elétrico complexo. A função do letreiro
é o de passar mensagens. E estas se utilizam do substrato eletro-
físico para expressar estas mensagens. Na verdade, a descrição
do engenheiro está correta, mas muito incompleta, pois não
mencionou o fundamental: a mensagem. O conceito de mensagem, de informação,
está além do referencial teórico do engenheiro, assim
como o de psique está frequentemente fora do referencial teórico
de um neurologista. Estas limitações, porém, só
se tornam evidentes quando a operação de exibição
como
um todo é levado em consideração: a mensagem que
o letreiro expressa está num nível acima do nível
dos circuitos elétricos: ela está num nível holístico.
Outra crítica profunda feita à concepção
mecanicista da vida deve-se ao Prêmio Nobel de Química, 1977,
Ilya Prigine. Ele demonstrou que a ciência normal teima em retratar
a vida em consonância com a ideologia cultural dominante na ciência,
ou seja, como um acidental processo linear, ocorrido ao acaso. Um acidente
especial que, a partir de então, se encontra numa fútil luta
quixotesca contra a imperioso segunda lei da termodinâmica, que impele
os sistemas químico-físicos a bsucarem um equilíbrio
térmico, o que, em termos orgânicos, teria como resultado
o esgotamento funcional do sistema vivo. Mas Prigogine demonstrou que isso
não ocorre em sistemas complexos. Certas reações químicas
têm a especial capacidade de manterem o grau de entropia baixo, como
ocorre nos seres vivos. Através do estudo das chamadas Estruturas
Dissipativas, Prigogine chegou ao entendimento da ordem através
da flutuação, ou seja, em condições dinâmicas
de troca de informações e matéria com o meio, um equilíbrio
dinâmico, longe do que ocorre em estrutras fechadas, como as máquinas.
Esse princípio não se limita a processos químicos
complexos, mas se estendem aos domínios dos átomos, células,
pessoas e galáxias.
Prigogine demonstrou, juntamente com outros biólogos
sistêmicos, que um organismo biológico é um sistema
aberto, cuja saga evolutiva os tornam aptos a assegurar a vida em regimes
dinâmicos de trocas com o meio. Eles são sistemas autotranscendentes
e auto-organizadores, coisa que falta às máquinas convencionais,
que são sistemas fechados. Esta tendência do organismo de
se auto-atualizar e de se autorealizar também tem uma importância
fundamental para a Psicologia, notadamente a Psicologia Humanista, como
a de Carl Rogers,
a Psicologia
Holística, como a de Kurt Goldstein, e a Psicologia
Transpessoal.
Como muito bem nos fala o físico Paul Davies
em seu livro Deus e a Nova Física, ninguém pode negar
que um organismo é uma coleção de átomos, moléculas,
tecidos, etc. O erro está exatamente em se supor que ele é
nada
mais que isso. Semelhante pretensão, logicamente, é tão
ou mais ridícula quanto dizer que a Nona Sinfonia de Beethoven nada
mais é que uma coleção de notas, ou que um poema de
Augusto dos Anjos é apenas um conjunto de palavras, embora seja
exatamene isso que muitos cientistas dizem quando falam dos processos biológicos
e até mesmo psicológicos. A vida, o tema de uma sinfonia
ou o enredo de um romance são qualidades que emergem do nível
mais basico de seu substrato físico, e não podem ser percebidas
a nível de seus componentes.
O fato de um conceito ser abstrato em vez de concreto
ou substancial não o torna, por isso, irreal ou ilusório.
O pensamento de uma pessoa não pode ser pesado ou medido, e nem
ocupa nenhum lugar no espaço e, contudo, ele é parte integrante
do que ela é. Conceitos como sonhos, entropia, informação
não envolvem objetos ou corpos defindos, mas relações
e condições entre objetos, ou entre idéias, e se destacam
deles. Muitos dos antigos problemas do entendimento da vida desaparecem
quando se considera que conceitos "abstratos" e de alto nível -
como o de software - podem ser tão reais como as estruturas
concretas e de baixo nível que as suportam - o hardware.
O nosso mundo está cheio de coisas que não são nem
misteriosas nem fantasmagóricas, mas que tampouco são constituídos
de tijolinhos atômicos. Pena que as pessoas não pensem muito
nisso, pois as conclusões e conseqüências disso tudo
seriam consideráveis. "Essas coisas não são objetos
físicos com massa ou composição química definidas,
mas tampouco são objetos puramente fantasiosos, como o valor do
número grego Pi, que é imutável e não pode
ser localizado no espaço ou no tempo. Estas coisas têm um
lugar de nascimento e uma história. Podem mudar e é possível
que lhes aconteça algo. Podem mover-se tanto quanto uma espécie,
uma doença ou uma epidemia. Não devemos supor que a ciência
atual nos ensina que tudo o que se pretende estudar seriamente se
pode identificar como um conjunto de partículas movendo-se no espaço
e no tempo. Poder-se-á talvez pensar que é senso comum -
ou até muito bom pensamento científico - supor que cada um
de nós não passa de um ser particular, um organismo físico
montado de forma compreensível - um montão de átomos
em movimento - mas, na realidade, esta idéia revela uma falta de
imaginação científica, não uma sofosticação
fora do vulgar. Não é necessário acreditar em fantasmas
para que se acredite no Eu, que tem uma identidade que transcende qualquer
corpo vivo em particular" - D. R. Hosfstadter. (Davies, s/d, pág.
93).
O fato muito pouco percebido é o de que a
visão de mundo que a ciência normal nos dá é
condicionado por um paradigma, uma ideologia culturalmente determinada
que estabelece, a priori, o modo como o mundo deve se comportar
para que faça sentido dentro dos pressupostos básicos do
paradigma
adotado pela comunidade científica. Nossa percepção
de mundo é condicionada pelos conceitos que nos foram passados pela
nossa formação e educação intelectual. Conceitos
clássicos de matéria e energia, tempo e espaço, causalidade
linear, entre outros, contribuiram de modo definitivo para o estabelecimento
de valores e expectativas "lógicas" que determinam a explicação
e o entendimento de fenômenos, bem como na formulação
de teorias compatíveis como o background perceputal adotado. Este
peso cultural, que é inconsciente, representa um risco. Em face
de uma ciência oficial - sustentada nos moldes de uma estrutura
econômica e de relações de poder cristalizadas - que
se associa a um complexo de noções como causalidade, determinismo,
mecanicismo, racionalismo, surgiu um conjunto de temas humanos que
são estranhos a este corpo de concepções, como o de
vida,
liberdade, etc. Não reconhecendo qualquer lugar para estas concepções
dentro de sua estrutura, a ciência clássica viu esses temas
se tornarem pontos de fixação que serviram de base para o
seu questionamento valorativo. A partir de então, ficou claro que
tinhamos montado anteriormente uma ciência que procurava obter o
máximo controle sobre a natureza, e, para isso, era muito bom que
buscássemos ve-la como uma máquina. Ficou claro, assim, que
os problemas que marcam uma cultura têm uma grande influência
no conteúdo e no desenvolvimento das teorias científicas.
É necessário que prestemos atenção
ao fato de que nossa visão de mundo condiciona nossa percepção
das coisas. Devemos resgatar a importância da distinção
de níveis para não cairmos na presunção de
que nossa "especialidade" pode ser generalizada para tudo. Por exemplo,
todos os jovens que gostam de computação sabem muito bem
distinguir, no funcionamento do computador, dois níveis diferentes
de realidades que, juntas, explicam como a máquina funciona. Temos
o nível físico denomindo hardware e o nível
lógico, denominado software. Ambos os níveis explicam
muito bem determinado aspecto do funcionamento do computador, mas nenhum
dos dois se mantêm para explicar o desempenho total da máquina.
Eles decrevem muito bem coisas que se encontram em níveis conceptuais
inteiramente diferentes. Tudo depende do que se pretende saber, mas a visão
que emerge das duas abordagens é a mais próxima da realidade,
pois nenhuma das duas, isoladas, pode ser a única correta.
Todos os programadores, técnicos, operadores
e pessoas que mexem com computadores sabem que não existe incompatibilidade
entre conexões causais a nível de hardware e software. Da
mesma forma, pegando a deixa e fazendo uma comparação, o
cérebro humano consiste em bilhões de neurônios, zumbindo
interminavelmente, cada um deles ignorando o plano do conjunto cérebro
(como provavelmente uma formiga desconhece o sistema formigueiro em toda
a sua complexidade). Este mundo primário dos neurônios em
si é o mundo físico, ou bio-físico e bio-químico,
que forma um hardware. Por outro lado, temos pensamentos, sentimentos
e emoções. Este outro nível superior, e mais abstrato,
totalizante e mental, ignora o funcionamento das células
cerebrais; podemos pensar alegremente ignorando totalmente a ajuda que
os neurônios nos prestam. Mas o fato de que o nível do hardware
ser regulado pela lógica da bioquímica não entra em
contradição com o fato de o nível do software ser
ilógico ou emocional, regido por leis psicológicas mais complexas,
do mesmo modo que um romance bem escrito, rigidamente fiel às regras
da gramática, não impede que seus personagens possam se comportar
de maneira totalmente irracional. Exigir que a vida se comporte do modo
que pensamos ser o mais racionalmente correto é querer confundir
a realidade com nossos desejos do que qeremos que ela seja. Implica em
confundir os níveis de percepção. Parece não
existir qualquer razão para que a mente não possa evoluir
no tempo, embora não possa localizar-se no espaço (Davies).
Desta forma, disciplinas psicológicas que se fundamentam em teorias
como o behaviorismo e a psicanálise clássica precisam ser
revistas, por se basearem na concepção clássica mecanicista
de reação à forças mais ou menos independentes
do indivíduo.
Uma área em que as limitações
da abordagem reducionista fica muito evidente é o da neurobiologia.
O sistema nervoso é um sistema integrativo, holísitco por
excelência. Questões como as que envolvem a percepção,
a memória e a inteligência não podem ser compreendidas
apenas no âmbito de uma estrutura reducionista. Como disse Paul Weiss,
eminente biólogo e ecologista, "não existe nenhum fenômeno
em um sistema vivo que não seja molecular, mas tampouco existe
um que seja unicamente molecular". Francis Crick, por sua vez, nos
diz que "todo o trabalho biológico genético e molecular dos
últimos sessenta anos pode ser considerado um longo interlúdio.
(...) Agora que esse programa foi completado, temos de voltar ao princípio
- de voltar aos problemas deixados para trás sem solução.
Como um organismo ferido se regenera? Como é que o zigoto forma
o organismo?".
Como muito bem expressou Sidney Brenner, "nos
próximos 25 anos teremos de ensinar aos biólogos uma outra
linguagem. (...) O que se almeja, penso eu, é resolver o problema
fundamental da teoria de sistemas elaborados. (...) E aí nos deparamos
com um grave problema de níveis: talvez seja um erro acreditar que
toda a lógica está no nível molecular. Talvez seja
preciso ir além dos mecanismos de relógio".(Capra, 1986,
p.115)
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Bibilografia
Espiritualismo
Ocidental O
Holismo A
Física Moderna O
Autor
João Pessoa, Paraíba, 17/03/1997.
Revisto em 12/05/2001.
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