FESTIVAL DO RIO 99
críticas dos filmes em exibição
AS BODAS DE DEUS, de João César Monteiro
Portugal, 1999
Um pícaro em maus lençóis: As Bodas de Deus1. Por obra da divina providência, João de Deus enriqueceu, se casou, foi traído e punido sob a justiça dos homens. Ele, um pícaro ateu, idoso e raquítico, da graça à desgraça, por obra divina? No princípio, ecos ripsteinianos, certo tom surrealista a tecer, pouco a pouco, uma trama inverossímil. Como um anjo emprenhou a virgem, João enriqueceu. Ele não acredita, mas nada pode contrariá-lo: um arcanjo da marinha, trajado à caráter, lhe oferece uma fortuna e poderes ilimitados no mundo dos homens. Este detalhe dá ao filme um toque surreal que é substituído gradualmente pela incompreensão e pela pesada realidade. João é punido pelo acaso. Por um momento inicial, Deus é o acaso.
2. Depois, o gozo. João afeiçoa-se a este acaso. Descobre que, embora sua fé seja tão rala quanto sua rigidez moral, nada pode reverter o "fato" divino. Sua vivência é plácida, sua alimentação, frugal. Bebe e joga, mantendo os hábitos dos vagabundos. Lhe ocorre a ausência de uma esposa que logo aparece. Ela o enreda em seus belos braços e realiza curiosas interferências. Ela é um prêmio, ganho num jogo milionário. Como um prêmio, João trata de usufruir sexualmente do belo corpo e nesta primeira noite, nem bem o galo cantou, ela o traiu. Somando intempéries a este acontecimento, ele é denunciado como terrorista, mais uma vez, cortesia do acaso.
3. As bodas de Deus se expressa nesta dicotomia. Tudo o que, a princípio, é divinal, repentinamente transforma-se em fruto do acaso. Sua fortuna é um equívoco "divino", antes, a viagem de um louco; sua vida plácida resiste sobre o que ele mesmo não: há uma estrutura, comprometida com certo realismo fantástico (ou algo que o valha), que é suprimida na medida do acaso. João não é punido pelo s consegue dissimular, que é sua personalidade irreverente e vagabunda; sua esposa era um milagre, antes de tornar-se um Judas. A partir de um certo momento, entendemos: a trama é destruída. Esmiuçando eu passado, o que denotaria uma moral. Se há culpados, eles são a burocracia, o fascismo, a religião...
Obs.: No final do filme, uma citação: Pickpocket, de Bresson. Ocorre nesta cena uma inversão, porque o caminho de João é o contrário do caminho escolhido pelo batedor de carteiras. Um abraça a morte; outro se vê em maus lençóis, sem querer. O "caminho mais longo" é outro porque não está comprometido com nada além do acaso. O batedor precisa resolver sua árida psicologia. João não tinha nada para resolver e foi açambarcado pelos acontecimentos. O que persiste na obra de João Monteiro é uma certa incomunicabilidade com os rituais da sociedade moderna e a valorização dos aspectos mais absurdos da vida comum que, perdurando nesta sociedade, encontra-se cada vez mais sufocada. Deste modo, As bodas de Deus figura como uma comédia, mas, antes, como um filme político.
Bernardo Oliveira