André Gide - Paludes ANGÈLE
Quarta-feira
Usar uma agenda; escrever para cada dia o que se tem a fazer durante a semana, é organizar sabiamente seu tempo. Nós mesmos decidimos nossas ações; temos certeza de não depender a cada manhã da atmosfera, já que as resolvemos de antemão e sem constrangimento. Da minha agenda eu tiro o sentimento do dever; escrevo com oito dias de antecedência, a fim de ter tempo para esquecer e de me criar surpresas, indispensáveis em minha maneira de viver; assim toda noite adormeço frente a um amanhã desconhecido, e no entanto já decidido por mim mesmo.
Na minha agenda há duas partes: numa folha escrevo o que vou fazer, e na folha da frente, toda noite, escrevo o que fiz. Depois comparo; subtraio, e o que não fiz, o déficit, se torna o que deveria ter feito. Reescrevo-o para o mês de dezembro e isso me dá idéias morais. Comecei há três dias. Assim, hoje de manhã, face à indicação: tentar levantar às seis horas, escrevi: levantei às sete. Depois, entre parênteses: imprevisto negativo. Seguiam-se na agenda várias notas:
Escrever para Gustave e Léon.
Espantar-se por não receber carta de Jules.
Ir ver Gontran.
Pensar na individualidade de Richard.
Preocupar-se a respeito das relações entre Hubert e Angèle.
Encontrar tempo para ir ao Jardim das Plantas; estudar as varieades da pequena potamogetonácea para Paludes.
Ir de noite à casa de Angèle.Seguia-se este pensamento (escrevo previamente um para cada dia; eles determinam minha tristeza ou minha alegria):
"Há coisas que recomeçamos a cada dia, simplesmente porque não temos nada melhor para fazer; não há progresso nem mesmo manutenção de uma situação - mas, enfim, não se pode ficar sem fazer nada... Isso corresponde, no tempo, ao movimento, no espaço, das feras prisioneiras ou àquele das marés nas praias." Lembro-me que esta idéia me veio, passando na frente de um restaurante com terraço, ao ver os garçons servirem e tirarem os pratos. Escrevi embaixo: "Bom para Paludes." E me preparei para pensar na individualidade de Richard. Numa pequena secretária guardo minhas reflexões e comentários a respeito de meus poucos melhores amigos; uma gaveta para cada um; peguei o maço de papéis e reli:
RICHARD
Folha I
Homem excelente; merece toda a minha estima.
Folha II
Graças a uma aplicação constante, conseguiu sair da grande miséria onde o deixara a morte de seus pais. Uma de suas avós ainda vive; ele a cerca daqueles cuidados piedosos e ternos que temos freqüentemente para com a velhice; e no entanto há muitos anos que ela voltou à infância. Casou-se com uma mulher mais pobre que ele, por virtude, e a faz feliz com sua fidelidade. Quatro filhos. Sou padrinho de uma menina que manca.
Folha III
Richard tinha por meu pai uma grande veneração; é o mais fiel de meus amigos. Imagina conhecer-me perfeitamente, embora não leia nunca nada do que escrevo; é isso que me permite escrever Paludes; penso nele quando penso em Títiro; gostaria de nunca tê-lo conhecido. Angèle e ele não se conhecem; não se poderiam compreender.
Folha IV
Tenho a infelicidade de ser muito estimado por Richard; por causa disso não ouso fazer nada. A gente não se livra com facilidade de uma estima enquanto continua a apreciá-la. Muitas vezes Richard me afirma com emoção que eu sou incapaz de qualquer má ação, e isso me segura quando, às vezes, eu gostaria de me decidir a agir. Richard aprecia muito em mim essa passividade que me mantém nos caminhos da virtude, para onde me empurraram outros parecidos com ele. Ele chama freqüentemente de virtude a aceitação, porque isso a faculta aos pobres.
Folha V
Trabalho de escritório o dia inteiro; à noite, junto da mulher, Richard lê o jornal a fim de ter assunto para conversar. "Você viu", me perguntava, "a nova peça de Pailleron no Teatro Francês?" Mantém-se em dia com todas as chegadas: "Você vai ver os novos gorilas?", pergunta, quando sabe que vou ao Jardim das Plantas. Richard me trata como uma criança grande; para mim isto é insuportável; para ele, o que faço não é sério; vou contar para ele Paludes.
Folha VI
Sua mulher se chama Ursule.
Peguei uma folha VII e escrevi:
"Todas as carreiras sem auto-realização são horríveis - as que só rendem dinheiro -, e tão pouco, que é preciso recomeçar sem cessar. Que estagnações! No momento da morte, o que terão feito? Terão preenchido seu lugar. Lógico! Escolheram-no tão pequeno quanto eles próprios." Para mim isso não tem importância, porque estou escrevendo Paludes, de outra forma pensaria de mim como deles. É preciso realmente tentar variar um pouco nossa existência.Nesse momento o empregado me trouxe o desjejum e algumas cartas, uma precisamente de Jules, e eu parei de me espantar com seu silêncio; pesei-me, por higiene, como toda manhã; escrevi para Léon e Gustave algumas frases; depois, tomando minha tigela diária de leite (à maneira de alguns lake poets), pensei: Hubert não entendeu nada de Paludes; não pode se convencer de que um autor não escreva para distrair, desde que não escreve mais para informar. Títiro o entedia; ele não compreende um estado que não seja um estado social; acredita estar longe disso porque se agita; devo ter-me explicado mal. Está tudo bem, pensa ele, já que Títiro está contente; mas é justamente porque Títiro está contente que eu quero deixar de estar. Ao contrário, é preciso que as pessoas se indignem. Vou tornar Títiro desprezível de tanta resignação... Eu ia recomeçar a pensar na individualidade de Richard quando ouvi tocar a campainha e ele próprio, fazendo passar seu cartão de visita, entrou. Fiquei um pouco contrariado, não podendo pensar claramente nas pessoas em presença delas.
- Ah! caro amigo! - exclamei ao abraçá-lo. Precisamente, que coincidência! Eu ia pensar em você hoje de manhã.
- Venho pedir-lhe um favor - disse ele. - Oh! coisa de nada; mas como você não tem nada para fazer, pensei que poderia conceder-me alguns instantes; uma simples assinatura para apor; uma apresentação; preciso de um padrinho; você vai responder por mim; vou explicar-lhe tudo no caminho; apressemo-nos; devo estar no escritório às dez horas.
Tenho horror de parecer desocupado; respondi:
- Felizmente ainda não são nove horas; temos tempo; mas logo depois tenho algo a fazer no Jardim das Plantas.
- Ali! Ah! - começou ele. - Você vai ver os novos...
- Não, meu caro Richard - interrompi com aparente desembaraço -, não vou ver os gorilas; preciso ir estudar algumas variedades de pequenas potamogetonáceas para Paludes.
Imediatamente fiquei irritado com Richard por minha resposta tola. Ele ficou calado, com medo de nossa ignorância. Pensei: ele deveria dar risadas. Não ousa. A sua piedade me é insuportável. Evidentemente acha-me absurdo. Esconde de mim seus sentimentos para impedir que eu manifeste sentimentos parecidos em relação a ele. Mas nós sabemos que os temos. Nossas estimas reciprocas se mantêm em respeito, encostadas uma contra a outra; ele não ousa retirar a dele com medo de que a minha caia logo. Tem para comigo afabilidades protetoras... Ali! Não faz mal; eu conto Paludes - e comecei mansamente:
- Como vai sua mulher?
Imediatamente Richard, falando consigo mesmo, continuou:
- Ursule? Ah! A pobrezinha! São seus olhos agora que estão cansados, por culpa dela; devo contar-lhe, caro amigo, o que não diria a ninguém? Mas conheço sua discreta amizade. Eis a história toda. Édouard, meu cunhado, estava precisando muito de dinheiro; era necessário obtê-lo. Ursule sabia de tudo, porque Jeanne, sua cunhada, tinha vindo visitá-la no mesmo dia. Então minhas reservas estavam praticamente esgotadas, e para pagar a cozinheira era preciso privar Albert de suas aulas de violino. Eu estava muito triste com isso, pois são as únicas distrações de sua longa convalescência. Não sei como, a cozinheira veio a saber disso; essa moça tem muito apego por nós; você a conhece bem, é Louise. Ela nos procurou chorando, dizendo que preferiria deixar de comer a magoar Albert. Tínhamos que aceitar, para não ofender a boa moça; mas tomei a decisão de me levantar duas horas todas as noites, quando minha mulher pensa que estou dormindo, e de juntar, por meio de algumas traduções de artigos ingleses que sei a quem oferecer, o dinheiro de que privávamos a boa Louise.
- Na primeira noite tudo correu bem; Ursule dormia profundamente. Na segunda noite, mal eu me instalara, quem vejo chegar?... Ursule! Ela tivera a mesma idéia: para pagar Louise, preparava pequenas telas, que sabe a quem oferecer; você sabe que ela tem um certo talento para a aquarela ... coisas encantadoras, meu caro... Ambos estávamos muito comovidos; nos abraçamos chorando. Tentei em vão persuadi-Ia a se deitar, logo ela que se cansa tão depressa. Ela não quis; suplicou-me, como uma prova da maior amizade, que a deixasse trabalhar perto de mim; tive que consentir, mas ela se cansa. Fazemos assim todas as noites. Isto torna nossas vigílias um pouco longas, apenas achamos inútil deitar primeiro, já que não nos escondemos mais um do outro.
- Mas é muito comovente o que você está me contando - exclamei, e pensei: não, jamais poderei falar-lhe de Paludes; pelo contrário... e murmurei: - Querido Richard! Creia que entendo bem suas tristezas... você é mesmo muito infeliz.
- Não, caro amigo - retrucou ele. - Não sou infeliz. Poucas coisas me foram concedidas, mas eu fiz minha felicidade com poucas coisas; você pensa que lhe contei minha história para inspirar piedade? Em torno de mim o amor e a estima, o trabalho perto de Ursule à noite... eu não trocaria estas alegrias...
Houve um silêncio bastante longo. Eu perguntei:
- E as crianças?
- Pobres crianças! - exclamou ele. - É isso que me entristece: precisariam viver ao ar livre, brincar ao sol; murcham nesses cômodos muito apertados. Para mim tanto faz; estou velho; já me conformei com essas coisas, mas meus filhos não são alegres, e eu sofro com isso.
- É verdade - repliquei - que a sua casa tem cheiro de abafado; mas quando se abrem demais as janelas, os cheiros da rua sobem todos... Enfim, há o jardim do Luxemburgo... É mesmo o assunto de...
- Mas logo pensei: não, definitivamente não posso lhe falar de Paludes... e tomei a atitude, no fim da frase, de quem cai numa profunda meditação.
Depois de alguns momentos eu ia, em desespero de causa, pedir notícias da avó, quando Richard me avisou que tínhamos chegado. - Hubert já está aqui - disse ele. - Aliás, não expliquei nada para você... estava precisando de dois avalistas. Não faz mal; você vai entender... vão ser lidos os papéis.
- Creio que vocês se conhecem - acrescentou Richard, enquanto eu apertava a mão de meu grande amigo. Hubert já ia começando:
- Então, e Paludes?
Apertei-lhe a mão com mais força e lhe disse em voz baixa:
- Shh! Agora não! Daqui a pouco você vai sair comigo; aí vamos conversar.
Logo após a assinatura dos papéis, Hubert e eu nos despedimos de Richard e fomos andando. Ele ia a um curso prático de parto, justamente ao lado do jardim das Plantas.
- Pois bem - comecei -, aí vai: você se lembra dos frangos d'água; Títiro matava quatro, dizia eu. Nada disso! Não pode: a caça é proibida. Logo surge um padre: a Igreja, diz ele a Títiro, teria visto com muita tristeza Títiro comer marrecos; é uma caça pecaminosa; o cuidado nunca é demais; o pecado nos espreita por toda parte; na dúvida, o melhor é a abstinência; demos a preferência à maceração; a Igreja conhece algumas excelentes e cuja eficácia é certa. Ousarei aconselhar a um irmão: coma, coma minhocas.
- Assim que o padre sai, aparece um médico e pergunta: Você ia comer marrecos? Não sabia que é muito perigoso? Nestes pântanos há o perigo da febre maligna; é preciso adaptar seu sangue; similia similibus, Títiro! Coma minhocas (lumbriculi limosi) - a essência dos pântanos se concentra nelas, e além disso é um alimento muito nutritivo.
- Que nojo! - disse Hubert.
- Não é? - continuei. - E tudo isso é horrivelmente falso; você entende que se trata apenas de uma questão de guarda florestal! Mas o que mais espanta é que Títiro experimenta; em poucos dias se acostuma; chega a achá-las deliciosas. Diga! Esse Titiro não é repugnante?
- É um bem-aventurado - disse Hubert.
- Então, falemos de outra coisa - exclamei, irritado. E lembrando-me de repente que devia preocupar-me com o relacionamento entre Hubert e Angèle, tentei estimulá-lo a falar:
- Que monotonia! - recomecei, depois de um silêncio. Nenhum acontecimento! - Seria preciso tentar mexer um pouco em nossas existências. Mas não inventamos nossas paixões! - Aliás, eu só conheço Angèle; ela e eu nunca nos amamos de maneira muito decisiva: o que lhe direi hoje à noite, poderia ter lhe dito na véspera; não há progresso...Entre uma frase e outra eu ficava esperando. Ele continuava calado. Então prossegui maquinalmente:
- Para mim tanto faz, porque estou escrevendo Paludes, mas o que não suporto é que ela não compreenda esse estado ... Foi isso, aliás, o que me deu a idéia de escrever Paludes. Afinal Hubert começou a se excitar:
- Por que você quer perturbá-la, se ela é feliz assim?
- Mas ela não é feliz, meu caro amigo. Ela acredita ser feliz porque não se dá conta de seu estado; você compreende que se à mediocridade se acrescenta a cegueira, fica ainda mais triste.
- E se você chegar a abrir-lhe os olhos; se conseguir torná-la infeliz?
- Já seria muito mais interessante; pelo menos ela não estaria mais satisfeita; buscaria algo. - Mas não pude saber mais nada, porque nesta altura Hubert encolheu os ombros e calou-se. Um momento depois, recomeçou:
- Não sabia que você conhecia Richard.
Era quase uma pergunta; eu poderia ter-lhe dito que Richard era Títiro, mas, como não reconhecia em Hubert nenhum direito de desprezar Richard, disse-lhe simplesmente:
- É um rapaz de muito valor. - E prometi a mim mesmo, em compensação, falar disso à noite com Angèle.
- Então, adeus - disse Hubert, compreendendo que não falaríamos. Estou com pressa, você não anda suficientemente rápido. A propósito, hoje às seis horas da tarde não poderei ir vê-lo.
- Tanto melhor - respondi -, vamos mudar algo.Ele se foi. Eu entrei sozinho no jardim; dirigi-me lentamente para as plantas. Gosto desses lugares; vou com freqüência; todos os jardineiros me conhecem; eles me abrem os recintos reservados e pensam que sou um cientista porque, perto dos tanques, eu me sento. Graças a uma vigilância contínua, esses tanques são deixados intactos; são alimentados por uma água que escorre sem ruído. Neles crescem as plantas que nascem naturalmente e nadam muitos insetos. Eu me ocupo em olhá-los; foi mesmo um pouco isso que me deu a idéia de escrever Paludes; o sentimento de uma contemplação inútil, a emoção que experimento diante das delicadas coisas cinzentas. Nesse dia escrevi pensando em Títiro:
Acima de todas, me atraem as grandes paisagens planas - as charnecas monótonas -, e faria longas viagens para encontrar terrenos pantanosos, mas os tenho aqui à minha volta. Não pensem com isso que eu seja triste; não sou nem mesmo melancólico; sou Títiro e solitário e amo uma paisagem assim como um livro que não me distrai de meu pensamento. Pois o meu pensamento, ele é triste; é sério e, mesmo estando perto dos outros, sombrio; amo-o mais que tudo, e é para passeá-lo que procuro sobretudo as planícies, as lagoas sem sorrisos, as charnecas. Eu o passeio suavemente por essas terras.
Por que meu pensamento é triste? Se eu sofresse com isso, perguntaria a mim mesmo com mais freqüência. Se vocês não chamassem minha atenção para isso, talvez eu nem soubesse, pois muitas vezes ele se diverte com muitas coisas que não interessam absolutamente a vocês. Assim ele se compraz em reler essas linhas; alegra-se em ocupações insignificantes - é inútil que lhes diga porque vocês não as reconheceriam ...Soprava um ar quase morno; acima da água se inclinavam frágeis gramíneas que alguns insetos dobravam. Um impulso germinativo separava as margens das pedras; um pouco de água fugia, umedecia as raízes. Musgos, descidos até o fundo, davam uma ilusão de profundidade com a sombra: algas glaucas retinham bolhas de ar para a respiração das larvas. Passou um hidrófilo. Não pude conter um pensamento poético e, tirando outra folha do bolso, escrevi:
Títiro sorri.
Depois disso senti fome e, reservando o estudo das potamogetonáceas para outro dia, fui procurar ao longo do Sena o restaurante de que Pierre me falara. Pensei que estaria sozinho. Lá encontrei Léon, que me falou de Edgar. À tarde visitei alguns literatos. Pelas cinco horas começou a cair uma pequena pancada de chuva; voltei para casa; escrevi as definições de vinte vocábulos da escola e encontrei para a palavra blastoderma até oito epítetos novos.
À noite estava um pouco cansado e, depois do jantar, fui dormir em casa de Angèle. Digo em casa dela e não com ela, não tendo nunca feito com ela mais do que pequenos simulacros anódinos. Ela estava só. Quando entrei, estava tocando com precisão uma sonatina de Mozart num piano recém-afinado. Já era tarde, e não se ouviam outros ruídos. Angèle tinha acendido todas as velas dos castiçais e posto um vestido de xadrezinho.
Angèle - falei ao entrar -, deveríamos tentar variar um pouco nossas vidas! Você vai me perguntar mais uma vez o que acabo de fazer hoje?
Provavelmente ela não entendeu bem a amargura da minha frase, porque me perguntou logo:
- Então, o que é que você fez hoje?
Ai, sem querer, respondi:
- Vi meu grande amigo Hubert.
- Ele acaba de sair daqui - retrucou Angèle.
- Mas você nunca poderá nos receber juntos, querida Angèle? - exclamei.
Ele talvez não faça tanta questão, disse ela. Enfim, se você o deseja muito, venha jantar comigo sexta-feira à noite; ele estará aqui. Você nos lerá versos... A propósito, amanhã à noite: já convidei você? recebo alguns literatos; você está incluído. A reunião é às nove horas.
- Vi vários hoje - respondi, falando dos literatos. Gosto dessas existências tranqüilas. Trabalham sempre, e no entanto a gente não os incomoda nunca; parece, quando se vai vê-los, que eles só trabalhavam por você e que preferem conversar com você. Suas amabilidades são encantadoras; eles têm tempo para prepará-las. Gosto dessas pessoas cuja vida é constantemente ocupada, mas talvez ocupada conosco. E como não fazem nada que valha a pena, não se tem remorso de roubar seu tempo. Mas, a propósito, estive com Títiro.
- O celibatário?
- Sim, mas na realidade é casado, pai de quatro filhos. Chama-se Richard... não me diga que acaba de sair daqui, você não o conhece.
Angèle, um pouco melindrada, me disse então:
- Você está vendo que não era verdadeira a sua história!
- Por que não era verdadeira? Porque são seis em lugar de um! Eu fiz Títiro sozinho para concentrar essa monotonia; é um processo artístico; você não vai querer que os ponha todos seis pescando com anzol?
- Estou tão certa que na realidade eles têm ocupações diferentes!
- Se eu as descrevesse, pareceriam excessivamente diferentes; os acontecimentos contados não conservam entre si os valores que tinham na vida. Para permanecermos verdadeiros, somos obrigados a fazer arranjos. O importante é que eu exprima a emoção que me dão.
- Mas se essa emoção é falsa?
- A emoção, querida amiga, nunca é falsa; por acaso você não leu alguma vez que o erro vem a partir do julgamento? Mas por que contar seis vezes, já que a impressão que eles dão é a mesma, exatamente seis vezes. . . Você quer saber o que eles fazem, na realidade?
- Fale - disse Angèle - Você está com um ar exasperado.
- Em absoluto - gritei... - O pai faz escrituração; a mãe cuida da casa; um filho mais velho dá aulas; outro recebe; a primeira filha manca; a última, ainda muito pequena, não faz nada. Há também a cozinheira... A mulher se chama Ursule... E note que todos fazem exatamente a mesma coisa todos os dias!
- Talvez sejam pobres - alegou Angèle.
- Evidentemente! Mas você compreende Paludes? Richard, ao acabar os estudos, perdeu o pai, um viúvo. Precisou trabalhar; tinha poucos haveres, que um irmão mais velho arrebanhou; mas trabalhar em tarefas ridículas, imagine só! Aquelas que só rendem dinheiro! Nos escritórios, a cobrar por cópias! em vez de viajar! Ele não viu nada; sua conversa tornou-se insípida; lê os jornais para poder conversar quando tem tempo. Todas as suas horas estão tomadas. Não está dito que jamais possa fazer algo diferente antes de morrer. Casou-se com uma mulher mais pobre que ele, por dignidade, sem amor. Ela se chama Ursule. Ah! Eu já havia dito. Fizeram do casamento uma lenta aprendizagem do amor; chegaram a se amar muito, e a me contar. Eles gostam muito dos filhos, os filhos gostam muito deles ... há também a cozinheira. Domingo à noite todos jogam loto ... ia esquecendo a avó; ela também joga, mas como não enxerga mais as fichas, dizem baixinho que ela não conta. Ah! Angèle! Richard! Tudo na vida dele foi inventado para tapar buracos, para preencher lacunas muito profundas, tudo! inclusive sua família. Ele nasceu viúvo; são cada dia as mesmas mesquinharias lamentáveis, os substitutos de todas as coisas melhores. E agora não pense mal dele, é extremamente virtuoso. Aliás, ele se considera feliz.
- Mas como! Você está soluçando? - perguntou Angèle.
- Não ligue, é nervoso. Angèle, querida amiga: afinal de contas você não acha que nossa vida carece de aventura real?
- O que fazer? - continuou ela suavemente.
- Você não quer que partamos, nós dois, para uma viagenzinha? Por exemplo, sábado... você não tem nada a fazer?
- Nem pense nisso, Angèle. Depois de amanhã?
- Por que não? Partiríamos juntos de manhãzinha; você jantaria aqui na véspera, com Hubert; ficaria aqui para dormir perto de mim... E agora, adeus; vou dormir; está ficando tarde, e você me cansou um pouco. A empregada já preparou o seu quarto.
- Não, não vou ficar, querida amiga, desculpe-me; estou muito excitado. Antes de deitar tenho necessidade de escrever muito. Até amanhã. Eu volto para casa.
Queria consultar minha agenda. Saí quase correndo, ainda mais porque estava chovendo, e eu não tinha guarda-chuva. Assim que cheguei escrevi, para um dia de uma próxima semana, este pensamento, não apenas a propósito de Richard. "Virtude dos humildes - aceitação; e isto se adapta tão bem a alguns, que chegamos a concluir que sua vida é feita na medida exata de sua alma. Sobretudo não ter pena deles: seu estado lhes convém; deplorável! Não percebem mais a mediocridade quando ela deixa de ser uma mediocridade de ordem material. O que eu dizia, sobressaltado, para Angèle é a pura verdade: os eventos acontecem a cada um conforme suas afinidades peculiares. Cada um encontra o que lhe convém. Assim, se a pessoa se contenta com o medíocre que tem, prova que este modíocre corresponde à sua dimensão, e nada diferente acontecerá. Destinos feitos sob medida. Necessidade de romper suas roupas como o plátano ou o eucalipto, ao crescerem, rompem sua casca."
- Estou escrevendo demais - disse a mim mesmo. - Bastavam quatro palavras. Mas não gosto de fórmulas. Agora, examinemos a proposta prodigiosa de Angèle. Abri a agenda no primeiro sábado, e na folha desse dia pude ler:
"Tentar levantar às seis horas. Variar as emoções.
- Escrever para Lucien e Charles.
- Encontrar o equivalente do nigra sed formosa para Angèle.
- Esperar que poderei acabar Darwin.
- Visitar: Laure (explicar Paludes), Noémi, Bernard; transtornar Hubert (importante).
- Ao cair da noite procurar passar na ponte Solférino.
- Procurar epítetos para fungosidades."Era só. Retomei a caneta, risquei isso tudo e escrevi simplesmente:
"Fazer com Angèle uma pequena viagem de prazer."
Depois fui deitar.