André Gide - Paludes HUBERT
Terça-feira
Por volta das cinco horas a temperatura baixou; fechei as janelas e recomecei a escrever. Às seis horas chegou meu grande amigo Hubert; vinha do picadeiro.
Disse:
- Ah! Você está trabalhando?
Respondi:
- Estou escrevendo
- O que é?
- Um livro.
- Para mim?
- Não.
- Excessivamente erudito?...
- Enfadonho.
- Por que escrevê-lo então?
- E quem então o escreveria?
- Mais uma vez confissões?
- Quase nada.
- Então o quê?
- Sente-se.
E uma vez sentado:
- Li em Virgílio dois versos:Et tibi magna satis quamvis lapis omnia nudus
Limosoque palus obducat pascua junco.Vou traduzir: É um pastor que fala com outro; diz que seu campo está cheio de pedras e pântanos, não há dúvida, mas é suficientemente bom para ele; e que está muito feliz em se contentar com isso. Você vai dizer: "Quando não se pode mudar de campo, este é o pensamento mais ajuizado... Hubert não disse nada. Eu continuei: Paludes é especialmente a história de quem não pode viajar; em Virgílio chama-se Títiro; Paludes é a história de um homem que, possuindo o campo de Títiro, não se esforça por sair e sim, ao contrário, se contenta com isso; pronto... Vou contar: No primeiro dia ele constata que se contenta com isso, e pensa no que fazer, No segundo dia, vendo passar aves, mata de manhã quatro frangos-d'água ou marrecos, e à noite come dois assados num parco fogo de gravetos. No terceiro dia se distrai construindo uma cabana de caniços. No, quarto dia come os dois últimos frangos-d'água. No quinto dia, desmancha a cabana e tenta uma casa mais elaborada. No sexto dia...
- Basta! - disse Hubert. - Já entendi; caro amigo, você pode ir escrevendo.
Foi embora.Já era noite. Arrumei meus papéis. Não jantei; saí; pelas oito horas entrei na casa de Angèle. Angèle, ainda sentada à mesa, estava acabando de comer algumas frutas; sentei-me ao seu lado e comecei a descascar uma laranja para ela. Trouxeram doces e, quando ficamos de novo sozinhos:
- O que é que você fez hoje? - perguntou Angèle preparando-me uma fatia de pão com geléia.
Eu não lembrava de nenhum ato e respondi irrefletidamente:
- Nada. - Mas logo, receando digressões psicológicas, pensei na visita e exclamei: - Meu grande amigo Hubert foi me visitar às seis horas.
- Ele acaba de sair daqui - replicou Angèle; depois, ressuscitando antigas discussões a propósito dele: -Pelo menos ele faz algo, ele se ocupa.
Eu dissera que não tinha feito nada; fiquei irritado:
- Como? O que é que ele faz? - perguntei...
Ela lançou:
- Montes de coisas... Em primeiro lugar, monta a cavalo... e depois você sabe: é sócio de quatro companhias industriais; dirige com o cunhado outra companhia de seguros: acabo de fazer um. Freqüenta cursos de biologia popular e faz leituras públicas toda terça-feira à noite. Conhece bastante medicina para ser útil em caso de acidentes. Hubert pratica o bem: cinco famílias indigentes lhe devem a subsistência; coloca trabalhadores desempregados em empresas que precisam de pessoal. Manda crianças fracas para estabelecimentos no campo. Fundou uma oficina de empalhação destinada a jovens cegos, Finalmente, aos domingos, ele caça. E você, o que faz?
- Eu! - respondi um pouco constrangido. - Escrevo Paludes.
- Paludes? O que é? - perguntou ela.Logo que sentamos no canto da lareira:
- Paludes - comecei - é a história de um celibatário numa torre cercada de pântanos.
- Ah! - exclamou ela.
- Chama-se Títiro.
- Que nome feio!
- Absolutamente - repliquei - está em Virgílio. E além disso, não sei inventar.
- Por que celibatário?
- Oh! ... para maior simplicidade.
- É só isso?
- Não; eu conto o que ele faz.
- E o que é que ele faz?
- Contempla os pântanos...
- Por que é que você escreve? - recomeçou ela depois de um silêncio.
- Eu? Não sei. Provavelmente é para fazer algo.
- Você me lerá isso - disse Angèle.
- Quando você quiser. Tenho justamente quatro ou cinco folhas no bolso. - E tirando-as logo, li para ela, com toda a atonia desejável:
DIÁRIO DE TÍTIRO
OU PALUDESAo levantar um pouco a cabeça, vejo da minha janela um jardim que ainda não observei bem; à direita, um bosque que vai perdendo as folhas; para lá do jardim, a planície; à esquerda, uma lagoa da qual voltarei a falar. O jardim, ainda há pouco, estava plantado de malvas-rosas e aquilégias, mas minha incúría deixou as plantas crescerem ao deus-dará; por causa do charco próximo, os juncos e os musgos invadiram tudo; os caminhos desapareceram por baixo do capim; só resta, para eu poder andar, a grande aléia que vai do meu quarto até a planície, e que tomei um dia em que fui passear. À noite, os animais do bosque a atravessam para ir beber a água da lagoa,- por causa do crepúsculo, só distingo formas cinzentas, e como depois é noite fechada, nunca os vejo voltar.
- Eu ficaria com medo - disse Angèle -, mas continue; está muito bem escrito.
Das janelas de sua torre, Títiro pode pescar com anzol...
Eu estava muito tenso com o esforço dessa leitura:
- Oh! É quase só isso - disse eu -; o resto não está acabado.
- Notas - exclamou ela -, mas leia! -É o mais divertido; a gente vê o que o autor quer dizer muito melhor do que aquilo que ele vai escrever depois.
Então continuei - antecipadamente decepcionado e, de qualquer maneira, procurando dar a essas frases uma aparência inacabada:- Mais uma vez, são simples notas...
- Vá em frente!Esperas sombrias do peixe; insuficiência das iscas, multiplicação das linhas (símbolo) - por necessidade não pode pegar nada.
- Por quê?
- Pela verdade do símbolo.
- Mas, enfim, se ele pegasse algo?
- Então seria outro símbolo e outra verdade.
- Não há mais verdade nenhuma, já que você arruma os fatos como lhe agrada.
- Eu arrumo os fatos de maneira que se tornem mais conformes à verdade do que na realidade; é muito complicado para lhe explicar isso agora, mas é preciso admitir que os acontecimentos estão apropriados aos caracteres; é isso que faz os bons romances; nada do que ocorre conosco é feito para outros. Hubert já teria feito lá uma pesca milagrosa! Títiro não pega nada: é uma verdade psicológica.
- Enfim, está bem; continue.Prolongamento dos musgos da margem por baixo da água. Indecisão dos reflexos; algas; peixes passando. Evitar, falando deles, chamá-los "estupores opacos".
- Espero que não o faça! Mas por que essa nota?
- Porque meu amigo Hermogène já chama assim as carpas.
- Não acho feliz essa expressão.
- Tudo bem. Posso continuar?
- Por favor; são muito divertidas suas notas.Títiro, de madrugada, avista cones brancos elevando-se na planície; salinas. Desce para ver o trabalho. Paisagem inexistente; escarpas muito estreitas entre duas salinas. Brancura muito forte do sal cristalizado (símbolo); só se pode ver quando tem bruma; óculos escuros preservam os trabalhadores das oftalmias. Títiro põe um punhado de sal no bolso, depois volta para a sua torre.
- Acabou.
- Acabou?
- É só isso que escrevi.
- Tenho medo que sua história seja um pouco maçante - disse Angèle.
Houve um vasto silêncio, após o qual exclamei emocionado:
- Angèle, Angèle, por favor, quando é que você compreenderá enfim o que faz o assunto de um livro? A emoção que a minha vida me deu, é essa que quero transmitir: tédio, vaidade, monotonia, quanto a mim não importa, porque estou escrevendo Paludes, mas a vida de Títiro não é nada; nossas vidas, lhe garanto, Angèle, são ainda mais insossas e medíocres.
- Mas eu não acho - discordou Angèle.
- É porque você não pensa nisso. Esse é justa mente o assunto do meu livro; Títiro não está insatisfeito com sua vida; sente prazer ao contemplar os pântanos; uma variação do tempo os faz mudar de aspecto; mas Angèle, olhe para si mesma! Olhe para sua história! Está bem pouco variada! Há quanto tempo você mora neste quarto? Aluguéis baratos! Aluguéís baratos! E você não é a única! janelas para a rua, janelas para os fundos; olhamos para muros ou para outras pessoas que nos olham... Mas será que eu vou agora envergonhá-la de suas roupas... e você acredita realmente que soubemos nos amar?
- Nove horas - disse ela -; esta noite Hubert faz sua leitura, e permita-me que eu vá.
- O que é que ele lê? - perguntei sem querer.
- Fique certo de que não é Paludes! - Ela saiu.
Em casa, tentei pôr em versos o início de Paludes - escrevi o primeiro quarteto:
Pelas vidraças da janela
Se eu levantar um pouco a testa
Um bosquezinho se revela
Que não esteve nunca em festa.
Depois fui deitar, tendo acabado o meu dia.