| Fernando Pessoa |  | 
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Mente tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem, 
Não as duas que ele teve, 
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda 
Gira, a entreter a razão, 
Esse comboio de corda 
Que se chama coração.
Uma maior solidão
Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração. 
Enevoa-se-me o ser 
Como um olhar a cegar, 
A cegar, a escurecer. 
Jazo-me sem nexo, ou fim... 
Tanto nada quis de nada, 
Que hoje nada o quer de mim.
Se estou só, quero não estar 
Se estou só, quero não estar, 
Se não estou, quero estar só, 
Enfim, quero sempre estar 
Da maneira que não estou. 
Ser feliz é ser aquele. 
E aquele não é feliz, 
Porque pensa dentro dele 
E não dentro do que eu quis. 
A gente faz o que quer 
Daquilo que não é nada, 
Mas falha se o não fizer, 
Fica perdido na estrada. 
Verdadeiramente
Verdadeiramente 
Nada em mim sinto. 
Há uma desolação 
Em quanto eu sinto. 
Se vivo, parece que minto. 
Não sei do coração 
Outrora, outrora 
Fui feliz, embora 
Só hoje saiba que o fui. 
E este que fui e sou, 
Margens, tudo passou 
Porque flui. 
Aqui neste profundo apartamento
Aqui neste profundo apartamento 
Em que, não por lugar, mas mente estou, 
No claustro de ser eu, neste momento 
Em que me encontro e sinto-me o que vou, 
Aqui, agora,  rememoro 
Quanto de mim deixer de ser
E, inutilmente, [....] choro 
O que sou e não pude ter. 
Deixei atrás os erros do que fui
Deixei atrás os erros do que fui, 
Deixei atrás os erros do que quis 
E que não pude haver porque a hora flui 
E ninguém é exato nem feliz. 
Tudo isso como o lixo da viagem 
Deixei nas circunstâncias do caminho, 
No episódio que fui e na paragem, 
No desvio que foi cada vizinho. 
Deixei tudo isso, como quem se tapa 
Por viajar com uma capa sua, 
E a certa altura se desfaz da capa 
E atira com a capa para a rua.