MENSAGEM RECEBIDA DE FLÁVIO WOLF DE AGUIAR, 20/02/01:
Amicci
Desculpe voltar a estas mensagens coletivas. Escrevi o texto em anexo e
mandei para o Estadão. Eles até agora não se mexeram. Então estou
divulgando assim. Flávio
 

 
Repasses:
Em defesa da cultura canadense

por Flávio Wolf de Aguiar*

A leitura do artigo de Mauro Chaves, “A falta de caráter canadense”, publicado na pág. 2 de O Estado de São Paulo em 10/02, deixou-me entre entre estarrecido e consternado. Estarrecido pelo desconhecimento e falta de informação que o artigo demonstra; consternado, pela atitude de desprezo e intolerância que induz.

Morei ao todo tres anos no Canadá e já visitei o país várias vezes nos últimos vinte anos, quase sempre a trabalho. Conheço as Universidades de Montreal, de Laval, na cidade de Québec, a de Toronto, a McGill e a Universidade de Québec em Montréal (Uqam). O intercâmbio entre Universidades brasileiras e canadenses é extenso e intenso, abrangendo um sem número de áreas do conhecimento. No Brasil existe uma Associação Brasileira de Estudos Canadenses, com Núcleos em Universidades de Norte a Sul do país. Sou pai de uma cidadã canadense, cujo nascimento, em 1981, e o posterior cuidado pediátrico propiciou-me um contato estreito com o sólido e organizado sistema de saúde pública local. Em nada o Canadá que eu conheço se parece com o país inóspito e insosso descrito no artigo de Mauro Chaves.

Devo dizer também que aprendi a falar o francês no Canadá, embora quando para lá fosse pela ;primeira vez eu já lesse fluentemente a língua. Levo comigo, portanto, aquilo que o articulista chama de “o horroroso sotaque” local que, diga-se de passagem, tem traços, embora leves, da langue d’oc que, como se sabe, foi berço da lírica ocidental em línguas modernas.

O país descrito por Mauro Chaves é um país irrelevante do ponto de vista cultural, de natureza hostil e monótona – feia, portanto – sem identidade e vil do ponto de vista diplomático.

Coloquemos alguns pingos em alguns iis. A atitude do governo canadense no caso da carne brasileira foi deplorável e exigiria, a bem dizer, um pedido formal de desculpas ao governo, produtores de carne e ao povo brasileiros. Ela destoa, inclusive, da tradição diplomática daquele país, a não ser que nela vejamos ainda algum resquício das antigas políticas do Império Britânico, quando as potências européias apreciavam colocar outros países, sobretudo os crioulos, de joelhos.

Mas daí a supor que por trás dessa atitude há o ressentimento da “mediocridade” diante do nosso  "“brilho" brasileiro vai uma distância intransponível.

Há contenciosos graves na história canadense. O separatismo da Província do Québec é um deles. A questão tem dois séculos e meio de idade, teve momentos dramáticos como a revolta dos habitantes da província no começo do século XIX e a repressão subseqüente, que chegou aos enforcamentos em praça pública. Em 1970 um sequestro promovido pela Frente de Liberação do Québec causou a morte de um ministro provincial - Pierre Laporte – coisa sem dúvida lamentável. Na ocasião o Exército canadense praticamente ocupou a cidade de Montreal, prendendo intelectuais e ativistas. São fatos que até hoje deixaram seqüelas pungentes e dolorosas. Mas mais recentemente a questão da independência ou da maior autonomia do Québec, em que pese o freqüente amargor das discussões, vem sendo tratada através de eleições e plebiscitos, o que é exemplar, diante das matanças que por vezes se promovem na própria Europa, por exemplo. 

Vamos ao campo da cultura. Diz o artigo que uma das únicas obras literárias de relevância no Canadá é o romance Two solitudes, de Hugh MacLennan. Não leva em conta, portanto, que a poesia do Québec está entre as melhores do mundo. Se em grande parte é desconhecida aqui no Brasil, isto se deve mais a problemas de natureza editorial e de mídia do que a questões de qualidade da produção. Nomes como Anne Hébert, Saint-Denis Garneau, Paul Chamberland, Michelle Lalonde, Pierre Vallières no ensaio, Gilles Marcotte na crítica, Gabrielle Roy no romance, Jacques Ferron no conto parecem então nada significar. A própria crítica francesa reconhece que além de Anne Hébert, Gaston Miron é um dos maiores poetas da língua, de todos os tempos, ao lado de Villon, Rutebeuf, du Bellay, Baudelaire, Valéry e tantos outros. No lado inglês a poesia e o conto de Margaret Atwood não podem ser esquecidos, nem o trabalho inovador de Marshall MacLuhan ou o crítico de Northrop Frye, reputado mundialmente como um dos maiores teóricos da literatura de toda a história. E na música popular lá estão Gilles Vigneault e Leonard Cohen, e na erudita Green Gould. O cinema canadense é exuberante – não só pelos festivais (e o Festival de Teatro de Québec está entre os mais importantes do mundo) – mas também pela produção: aí estão, para citar alguns nomes, O declínio do império americano, Jesus de Montreal, além da participação do país no já clássico A guerra do fogo. Este filme, aliás, foi em parte filmado no Canadá, na sua “monótona paisagem”, que, como se sabe, desfruta de um dos mais belos outonos que se pode contemplar. A produção de documentários e de curtas-metragens é extensa e prima pela qualidade. Nas artes plásticas, além de artistas de valor, há o caso dos inuit (antes chamados indevidamente de esquimós), cuja produção pictórica e escultórica é extraordinária.

No mundo dos espetáculos, quem pode desconhecer o Cirque du Soleil? Este não está reputado entre os melhores do mundo. Não. Em matéria de espetáculo circense ele é considerado o melhor de todo o mundo. E a Escola Nacional de Circo, que recruta estudantes no mundo inteiro, só encontra rivais na França e na Inglaterra.

Quanto à culinária, prefiro a brasileira, ou as brasileiras, por gosto, hábito e criação. Mas não dispenso minha ração anual de sirop d’érable, ou maple syrup, uma espécie de melaço saborosíssimo e peculiar obtido através da fervura da seiva do bordo, a árvore nacional canadense, aquela da folhinha na bandeira.

Deve-se também registrar que muitos de nossos compatriotas encontraram asilo no Canadá, durante a recente ditadura militar, acolhida que, esperemos, jamais tenhamos de retribuir ao povo canadense.

Enfim, estas são algumas notas breves e lembranças apressadas apenas para sugerir que não é boa política julgar a cultura ou o “caráter” de um povo à luz de uma atitude injusta de seu governo. Senão, o que seria de nós, brasileiros?

* Professor de Literatura Brasileira da USP
 

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