vti_nexttolasttimemodified:TR|04 Jul 2000 18:47:48 -0200 vti_title:SR|Shared Top Border vti_modifiedby:SR|edaydos
 
UMA OBRA INOVADORA E CORAJOSA

Quando recebi o convite, honroso e desprendido, do Professor Eduardo Dutra Aydos, para prefaciar seu livro "Democracia Plebiscitária: utopia e simulacro da reforma política no Brasil", desafiou-me o inusitado, de um aluno apresentar a obra de um mestre. Percebi, claramente, no intuito desse gesto, um sinalizador da mesma irreverência e tranqüilidade, na segurança dos caminhos trilhados, pela sua experiência prática e capacidade de elaboração teórica, com que nos brinda a exploração de alguns intrincados, e talvez inéditos, meandros da nossa realidade política. Pois, afinal, na contracorrente dos procedimentos rotineiros da academia, aos quais o autor reservou sempre uma despreocupada reserva, é certo que a verdade subsiste ao modismo, no fato que um mestre se reconhece, pelo testemunho dos seus discípulos.

Faltaria, por outro lado, à verdade, se não dissesse (ou escrevesse) que aceitei a empresa com um misto de medo e orgulho, e que o desafio me parecia sobremaneira maior que as minhas possibilidades. Aceitei-o, no entanto, quando entendi que o livro do Professor Aydos prescinde de um prefácio para valorizá-lo: o seu conteúdo é o suficiente.

A tarefa, por outro lado, me foi grandemente facilitada pela própria estrutura da obra. Sua introdução poupa o apresentador, pois, ao resumir e salientar de forma clara e instigante sua proposta e objetivos, possibilita ao leitor uma visão geral do trabalho, sem, de forma alguma, esvaziar seu conteúdo. Desta forma, felizmente, pouco sobrou além do espaço para breves comentários sobre seu autor e sobre este seu livro.

 

"Democracia Plebiscitária: utopia e simulacro da reforma política no Brasil" é uma obra engajada. Não o engajamento panfletário, que, em nome de posições políticas, às vezes mal sedimentadas, abre mão do rigorismo analítico e científico, mas o engajamento pessoal do autor a princípios éticos e morais. Moral e ética são palavras repetidas à exaustão em política; sua essência, porém, nem sempre é entendida ou, o que é pior, respeitada. Não é o caso do Professor Aydos. Como aluno que fui (e que ainda me considero) e como (ouso pretensiosamente dizer) colega em atividades comuns, com ele aprendi muitas lições, entre as quais a da necessidade da coerência entre intenção e gesto, para citar o poeta. E sua intenção foi sempre a de, através da união de um rico trabalho acadêmico com um conseqüente trabalho militante, ajudar a construir uma sociedade politicamente mais justa e socialmente mais humana.

A argumentação do Professor Aydos é densa na dialética do discurso, utilizando a figura que o autor construiu para caracterizar Maquiavel. E, em seu denso discurso dialético, pode-se de forma clara apreender sua convicção, que a política e a Ciência que a estuda somente têm sentido na medida em que servirem para o equacionamento e a resolução dos problemas sociais. "Triste ciência e vã filosofia aquela que viesse a postular o enquadramento burocrático desse problema (a fraternidade), como uma abstrata responsabilidade do poder público", é o que nos ensina o autor, revelando simultaneamente seu posicionamento e a responsabilidade social de sua obra.

 

A preocupação social e ética constante em "Democracia Plebiscitária: utopia e simulacro da reforma política no Brasil" não reduzem o livro, no entanto, a um discurso humanista ingênuo. Ao contrário. O humanismo do autor cria forma e sentido nas proposições, que o livro apresenta. Fala-se muito na necessidade de serem feitas reformas políticas, no esvaziamento das instituições, na necessidade de alternativas que consubstanciem a democracia. O Professor Aydos, neste livro, porém, não se limita à (necessária) constatação dos problemas, mas avança para o (difícil e ousado) campo da solução.

Dentre as proposições que o livro oferta - reconhecidas pelo próprio autor como audaciosas - destacam-se as Quatro Teses Irreverentes para uma Estratégia da Consolidação Democrática, que, nas suas próprias palavras, "se constituem, efetivamente, no núcleo de toda a obra". No ponto de partida, a análise da realidade política brasileira contemporânea, que nos oferece, responde à lógica, sublinhada pelos clássicos, segundo a qual os homens tendem a querer sempre, e cada vez mais, aumentar o seu poder. Suas teses trabalham formas institucionais de limitação deste poder, tarefa inerente à democracia, dentro da tradição republicana. E sua fonte inspiradora é múltipla e criativa, desvelando a erudição do autor.

Da democracia grega, é resgatado, em sua Tese Primeira, o instituto do ostracismo, como mecanismo de atribuição de responsabilidade política aos governantes e de combate ao cesarismo. O seu fundamento é a conveniência de que os governantes não fiquem impunes pelos atos de sua responsabilidade, havendo, em uma democracia direta ou mais propriamente plebiscitária, a necessidade de um julgamento popular sobre o seu desempenho. Neste momento, vem à tona a formação jurídica do autor, que se imbrica com os seus conhecimentos de Ciência Política, proporcionando uma feliz síntese. Para Aydos, o ostracismo não é unicamente uma forma de evitar (ou dificultar) o poder ilimitado, mas de garantir, através da rotinização deste procedimento de exclusão, um efetivo processo de transição política para a democracia, em uma sociedade com uma cultura política "conformista e autoritária".

Sua Tese Segunda - Contra o monopólio do poder constituinte pelo Congresso - parte da constatação que "nenhuma Constituição será definitiva". Como corolário deste fato, há a necessidade de se institucionalizar mecanismos constituintes, que, segundo a análise do autor, não podem basear-se no consenso tácito, advogado por uma das vertentes da teoria contratualista. Em suas palavras, "o consenso há que ser expresso". E a expressão do consenso não se deve manifestar, unicamente, através do monopólio constituinte (ou revisional) exercido pelo Congresso, mas por mecanismos que incluam a cidadania e as Assembléias Legislativas, criando a possibilidade real de um agregado de consenso, efetivo embora provisório.

Democratizar o poder constituinte, no entanto, não implica, em hipótese alguma, na diminuição do poder do Congresso. Para Aydos, a supremacia política do Congresso é postulado, que defende em sua Tese Terceira - Sobre o princípio da separação dos poderes. Mais uma vez, o credo republicano aflora: subjacente a esta tese, o que o autor subscreve é a clássica separação e interdependência dos poderes, que a tradição brasileira nunca soube respeitar. Pode não parecer, aos estudiosos da teoria política, num primeiro momento, novidade este fato. No entanto, ao postular que todos os poderes legislativos devem ser atribuições do Congresso, o livro não se limita a reproduzir o que muitos apregoam ou contestam abstrata e superficialmente. Mas - e aí está a sua riqueza - consegue, de forma aprofundada, plotar o princípio e sua conseqüência, na miríade de problemas e contrafações, que lhe defronta a realidade política brasileira.

Por fim, o autor, em sua Tese Quarta - propugna a construção de uma República efetivamente federativa. É colocada a seguinte questão: "como transformar os Estados em centros efetivos de articulação política, capazes de sustentar uma dinâmica federalista para o sistema político brasileiro?". Sua resposta, mais que inteligente, é revolucionária: a substituição das Assembléias Legislativas por Convenções Estaduais de Municípios! Ousada proposta, que permite ao leitor vislumbrar, de maneira inequívoca, o compromisso do autor com seus ideais. Eis que assume nessa propositura, clara e conscientemente, o confronto com fortes e arraigados interesses políticos e corporativos. Somente a leitura do texto, pode esclarecer, no entanto, a dimensão da riqueza que a proposta encerra. Não se trata de um mero rearranjo institucional, mas de uma radical defesa dos princípios democráticos do autor.

Modestamente autodefinido como um ensaio, o presente livro está longe de limitar-se a isso. Seu caráter realista, no sentido concreto do termo, confere à obra um verdadeiro caráter científico. Os dados empíricos, escrupulosamente trabalhados, permitem ao leitor, mesmo que alheio ao debate político-acadêmico, acompanhar e entender o texto. E, ao mesmo tempo, sua linguagem rica, erudita e precisa, garantem o rigorismo que o tema exige.

Certamente, esta obra é marcada pela experiência recente de Eduardo Dutra Aydos, que, em um dos vários momentos, em que emprestou sua inteligência à ação política militante, sentiu na carne o arbítrio de um poder despótico. A dolorosa experiência pessoal, no entanto, pela qualidade e tenacidade de um idealista Professor, nos brindou esta brilhante (quem sou eu para julgá-la) produção intelectual viva, atual e comprometida. Oxalá, todas as desventuras da vida de todos nós, tivessem como desdobramentos contribuições para a Ciência...

O livro do professor Aydos é uma obra inovadora e corajosa. Inovadora e corajosa em seu conteúdo, extremamente provocador e instigante, pela qualidade das propostas e das análises que nos oferece. Inovadora e corajosa por atacar de frente tabus e preconceitos arraigados em nossa cultura política e em nossas instituições. Inovadora e corajosa em sua forma, que pretende - e em grande medida consegue - se constituir numa proposta: de radical rearranjo da política institucional, sem nunca perder de vista a dimensão - tão cara ao autor - dos altos princípios éticos e morais do agir e do pensar políticos. Mas, acima de tudo, uma obra inovadora e corajosa, por ser o resultado de uma feliz síntese: do conhecimento formal do acadêmico, da rica vivência do político e das duras provações, que a vida e a defesa de suas convicções lhe impuseram.

Carlos Henrique de Oliveira Castro
Professor de Ciência Política

Universidade La Salle/Canoas

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