Para radicalizar a democracia 

[Versão integral de artigo publicado na Revista Fórum de Líderes da Gazeta Mercantil - dezembro 2.000, p. 92/93]

por Eduardo Dutra Aydos*

Dizer sobre o passado, presente e futuro da nossa sociedade ao Fórum de Líderes de Gazeta Mercantil, sugere uma referência à lição clássica de Douglas McGregor, em "Motivação e Liderança", obra que vem resistindo ao tempo, como análise sociológica e livro texto.

Para McGregor, liderança é o manejo das inevitáveis condições de dependência que nos deparamos em sociedade, de tal sorte que se torne aceitável a vida, imersa na teia de relações assimétricas de poder e autoridade, onde o ser humano, de alguma forma, terá sempre que responder a alguém pelos seus atos e depender de outrem para a realização das suas expectativas. Derivadamente, os dois vetores estratégicos da liderança, são a capacidade de se prover proteção e de se assegurar espaços de auto-realização - melhor dito, de iniciativa - na construção da própria identidade pelos indivíduos e grupos sociais.

Os ventos da pós-modernidade, tocados pelo aumento assustador da incerteza na vida das pessoas e pela frustração crescente das expectativas associadas à auto-realização em sociedade, balançaram as possibilidades de concretização destas duas condições essenciais da liderança nas sociedades contemporâneas.

No rastilho desse estopim, a ampliação do desemprego combinada à falência da seguridade pública, tendem a implodir a democracia pela pressão contida de demandas insatisfeitas de proteção. E, baixos níveis de educação combinados com uma drástica perda de referência a valores éticos universais, tendem a explodir a sociedade civil em antagonismos irreversíveis, frutos da necessidade represada de se gestarem oportunidades de realização e de se reconstruírem solidariedades fragmentadas.

A implosão da democracia e a explosão da sociedade civil, são realidades que assomam o nosso cotidiano como crise de autoridade (pelo descrédito das instituições e dos governantes) e como irrupções de violência (na guerra civil endêmica de uma criminalidade induzida). A violação da lei, banalizada na sua esteira, constitui-se num fator crucial para a avaliação das possibilidades de desenvolvimento no mundo globalizado. Derrubada, em grandes linhas, a seletividade ideológica dos investimentos, resta decisivo em sua alocação a variação do risco político, como a diferença que se mede em termos de estabilidade institucional - refletindo-se por essa mesma via na própria sustentabilidade econômica - das nações.

Nesse contexto, medra o conflito irresolvido entre dois modos de ser e de administrar que, não obstante sua lógica de oposição, apresentam semelhanças estruturais que os unificam - em pensamento e ação - como os dois lados de uma mesma moeda política e como as duas faces de uma mesma carência de liderança: o neocorporativismo estadocrata e paternalista, que nutre a sua vertente esquerda; e o neoliberalismo mercadocrata e autofagista, que emula a vertente direita do totalitarismo tardio.

A proteção pode matar, por excesso de cuidado, a liberdade que pretende assegurar; e a iniciativa pode inibir, pela truculência dos mais fortes, a igualdade que pretende oportunizar. Por isso que, proteção e iniciativa são as duas faces de uma mesma moeda, e só mantidas no seu equilíbrio eqüitativo - ajustadas e reguladas na sua inevitável interação - conseguem assegurar as condições necessárias ao desenvolvimento humano e solidário.

O afrontamento eficaz aos desafios postos à liderança social pela contemporaneidade, implica assim a autonomia relativa das instâncias de integração social representadas pelo Estado e pelo Mercado. E, a solução do seu conflito hegemonista em uma condição de equilíbrio estável, exige o resgate e a mediação de um terceiro excluído, como fiel de balança nessa relação, insuscetível de atrelamento aos interesses ou mesmo à lógica dualista que articula o antagonismo de Estado e Mercado. Essa terceira dimensão da liderança, articula-se às duas outras visualizadas por McGregor, no conceito de solidariedade, cuja instância de integração social é a Comunidade: locus das interações concretas das pessoas humana, que constitui o seu mundo da vida.

Aqui, o sentido radical da democracia no liminar do século, configura o comprometimento ético da liderança social com a implementação das condições básicas da convivência aceitável, enquanto proteção, iniciativa e solidariedade. Remete à defesa intransigente da autonomia relativa (e assim também à sua mútua irredutibilidade) de Estado, Mercado e Comunidade. Refoge ao controle hegemonista sobre a sociedade, conformada pela sua interação construtiva, por quaisquer instâncias particulares de articulação política, sejam estas o Príncipe (o partido), o Capital (a empresa), o Trabalho (a corporação), ou quaisquer outras identidades locais, regionais ou nacionais, sejam estas a raça, o sexo, a religião, etc. E nos permite enfocar, ainda que rapidamente, nos limites deste texto, alguns dos desafios postos à liderança empresarial na concertação do nosso futuro.

Paradoxalmente, estes desafios dizem exatamente sobre o direcionamento de sua intervenção nos assuntos do Estado e da Comunidade, mais especificamente sobre a qualidade dessa interação.

Na relação das lideranças do Mercado com os incumbentes do Estado (e mais especificamente com os partidos) um dos aspectos mais desafiantes é, exatamente, a tendência ainda persistente da sua aproximação fisiológica: seja pelas empresas que se recusam apoiar candidatos ou partidos; seja por aquelas que os financiam indiscriminadamente (embora talvez desigualmente). No primeiro caso, a recusa do comprometimento é ingênua e demissionária; no segundo é perfunctória. Financia-se um partido para promover seu projeto político e isso é conseqüente com o prospecto da liberdade de ação e da responsabilidade política nas democracias. Mas financiam-se vários partidos, politicamente contendores e opositores ferrenhos, para assegurar-se as benesses do favor estatal, ou pagar um seguro de risco político. Em ambos os casos, a ética do afrontamento público se subordina à corrupção dos interesses particulares ou se submete às práticas intimidatórias do poder de Estado. Que se assegure à empresa privada (e assim também aos sindicatos e às demais entidades da sociedade civil), a possibilidade de influir no processo eleitoral, como uma prerrogativa intrínseca da cidadania ativa que as constitui; mas que o façam como uma opção cidadã, clara, aberta, responsável, definida e exclusiva.

Numa outra linha de intervenção, a polaridade no conflito irresolvido de Estado e Mercado, resultou na especialização de mecanismos de influência e poder, através dos quais, tanto o Estado como o Mercado têm procurado aparelhar as instituições da Comunidade aos desígnios dos seus interesses hegemonistas da esfera pública, estabelecendo-se por essa via um equilíbrio instável nas democracias representativas que se consolidaram na segunda metade do século XX. Não obstante, essa condição não é partilhada nas nações de tradição autoritária, mesmo naquelas em que vicejam democracias emergentes, onde a parafernália de controles estatais e resistências corporativas pende desigualmente na balança da estadocracia. Nestas circunstâncias, atuam decisivamente mecanismos velhos e novos de atrelamento estatal da participação comunitária. Entre estes, ressalta o caso dos Fundos de doações incentivadas para aplicação em determinadas áreas de políticas públicas, como a promoção da cultura e a proteção aos direitos da criança e do adolescente.

Na sua concepção originária esses Fundos foram instituídos, para serem geridos com a participação das entidades comunitárias, atuantes nas respectivas áreas temáticas, buscando-se, dessa forma contribuir para a sua institucionalização e a ampliação das suas atividades. Muito embora a potencialidade dessa modalidade de captação de recursos, os seus resultados estão longe de corresponder às expectativas, não apenas no volume de doações efetivamente canalizadas pelas empresas e contribuintes em geral; mas, também, pela sua escassa contribuição ao fortalecimento e autonomia do terceiro setor.

Com a implementação dos Orçamentos Participativos, como instrumento de direta alocação de recursos nas comunidades, a estadocracia viu-se enormemente reforçada na sua capacidade de erosão da autonomia das instituições comunitárias: seja pela ocupação do seu espaço específico de atuação; seja pelo controle político-partidário e administrativo que passa a exercer, quando de uma eventual parceria do poder público com essas entidades. A maior limitação do OP, por outro lado, reside na escassez dos seus recursos de investimento. Exatamente aqui, entra o reforço da modalidade de captação oferecida pelos Fundos de recursos incentivados. Graças à predominância da Administração na composição dos seus conselhos gestores e ao seu potencial de cooptação dos votos adicionais para a sua hegemonização, entre algumas das entidades que os integram, a canalização dos seus recursos preponderantemente para projetos estatais, libera recursos que deveriam sustentá-los para alocação via orçamento participativo.

Nessa perspectiva, o Estado - assim entendida a sua Administração político-partidária - capta recursos direcionados pelo Mercado, e os absorve em suas atividades específicas, faturando politicamente o respectivo resultado. E libera-se de um montante correspondente de recursos, que passam a ser alocados via orçamento participativo, como instrumento de cooptação política das minorias ativas e das entidades atuantes nas comunidades. Fecha-se, assim, numa virtual e legal operação de "lavagem política" de doações incentivadas, o circuito da reprodução ampliada e da consolidação eleitoral da estadocracia em nossa sociedade.

Em conclusão, a consistência de sua contribuição político-partidária e o contraponto ao atrelamento estatal da participação comunitária, são temas a serem refletidos como desafios, talvez cruciais, à intervenção estratégica das lideranças empresariais na perspectiva da consolidação e radicalização da democracia neste País.

*Professor de ciência política na UFRGS

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